domingo, 28 de dezembro de 2025

João-Sem-Medo enfrenta o diabólico Dr. Maduro

[Nota preliminar: Os Boletins Informativos do Botafogo de Futebol e Regatas sempre foram mais do que futebol e outros desportos, assumindo também um importante papel de cidadania social e cultural. Apresenta-se uma soberba alegoria publicada em 1981 – num ano de fortes referências –, centrada em torno da figura ousada de João Sem Medo e do diabólico inimigo Dr. Maduro. O autor assinou sob pseudônimo...]

por LAMANA | Boletim Oficial do Botafogo | Gentileza de ANGELO SERAPHINI, ex-dirigente do Glorioso.

I

Ouvindo um samba da antiga, acode-me à memória, por analogia, a figura daquele médico, cuja elegância e donaire aliciavam as donzelas de Copacabana.

Esvoaçado de fronteiras além túnel, pousara o esbelto, em aviso prévio, em horta necessitada de cultivo.

No colete da cachola portava o quarentão um dogma da pesada que pintara mal entre os esclarecidos, pois trocado em miúdos ao câmbio da moda, impunha um regime nada alentador e um saldo de zero à esquerda no comércio das carnes.

Sem encontrar oposição, o magnânimo decretava: ”Carne… jamais! São restos de cadáver! Aos vegetais, volver!”

E repimpado no trono desde o palacete à beira-mar, o déspota agraciava os súditos com o novo regime; o regime das hortaliças. Em pouco tempo, implantava-se o conformismo. Clientes e admiradores sucumbem à doutrina e proporcionam-lhe o domínio da situação.

A epidemia leguminosa alastra-se por todo o Posto 4. Dengosas, ávidas por transformar-se em cinturinha-de-vespa, vibram com a encolha da silhueta. Se a dita não entrar em quarto-minguante, doutor Maduro dará jeito.

Seguem-se à risca os ditames do usurpador. Imperam disciplina e obediência e, de quebra, o dedodurismo. Toda cautela é nenhuma. Maduro saca certo titular de vôlei do “Maduro’s Brócolis Club” por ter sido paqueirada com embrulho suspeito nas imediações do Açougue Santa Clara. Mas, o fenômeno não ocorre só com as diletantes.

Nerval – o lateral das divididas – entra na jogada da abstenção carnal. Despreza, ao finalizar o racha cotidiano, aquela que é a razão de sua existência; a inseparável senhora milanesa.

Doutrinado por filmes do espináfrico Popeye, a quem Maduro endossa piamente, quase perdemos o Zé Caniço. Convém não esquecer que o rubronegro Calote deu-se mal com o regime e anda pela bola sete.

Os apetecíveis angorás de dona Eufrásia desfilam junto às fuças do terrível boxer Ringo, cujo dono, o gordota Filó, impõe a todos da mansão a dieta das hortaliças.

Cai o consumo da carne na comarca. E cai alto e graduado. Ninguém tem força nem pra bater escanteio de mangas curtas. O verme da inanição mina as forças dos nossos correligionários. A situação de angústia clama por churrasco. O que será de nós?! É demasiado…

II

Eis senão quando, não é que surge das trevas do Cine Americano, o predestinado, o nosso almejado Messias?

Assistira ele – tranqüilão de Alegrete – ao polêmico “o que a carne herda” [filme de 1949, de Elia Kazan]. Alheio aos comentários da crítica, com o indefectível no canto da boca, o nosso salvador manda-se, lépido, a largas passadas (o prenúncio de toró o aviva) em direção ao boteco do Carnera – ponto de dissidência dos carnívoros.

Zé Lacraia, e Cláudio Estegomia, a mando do barão de Nanaga hão de embargar-lhe o intuito já que montam guarda à saída da meia-noite. Deve ser coisa pra lá de série. Embargar as andanças ou interromper a explanação do nosso herói é ato que não aconselho a ninguém. A bem da verdade, interrompem mesmo. E os prestimosos dão-lhe a dica e o mapa da mina. Já chove e troveja as pampas. Aconselham toda a cautela e se mandam de fininho.

Acompanhado em pensamento pelos que ficam na retaguarda, João parte célere em cumprimento da missão. Com a bússola do justiceiro chega, empapado, ao local do delito, depois de peripécias que se omitem para não acabar com a paciência do leitor. E Saldanha nega-se a crer no que os olhos vêem. Q que vêem? Vêem e ouvem.

Na exclusividade do recinto, entrincheirado na zona do agrião, em mesa de corner, à luz da vela e ao som de Wagner, lá está sentado o objetivo da missão: o diabólico dr. Maduro. No êxtase da transformação, deleita-se com Wagner, propiciado por vitrola de corda (daquelas em cuja estampa o Biriba do Macaé ouve) e trincha ao descompassado das garfadas um “Big-baby-beef” acebolado e à francesa.

A delicadeza do Doctor Jeckyl das hortaliças transfigura-se na grossura do Mister Hyde das tabernas de repasto. Vai-se encarnando a figura do processo.

Se os olhos de Saldanha mal acreditam no que vêem, os do esculápio só vêem e acreditam no que trincha. Vez por outra, ergue a cabeça do prato e olha para o intruso que se lhe postou defronte.

O danado teima por fixar os olhos naquele contorno diante de si, mas, no delírio, mistura as estações do cerebelo e distancia-se da realidade.

Com fanatismo nada vegetariano, monologa em dó maior: “– Eta bifão! Bifão de minhas entranhas! Ditoso boi sagrado!” E prossegue lombo a dentro. Só dá meia-trave ao derramar na caldereta-tanque – orgulho do Renânia – inteira Cascatinha de Petrópolis.

A primeira investida do João, na tentativa de acordar o comilão, esgarça-se pelos flancos e morre na entrada da área. Saldanha volta à carga. Levantando a voz acima de Wagner, tabela com a consciência do antagonista e, de trivela, desfecha-lhe, à queima-roupa, o arremate definitivo.

Despertado da batalha, o algoz emerge das carnes e atônito fica ao deparar com a ousadia do mocetote atrevido que lhe interrompera o ritual. E João, taxativo, enfia-lhe o bico da chuteira no âmago do escrúpulo: “– Francamente… doutor Maduro! E pensar que quase embarco nessa canoa dos legumes. A esta hora teria afundado na praia da Agonia.”

Depois dessa, meus amigos, a vaca foi para o brejo. O guloso cai no pesadelo da realidade e vencido joga o guardanapo. Deixa-se estar, braços arreados, bifão inacabado e nas mãos, garfo e faca; armas depostas da peleja que João-Sem-Medo interrompera.

Há homens assim, dessa têmpera pampeira; como há bárbaros leguminívoro que não resistem à autópsia de uma boa paca.

Rasgado o cartaz do ditador de regimes, assoma a liberdade na comarca do Posto 4, graças à intrepidez de João-Sem-Medo.

Restou ao doutor Maduro trasladar-se para as bandas de Ipanema, onde encarrilhou novos beatos. A tese do egocentrismo vingará em outras plagas com o sermão “Faz o que te digo e não o que faço”, embora o de foro íntimo seja o dileto “Carne jamais… para os otários. Venha ela toda a mim.”

Em defesa do prato de combate, adotou o enganador um sistema em voga nos dias de hoje; retrancou-se na “necrologia com papas fritas”. E dizem que na tática profícua de rasquetear alcatras prosseguiu; porque na gulodice e no amor não existe a palavra “jamais”.

Fonte: Boletim Oficial do Botafogo FR, n.º 241, agosto de 1981.

Nota final do Mundo Botafogo: a expressão ‘João-Sem-Medo’ deriva de personagem lendário de um jovem que não temia coisa alguma e se embrenhou pelo mundo afora enfrentando diabos, gigantes e outros personagens, encerrando a sua saga quando se apaixonou por uma princesa, descobrindo então o medo através do amor e casou-se com a amada; o título de ‘dr.’ era frequentemente usado de modo inflacionário desde o século XIX, sobretudo usado para bacharéis, funcionários públicos ou figuras que queriam ostentar prestígio, e a literatura, a crônica e o jornalismo satírico exploravam isso intensamente com muita ironia social; a expressão ‘maduro’  significava alguém que se julgava experiente, acabado, definitivo, ou, de forma mordaz, alguém dogmático, pedante, autoritário e fossilizado.

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