[Nota preliminar: Os
Boletins Informativos do Botafogo de Futebol e Regatas sempre foram mais do que
futebol e outros desportos, assumindo também um importante papel de cidadania social
e cultural. Apresenta-se uma soberba alegoria publicada em 1981 – num ano de fortes
referências –, centrada em torno da figura ousada de João Sem Medo e do
diabólico inimigo Dr. Maduro. O autor assinou sob pseudônimo...]
por LAMANA | Boletim
Oficial do Botafogo | Gentileza de ANGELO SERAPHINI, ex-dirigente do Glorioso.
I
Ouvindo um samba da antiga, acode-me à
memória, por analogia, a figura daquele médico, cuja elegância e donaire
aliciavam as donzelas de Copacabana.
Esvoaçado de fronteiras além túnel, pousara o
esbelto, em aviso prévio, em horta necessitada de cultivo.
No colete da cachola portava o quarentão um
dogma da pesada que pintara mal entre os esclarecidos, pois trocado em miúdos
ao câmbio da moda, impunha um regime nada alentador e um saldo de zero à
esquerda no comércio das carnes.
Sem encontrar oposição, o magnânimo
decretava: ”Carne… jamais! São restos de cadáver! Aos vegetais, volver!”
E repimpado no trono desde o palacete à
beira-mar, o déspota agraciava os súditos com o novo regime; o regime das
hortaliças. Em pouco tempo, implantava-se o conformismo. Clientes e admiradores
sucumbem à doutrina e proporcionam-lhe o domínio da situação.
A epidemia leguminosa alastra-se por todo o
Posto 4. Dengosas, ávidas por transformar-se em cinturinha-de-vespa, vibram com
a encolha da silhueta. Se a dita não entrar em quarto-minguante, doutor Maduro
dará jeito.
Seguem-se à risca os ditames do usurpador.
Imperam disciplina e obediência e, de quebra, o dedodurismo. Toda cautela é
nenhuma. Maduro saca certo titular de vôlei do “Maduro’s Brócolis Club” por ter
sido paqueirada com embrulho suspeito nas imediações do Açougue Santa Clara.
Mas, o fenômeno não ocorre só com as diletantes.
Nerval – o lateral das divididas – entra na
jogada da abstenção carnal. Despreza, ao finalizar o racha cotidiano, aquela
que é a razão de sua existência; a inseparável senhora milanesa.
Doutrinado por filmes do espináfrico Popeye,
a quem Maduro endossa piamente, quase perdemos o Zé Caniço. Convém não esquecer
que o rubronegro Calote deu-se mal com o regime e anda pela bola sete.
Os apetecíveis angorás de dona Eufrásia
desfilam junto às fuças do terrível boxer Ringo, cujo dono, o gordota Filó,
impõe a todos da mansão a dieta das hortaliças.
Cai o consumo da carne na comarca. E cai alto
e graduado. Ninguém tem força nem pra bater escanteio de mangas curtas. O verme
da inanição mina as forças dos nossos correligionários. A situação de angústia
clama por churrasco. O que será de nós?! É demasiado…
II
Eis senão quando, não é que surge das trevas do
Cine Americano, o predestinado, o nosso almejado Messias?
Assistira ele – tranqüilão de Alegrete – ao polêmico
“o que a carne herda” [filme de 1949, de Elia Kazan]. Alheio aos comentários da
crítica, com o indefectível no canto da boca, o nosso salvador manda-se,
lépido, a largas passadas (o prenúncio de toró o aviva) em direção ao boteco do
Carnera – ponto de dissidência dos carnívoros.
Zé Lacraia, e Cláudio Estegomia, a mando do
barão de Nanaga hão de embargar-lhe o intuito já que montam guarda à saída da
meia-noite. Deve ser coisa pra lá de série. Embargar as andanças ou interromper
a explanação do nosso herói é ato que não aconselho a ninguém. A bem da
verdade, interrompem mesmo. E os prestimosos dão-lhe a dica e o mapa da mina.
Já chove e troveja as pampas. Aconselham toda a cautela e se mandam de fininho.
Acompanhado em pensamento pelos que ficam na
retaguarda, João parte célere em cumprimento da missão. Com a bússola do
justiceiro chega, empapado, ao local do delito, depois de peripécias que se
omitem para não acabar com a paciência do leitor. E Saldanha nega-se a crer no
que os olhos vêem. Q que vêem? Vêem e ouvem.
Na exclusividade do recinto, entrincheirado
na zona do agrião, em mesa de corner, à luz da vela e ao som de Wagner, lá está
sentado o objetivo da missão: o diabólico dr. Maduro. No êxtase da
transformação, deleita-se com Wagner, propiciado por vitrola de corda (daquelas
em cuja estampa o Biriba do Macaé ouve) e trincha ao descompassado das garfadas
um “Big-baby-beef” acebolado e à francesa.
A delicadeza do Doctor Jeckyl das hortaliças
transfigura-se na grossura do Mister Hyde das tabernas de repasto. Vai-se
encarnando a figura do processo.
Se os olhos de Saldanha mal acreditam no que
vêem, os do esculápio só vêem e acreditam no que trincha. Vez por outra, ergue
a cabeça do prato e olha para o intruso que se lhe postou defronte.
O danado teima por fixar os olhos naquele
contorno diante de si, mas, no delírio, mistura as estações do cerebelo e
distancia-se da realidade.
Com fanatismo nada vegetariano, monologa em
dó maior: “– Eta bifão! Bifão de minhas entranhas! Ditoso boi sagrado!” E
prossegue lombo a dentro. Só dá meia-trave ao derramar na caldereta-tanque –
orgulho do Renânia – inteira Cascatinha de Petrópolis.
A primeira investida do João, na tentativa de
acordar o comilão, esgarça-se pelos flancos e morre na entrada da área.
Saldanha volta à carga. Levantando a voz acima de Wagner, tabela com a
consciência do antagonista e, de trivela, desfecha-lhe, à queima-roupa, o
arremate definitivo.
Despertado da batalha, o algoz emerge das
carnes e atônito fica ao deparar com a ousadia do mocetote atrevido que lhe
interrompera o ritual. E João, taxativo, enfia-lhe o bico da chuteira no âmago
do escrúpulo: “– Francamente… doutor Maduro! E pensar que quase embarco nessa
canoa dos legumes. A esta hora teria afundado na praia da Agonia.”
Depois dessa, meus amigos, a vaca foi para o
brejo. O guloso cai no pesadelo da realidade e vencido joga o guardanapo.
Deixa-se estar, braços arreados, bifão inacabado e nas mãos, garfo e faca;
armas depostas da peleja que João-Sem-Medo interrompera.
Há homens assim, dessa têmpera pampeira; como
há bárbaros leguminívoro que não resistem à autópsia de uma boa paca.
Rasgado o cartaz do ditador de regimes,
assoma a liberdade na comarca do Posto 4, graças à intrepidez de João-Sem-Medo.
Restou ao doutor Maduro trasladar-se para as
bandas de Ipanema, onde encarrilhou novos beatos. A tese do egocentrismo
vingará em outras plagas com o sermão “Faz o que te digo e não o que faço”, embora
o de foro íntimo seja o dileto “Carne jamais… para os otários. Venha ela toda a
mim.”
Em defesa do prato de combate, adotou o
enganador um sistema em voga nos dias de hoje; retrancou-se na “necrologia com
papas fritas”. E dizem que na tática profícua de rasquetear alcatras
prosseguiu; porque na gulodice e no amor não existe a palavra “jamais”.
Fonte: Boletim Oficial do Botafogo FR, n.º
241, agosto de 1981.
Nota final do Mundo Botafogo: a expressão ‘João-Sem-Medo’ deriva de personagem
lendário de um jovem que não temia coisa alguma e se embrenhou pelo mundo afora
enfrentando diabos, gigantes e outros personagens, encerrando a sua saga quando
se apaixonou por uma princesa, descobrindo então o medo através do amor e
casou-se com a amada; o título de ‘dr.’ era frequentemente usado de modo
inflacionário desde o século XIX, sobretudo usado para bacharéis, funcionários
públicos ou figuras que queriam ostentar prestígio, e a literatura, a crônica e
o jornalismo satírico exploravam isso intensamente com muita ironia social; a
expressão ‘maduro’ significava alguém
que se julgava experiente, acabado, definitivo, ou, de forma mordaz, alguém
dogmático, pedante, autoritário e fossilizado.

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