por GILMAR MASCARENHAS
Botafoguense e Professor Associado do Instituto
de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); em 7 de
janeiro de 2018
Dos mais de 60 (ou 70) estádios que pude
conhecer nesta longa trajetória de “boleiro viajante” (ou coisa que o valha),
guardo com carinho e nostalgia maior o pequeno estádio Marechal Hermes.
Situa-se no bairro homônimo, planejado em torno da caprichosa estação
ferroviária inaugurada em 1913, certamente uma das mais belas dentre as dezenas
de estações da cidade do Rio de Janeiro, com tijolos maciços ingleses, azulejos
belgas e alemães, telhas e arcos de ferro fundido franceses, conjunto
devidamente tombado pelo Patrimônio Histórico. Sua vila operária, fundada, não
casualmente, no dia 1 de maio do mesmo ano, em especial projeto do então
presidente da República, o positivista Marechal Hermes da Fonseca (que empresta
seu nome ao bairro), demarca para alguns estudiosos o verdadeiro início das
políticas públicas de habitação social no Brasil. Ao menos foi a primeira
iniciativa contundente do governo federal nesse sentido, conforme atesta Nelson
Nóbrega Fernandes no livro “150 anos de subúrbio carioca”; geógrafo sagaz e
grande amigo que infelizmente nos deixou, repentinamente, em 2014.
Situado a aproximadamente 25 quilômetros do
centro da cidade, o então longínquo bairro foi planejado para ser um modelo
moral de existência digna, higiênica e devidamente controlada da classe
trabalhadora, em oposição aos cortiços, com moradias sólidas, ruas largas e
arborizadas, escolas profissionalizantes e biblioteca. Não por acaso, o bairro
é vizinho da Vila Militar, projetada pelo mesmo Marechal Hermes em 1908, quando
ministro da Guerra. Uma aposta na “cidade disciplinar” para combater ao mesmo
tempo a efervescência do movimento operário e os comportamentos enquadrados
como “malandragem”.
Os planejadores “esqueceram” algo fundamental no
bairro que rapidamente se urbanizava, mas sua gente tratou de resolver a grave
lacuna com autonomia e espírito lúdico, fundando seu clube de futebol, já em
1915: o União de Marechal Hermes Futebol Clube. O que não surpreende, pois
aquela segunda década do século 20 registrou a impressionante criação de
dezenas ou centenas de clubes de futebol pelo subúrbio carioca, bem como ligas
de bairro, expressão maior do intenso processo de popularização do futebol na
capital federal, conforme o livro “Footballmania”, valiosa contribuição de
Leonardo Afonso Pereira (2000). Alguns desses clubes suburbanos alcançaram
longevidade e êxito entre os “grandes da cidade”, tais como o Olaria (também
fundado em 1915), o Bonsucesso (de 1913) e o Madureira (de 1914).
O União de Marechal inaugurou em 1922 o estádio
que agora ocupa o centro de nossa conversa. Podemos imaginar a animação e os
sentimentos identitários fervendo (e se constituindo) nas disputas locais, bem
como no campeonato carioca (o clube foi vice-campeão dos “segundos quadros” no
primeiro certame profissional, o de 1933). Entre os anos 1920 e 1950, a cidade
provavelmente acolheu muitas dezenas de vibrantes pequenos estádios, numa
poderosa rede de sociabilidade que alimentava os circuitos cotidianos de
reprodução sociocultural das classes trabalhadoras.
Muito pouco sabemos desta história, cuja
materialidade foi se perdendo com o progressivo desaparecimento daquelas
agremiações, associada também à adesão crescente da gente suburbana aos cinco
clubes do circuito “midiático” (então radiofônico e da imprensa escrita),
situados todos em bairros nobres ou centrais. Cumpre registrar que desde os
anos 1980, dentre nossos colegas historiadores, crescia a vertente da história
cultural, e nela o campo da história oral, que permite o resgate de aspectos
não documentados da vida cotidiana de outrora. Mas o futebol não despertou
interesse, ao menos no Rio de Janeiro (em São Paulo alguns poucos trabalhos
foram realizados, resultando inclusive no tombamento do Parque do Povo), de
forma que perdemos definitivamente a grande oportunidade de entrevistar pessoas
que presenciaram e foram sujeitos atuantes daquele vibrante universo popular do
futebol nos anos 1920 a 1950.
Pois bem, no contexto de decadência do futebol
suburbano, o pequeno estádio Marechal Hermes, 56 anos depois de sua
inauguração, era apenas mais um dentre tantos que agonizavam (ou mesmo
desapareciam), deitando um rastro de saudades das tardes animadas de outrora.
Foi quando o Botafogo, que havia perdido em meio à crise
político-administrativa sua sede histórica de General Severiano, reformou e
reinaugurou esse mesmo estádio, passando a “mandar” ali os seus jogos.
Naquele 1978, eu era aluno secundarista do
Colégio Estadual Visconde de Cairu, no Méier, subúrbio um pouco mais “bem
situado”. Aos 15 anos, minha vivência de estádio se restringia ao Maracanã, que
era então o “centro de tudo” (apenas numa ocasião estivera no estádio
Conselheiro Galvão, em Madureira, grande centro comercial e cultural
suburbano). Já começara a frequentar, com colegas, a excitante e arriscada “geral
do Maraca”, deixando para trás a experiência da infância, de sentar na
arquibancada acompanhado de “responsáveis”.
Aliás, peço licença para deixar aqui registrada
minha primeira (e inesquecível, claro) partida no Maracanã (os que preferirem
podem saltar para o parágrafo seguinte): tinha dez anos quando, no dia 20 de
maio de 1973, o Botafogo enfrentou o Flamengo pelo Campeonato Carioca. Logo aos
15 minutos do primeiro tempo, pênalti para o Flamengo, alvoroçando os cerca de
70 mil presentes (público pagante oficial: 56 mil). Paulo César Caju, craque
revelado no clube, havia sido dispensado por sua atitude considerada
irresponsável e agora atuava no time inimigo (ver Nota de rodapé). Bem, torci muito para o “traidor” PC Caju perder aquele pênalti,
defendido pelo magnífico goleiro Wendell. O Botafogo venceu o duelo por 2 a 0.
Era o jogo de despedida do Roberto Miranda (centroavante que atuava na seleção
brasileira), que fez um belo gol tocando de cobertura. Vitória sem surpresas,
numa época em que o Flamengo era “freguês” do Glorioso (ficara quatro anos sem
vencê-lo, no final dos anos 1960, quando o goleiro Manga costumava dizer que
gastava o “bicho” bem antes de entrar em campo contra o rubro-negro). A goleada
por 6×0 (jamais devolvida integralmente, pois com requintado gol de calcanhar e
aplicada justo no dia do aniversário do rival) estava bem fresca, ocorrida seis
meses antes. E o Botafogo tinha disparado o melhor esquadrão da cidade e por
que não do Brasil, disputando naquele ano a Libertadores (foi vice do
Brasileirão de 1972), dela eliminando o campeão brasileiro, o Palmeiras, com
duas vitórias nos dois confrontos diretos, e mais tarde deixando, por um gol
apenas, dolorosamente sofrido no último minuto, de decidir a final continental
contra o Independiente. Foi justamente no empate em 3×3 contra o Colo-Colo, em
Santiago (80 mil pessoas no estádio com capacidade para 40 mil), no jogo que
“adiou o golpe” militar chileno, conforme título do livro de Luis Urrutia: “O
Colo-Colo abriu 2 a 0, mas o Botafogo tinha o controle do jogo e conseguiu
virar (…) O empate foi nos acréscimos. O país estava paralisado pelos choques
políticos, mas aquele gol gerou uma festa incrível. Foi uma noite de Carnaval
em Santiago”.
Gilmar Mascarenhas
Arroubos botafoguenses à parte, a nova casa do
clube foi reinaugurada em 22 de outubro de 1978 numa partida entre Botafogo e
Portuguesa da Ilha, vencida pelo alvinegro por 2 a 1, diante de 20 mil pessoas
acotoveladas, entre elas este que agora escreve. Era um simpático estádio de
madeira, como foi a totalidade da primeira geração de nossos estádios. Há
poucos remanescentes, pois em diversos países e cidades eles foram interditados
e obrigados a reformas, devido ao grave risco de incêndios. Destes, experiência
marcante foi para mim assistir no ano 2000, em Buenos Aires (por ocasião do III
Encuentro Deporte y Ciencias Sociales promovido pela equipe Area
Interdisciplinaria del Deporte, da qual fui membro), junto a Christian
Bromberger (nosso “mestre”), Tulio Gutterman e outros pesquisadores a um jogo
no estádio do lendário Ferro Carril Oeste, “el templo de madera” em Caballito,
igualmente situado em subúrbio ferroviário.
O estádio Marechal Hermes foi logo rebatizado,
homenageando Mané Garrincha. Naqueles idos de 1978 e 1979, o Botafogo voltava a
apresentar um bom time (ainda que bem inferior aos esquadrões de 1961-62,
1967-68 e 1972-73), liderado agora pelo craque Mendonça e tendo como dupla de
ataque os ariscos Luisinho Tombo e Dé (o “Aranha”). No Brasileirão de 1978, na
semifinal contra o São Paulo, no Morumbi, após vencer no jogo de ida,
precisando apenas do empate para decidir o título nacional, sofremos uma virada
de 3 a 2 com polêmica arbitragem. Aliás naquele ano o Botafogo alcançou a
invencibilidade de 52 partidas oficiais, recorde nacional jamais ultrapassado,
apenas igualado pelo Flamengo no ano seguinte, justamente interrompido pelo
alvinegro carioca, em jogo histórico que pude presenciar, posicionado junto a
mureta de proteção da arquibancada (a mesma que fatalmente desabou em 1992),
agachado de lado para o campo e assim usando quadris e ombros para não ser
esmagado pela multidão (lembro de não poder sair dali no intervalo). Em jogos
do Campeonato Brasileiro, o Botafogo ainda detém o recorde inigualado de 42
jogos sem derrota, conquistado exatamente naquela época. Marechal Hermes foi um
autêntico “alçapão” a colaborar nesta façanha.
O time reanimou a vida suburbana em Marechal
Hermes, ao longo daquele 1979, com algumas goleadas no Campeonato Carioca (7 a
1 sobre a A.D. Niterói, antigo clube Manufatura, de fábrica, e 6 a 0 sobre o
Bangu), bem como no Campeonato Nacional (6 a 1 no São Bento-SP). Alegrias que
não esqueço, em meu último ano colegial. Eu mesmo não entendia plenamente por
que amava tanto aquele estádio “precário”, símbolo da decadência e da má gestão
do clube. Sentia-me em casa ali. Gostava da possibilidade de interlocução direta
com os jogadores, juiz e comissão técnica: nossos gritos e xingamentos sendo
ouvidos, bem como nossas valiosas “dicas” aos jogadores (“abre mais”, “avança”,
“esse marcador tá com medo, vai nele”, “tá cansado”, “pega fulano”, etc.).
Éramos autênticos protagonistas da festa, diferentemente do Maracanã. Bem mais
tarde, estudando as feiras livres (mestrado) e o futebol (doutorado), pude
entender essa inclinação pessoal pelo estudo dos espaços públicos, seu espírito
lúdico e suas sociabilidades.
Importante registrar como era plenamente
acessível aos mais pobres comparecer ao estádio. O bilhete de trem custava algo
inferior a 1,00 (hum real) de nossos dias, já que o salário-mínimo de 1979
permitia adquirir mais de 1.000 bilhetes. Quanto ao valor do ingresso aos jogos
em Marechal Hermes, ouso supor que custariam algo entre R$ 5 e R$ 10. Decerto,
tábuas de madeira não são confortáveis, tampouco ter suas sandálias “furtadas”
por moleques brincalhões que transitavam por baixo das “arquibancadas”, e que frequentemente
davam beliscões, arrancavam pelos de nossas pernas ou mesmo nos cutucavam com
cabos de vassoura. Mas era bem divertido. Ambiente de circo mambembe, ainda uma
experiência urbana comum (embora já em declínio) naquela época.
Abruptamente, a partir do ano seguinte (1980),
com meu ingresso como estudante de Geografia na UFF, simplesmente “abandonei” o
futebol, que era então visto como maldito e poderoso “ópio do povo”, inimigo
das causas populares, para mim uma súbita e desconcertante descoberta. Aqueles
que frequentaram o movimento estudantil de então sabem do quanto os torcedores
eram considerados “idiotas alienados”. Ainda que movimentos como a Democracia
Corinthiana contribuíssem mais tarde para atenuar esse preconceito contra o
futebol. E assim, somente em 1986, já como professor, retornei paulatinamente
aos estádios. Tive que esperar por três anos até gritar “é campeão”, agora
frequentando outro pequeno estádio muito simpático, o Caio Martins, escalando o
alambrado junto com os goleadores Maurício e Paulinho Criciúma.
O estádio que guardo comigo, colorido pelo sol e
pelos gols nas tardes de festa, choca-se profundamente com a imagem atual. O
clube ainda usa o equipamento como Centro de Treinamento, reflexo direto dos
descuidos para com as categorias de base. Reflexo também do abandono de nossos
subúrbios. E do abandono de certa “cultura torcedora” pela nova economia do
futebol, enamorada do conforto frio das luxuosas arenas. Felizmente, temos
ainda estádios “residuais”, onde se pode ter alguma ilusão de reviver a
incontornável atmosfera de outrora. Bem gostaria de assistir novamente a bola
rolando em Marechal Hermes…
Nota do autor:
Registre-se, para os mais jovens, que a
transferência de Paulo César Caju, ao contrário dos tempos atuais, não se deu
por diferença de capacidade financeira entre os dois clubes, diferença enorme
nos dias atuais e em constante aprofundamento. O Botafogo então pagava ao
Jairzinho o maior salário do Brasil;o segundo pertencia a Rivelino, do
Corinthians. Na década anterior, o Botafogo havia retirado do Flamengo o grande
Gerson, eum pouco antes, em 1958, outro craque, o Zagalo. Para além de certo
equilíbrio financeiro entre os “grandes” clubes do Rio, e da pouca distância
entre estes e os chamados “pequenos”, que traziam em seus elencos excelentes
atletas, prevalecia entre os jogadores lógicas outras de mobilidade (afetivas,
inclusive) que não a meramente econômica, que hoje governa a vida dos atletas
totalmente teleguiados por empresários. O próprio cálculo do “valor” de jogador
era muito menos preciso e bem mais subjetivo que os sofisticados parâmetros
atuais. O futebol se submete hoje à ditadura da econometria.
Nota do Mundo
Botafogo:
Gilmar Mascarenhas
(1962-2019) era Professor na Universidade do Estado do
Rio de Janeiro e membro do quadro permanente do Programa de Pós-graduação em
Geografia (PPGEO-UERJ), onde atuou desde 1992 até 2014, em geografia urbana.
Professor visitante na Université Michel de Montaigne Bordeaux III. Possuía
doutorado em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo (USP,
2001), com estadia para estudos doutorais na Universidad de Barcelona, e
pós-doutorado na Université Paris I Panthéon-Sorbonne (2012-2013).
Desenvolvia pesquisas que envolvem
território, cidade, cultura, cotidiano, espaços públicos e ordenamento urbano,
inserindo neste campo de reflexões os esportes e o turismo. Enquanto bolsista
concentrou-se em dois projetos: (1) Megaeventos esportivos: política urbana,
legado, cidadania e impactos na cidade; (2) Copa do Mundo 2014: território e
cultura nos estádios de futebol.
Gilmar Mascarenhas faleceu em 2019
atropelado por um ônibus enquanto se deslocava de bicicleta, meio de locomoção
em que ele acreditava como alternativa citadina ao automóvel.
2 comentários:
Belo texto. A propósito, indiquei o blog a um amigo meu, colunista aqui em Natal, para enviar um texto sobre o último jogo de Jairzinho pelo Botafogo, que aconteceu no interior do Rio Grande do Norte.
É verdade, meu amigo, um belo texto e um lamento por ter partido tão cedo. Tem um currículo de pesquisa notável.
Será muito bem vindoo texto do seu amigo. Grato pela indicação.
Abraços Gloriosos.
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