
por Wilson Reeberg
Conheci-o quando comecei a remar no Botafogo de Futebol e Regatas, no final de 1961. Era alto, magro, muito vermelho e louro de arder a vista. Chegado a uma conversa mansa, ao pé do ouvido, como quem estivesse sempre contando importantes segredos. Cronômetro de duas agulhas pendurado no pescoço ou escondido no bolso, sempre marcando o tempo de algum barco, que ele havia pego sem que ninguém percebesse.
General chegava no Botafogo lá pelas 10 horas, depois que o treino tinha acabado e os remadores ido embora, salvo os come-e-dorme que lá moravam, entre os quais eu me incluía. Ficava jogando conversa fora com Manoel Baltazar Agonia do Couto, português de Póvoa de Varzim, grande construtor de barcos e exímio treinador de ioles, o qual adorava uma conversa. Às vezes, até mais falava do que trabalhava. Ali rolava de tudo, principalmente notícias fresquinhas das garagens do Vasco e do Flamengo, por onde General já tinha passado. Ele sabia tudo sobre todos os barcos que se preparavam para a próxima regata, desde os seus tempos até as fofocas sobre a vida dos remadores.
Conheci-o quando comecei a remar no Botafogo de Futebol e Regatas, no final de 1961. Era alto, magro, muito vermelho e louro de arder a vista. Chegado a uma conversa mansa, ao pé do ouvido, como quem estivesse sempre contando importantes segredos. Cronômetro de duas agulhas pendurado no pescoço ou escondido no bolso, sempre marcando o tempo de algum barco, que ele havia pego sem que ninguém percebesse.
General chegava no Botafogo lá pelas 10 horas, depois que o treino tinha acabado e os remadores ido embora, salvo os come-e-dorme que lá moravam, entre os quais eu me incluía. Ficava jogando conversa fora com Manoel Baltazar Agonia do Couto, português de Póvoa de Varzim, grande construtor de barcos e exímio treinador de ioles, o qual adorava uma conversa. Às vezes, até mais falava do que trabalhava. Ali rolava de tudo, principalmente notícias fresquinhas das garagens do Vasco e do Flamengo, por onde General já tinha passado. Ele sabia tudo sobre todos os barcos que se preparavam para a próxima regata, desde os seus tempos até as fofocas sobre a vida dos remadores.
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No começo, eu olhava-o à distância. Não nos conhecíamos e ele não me dava importância. Eu era apenas mais um “catarina” aprendendo a remar. Um paranaense de Morretes que viera servir no 1º Batalhão de Polícia do Exército e tinha ido parar no Botafogo levado pelo colega de farda Edson Altino Pereira, remador do Clube de Regatas Aldo Luz, de Florianópolis. Tímido, ainda não adaptado ao Rio de Janeiro e muito menos à garagem de remo, eu ficava no meu canto, vendo aquele cara vermelho falando com um e outro, com a desenvoltura de quem conhece todo mundo.
Com o passar do tempo ele foi me dando um “oi!”, depois, perguntando como estava o iole a quatro que eu treinava com mais três “catarinas” e, por fim, me dando os parabéns quando estreei ganhando minhas primeiras medalhas, uma de prata (no iole a quatro) e outra de “ouro”, no iole a oito, onde os quatro catarinas dobraram.
Sua presença na garagem quebrava a monotonia que se instalava no local, depois do treino. O Botafogo ficava (e ainda fica) numa estranha construção abaixo do nível da rua, na curva do Calombo, invisível para quem passava de carro. Ônibus para lá, só o “157”, que costumava deixar os passageiros esperando no ponto durante horas. Por isso, só os próprios remadores apareciam por lá. Portanto, a chegada do General era sinônimo de novidades.
Mas assim como ele trazia noticias dos adversários, também levava as nossas para eles. General fazia a informação realmente circular, disponibilizava-a para quem se interessasse. Para ele, informação de remo era para ser compartilhada, nunca para ser retida. Ele era, já naquela época, uma espécie de Internet viva do remo, acessível a todo mundo. E às vezes esse papel não era bem compreendido. Como aconteceu comigo, por exemplo.
Quando fui escalado com Antonio Maria para correr um dois-com contra Alberto Blema e Assis Garcia Ramos, do Flamengo, toda a Lagoa achava que seríamos massacrados. Em conversas com General comentei que eu sonhava em dar um cacete nos campeões; que iria para a raia, no domingo (20/12/64), disposto a acabar com o reinado deles; que não os achava tão bons assim, e que se preparassem, pois eu iria encará-los.
Quando encostamos no pontão de largada, no dia da regata, Blema e Assis estavam com cara de poucos amigos. Nem ousei desejar-lhes “Boa prova, Flamengo!”, como era praxe entre os adversários.
Terminada a prova, que perdemos por escassos dois segundos, ouvi de Blema um monte de impropérios.
Mais tarde, pensando nas causas daquele incidente, deduzi que Blema e Assis tinham sido ‘envenenados’. Na hora, lembrei das confidências que tinha feito ao General e achei que ele era o responsável. Não me ocorreu que eu podia ter feito os mesmos comentários com alguém do meu clube, que falou para um amigo do Flamengo, que falou para Blema...O fato é que, para mim, General tinha fofocado e resolvi que, dali em diante, mediria as palavras sempre que ele estivesse por perto.
Mal podia imaginar que o futuro nos reservava uma estreita convivência e uma forte amizade.
Nos doze anos seguintes, enquanto durou minha carreira de remador e começou a de treinador, falávamos numa boa, mas sem intimidades. Até que, em meados de 1976, fui contratado para trabalhar na Confederação Brasileira de Desportos junto com General, que já estava lá há um ano. Nós éramos assessores de Lon Teixeira de Menezes, diretor do departamento de desportos aquáticos: eu para assuntos técnicos de remo, ele para assuntos administrativos. Eu programava eventos, criava cursos, preparava publicações, etc. e General cuidava das providências administrativas pertinentes. Tínhamos que trabalhar juntos, com os mesmos objetivos, e isso foi nos aproximando. Em poucos meses, já éramos como corda e caçamba.
Trabalhávamos incansavelmente. Quando tínhamos uma competição para organizar fora do Rio de Janeiro, viajávamos para lá com vários dias de antecedência e providenciávamos tudo que fosse necessário. Nessas ocasiões, trabalhávamos, geralmente, 12 a 14 horas por dia. Depois que a competição terminava e todos iam embora, ficávamos olhando a raia vazia, silenciosa, a água parada, sentindo tristeza por tudo ter acabado. Aquele rebuliço era uma das razões da nossa vida e o seu término deixava uma grande saudade, só não maior do que o orgulho que sentíamos por ter organizado tudo direito e a competição ter sido um sucesso.
Voltávamos, então, para o hotel e nos atirávamos em nossas camas, esgotados, achando que a qualquer hora teríamos um enfarte. Dormíamos 12 horas direto e, às vezes, até mais, para repor as forças gastas nos dias de preparação da regata. Quando acordávamos, já de madrugada, seguíamos um ritual: sempre pedíamos à copa dois pratos fundos de mingau de aveia, para repor as forças, e procurávamos na TV um filme de bang-bang, daqueles bem antigos. Quando achávamos algum, General recordava com alegria aqueles atores da época da sua juventude: Van Heflin, Richard Widmark, Gary Cooper, Broderick Crawford. Como eu também me amarrava no gênero, comíamos nosso mingau de aveia comentando “A lança partida”, “O jardim do pecado”, “Matar ou morrer” e outros westerns de sucessos da pré-história do cinema.
General nasceu em 27 de março de 1924 e sua vida sempre se confundiu com o remo. Toda sua família passou pelas garagens. Seu pai, Eduardo de Souza, tinha sido um grande remador do Clube de Regatas Jardinense, um dos primeiros clubes da Lagoa Rodrigo de Freitas, no início do século 20. Sua mãe, Antonieta Fonseca de Souza, também tinha remado, assim como seus tios, irmãos e primos. Não tinha escapado ninguém.
Ele começou no Botafogo, no fim dos anos 40, primeiro como colaborador, aquele tipo que sempre está na garagem porque gosta de remo e vai ajudando numa coisinha ou noutra. Depois passou a sair em barcos, timoneando e participando do treinamento.
No final dos anos 50, desentendeu-se com Clóvis Dutra, então diretor de remo do Botafogo, seu clube do coração, e transferiu-se para o Vasco. Lá timoneou muitos barcos vencedores, dentre eles o dois-com de Nelson Guarda e Rui Kopper,um dos melhores da história do remo carioca. General enchia-se de orgulho cada vez que falava desta guarnição, bem como dos sacrifícios que se impôs para manter-se dentro do peso. Fazia regimes faquirescos para não perder o posto de timoneiro. Acabou pagando caro pela fórmula mágica que fazia seu corpo de 1,80 m pesar cerca de 50 kg e caber no “cockpit” de um outrigger. Os anos de regime premiaram-no com uma tuberculose e ele foi obrigado a desistir do timão. Passou então a dedicar-se com exclusividade à prática do corujismo, bem menos desgastante.
Não lembro de, alguma vez, ter ouvido General maldizer a “sua” tuberculose. Pelo contrário, falava nela até com certo orgulho, como faziam os poetas de antigamente, e às vezes a brandia como se fosse um troféu. Afinal, a tuberculose simbolizava toda a sua dedicação, todo o seu amor pelo remo. General amou o remo de tal maneira que ofereceu seu corpo à tuberculose, em sacrifício pelo remo.
A habilidade em manejar cronômetros (que já vinha do seu gosto por corridas de cavalo) foi se aperfeiçoando de tanto marcar os tempos de qualquer coisa que se mexesse na Lagoa, principalmente barcos. Mesmo quando estes remavam naquele ritmo suave que General chamava de “vem cá, mulata!”, ele marcava a voga ou qualquer outra coisa. O fato é que os olhos estavam sempre atentos e o polegar de prontidão para disparar o cronômetro.
Para não perder tiro de nenhum barco, acordava às 4 horas da madrugada e ia para as margens da Lagoa. Escondia-se em algum lugar e começava a espionar. Como fazia isso quando tudo ainda estava escuro, ganhou a fama de “coruja” do remo.
General era, na realidade, o sargento Osmar de Souza, reformado pelo Exército Brasileiro como 2º tenente, depois que a tuberculose quase o matou.
O apelido de General foi dado por Frederico Haroldo Quarterolli, o Fred, à época jornalista do Diário Carioca e, depois, do Jornal dos Sports. Caiu muito bem entre o pessoal do remo (que adora colocar apelidos) e rapidamente se espalhou. Ele mesmo assimilou-o sem resistência: era bem melhor ser chamado de general do que de sargento ou 2º tenente, mesmo que fosse só de brincadeira.
Desde o início, este apelido o colocou em situações embaraçosas. Certa ocasião, em que ele era o timoneiro de um oito formado só por oficiais do Exército, apareceu no Botafogo um coronel, comandante da Brigada de Paraquedistas. Tinha ido prestigiar o treino, pois esse barco competiria contra guarnições da Marinha e da Aeronáutica, numa regata de militares. Quando o oito encostou na rampa, o comandante paraquedista aproximou-se. No momento em que General saltou do barco, alguém gritou: “E aí, General, como é que foi o treino?” O oficial paraquedista não vacilou: tomou posição de sentido, bateu-lhe continência e apresentou-se.
Nosso chefe, Lon Teixeira de Menezes, só o chamava de “General Osmar de Souza”. Certa vez, na época do governo militar, ambos foram a uma reunião no Conselho Nacional de Desportos. Sentados à mesa estavam vários dirigentes esportivos, militares de carreira, com patentes de brigadeiro, general, coronel e major (tudo de verdade!), alguns deles membros do próprio Conselho, outros representando confederações às quais pertenciam. A reunião já tinha começado quando surgiu Osmar de Souza. Incontinenti, Lon o chamou: “General Osmar de Souza, queira sentar-se à mesa conosco!” Muito sem graça, ele se aproximou e embora todos o tenham cumprimentado educadamente, ficou evidente o constrangimento dos mais “linha dura”. Um deles, o general Antonio Pires de Castro Filho, era quem mais se aborrecia com o apelido. Quando a reunião terminou, ele se aproximou e perguntou, com a sisudez e o vozeirão que lhe era peculiar: “General” Osmar de Souza, já vasculhei o Almanaque do Exército e não encontrei o seu nome. De que turma o senhor é?”
Certa vez saiu uma matéria sobre remo nos jornais, falando sobre a visita que o general Osmar de Souza faria a algumas federações estaduais. O general Pires de Castro não perdeu tempo e enviou uma carta a Lon Menezes, pedindo-lhe que informasse a arma e o exército a que pertencia o “general Osmar de Souza”. Em atenção ao “requerimento de informações”, Lon respondeu que o general Osmar de Souza era um ex-timoneiro do Botafogo e do Vasco da Gama, muito querido por remadores e dirigentes e que havia sido nomeado por eles o “general do remo”, numa carinhosa alusão ao seu passado militar. Ele, Lon, não via nada demais nisso. Afinal, não tinha o Vasco da Gama um “Almirante” (famoso dirigente do clube) e um “Coronel” (jogador de futebol)?
A televisão não tinha o seu “Capitão Asa” (animador de programa infantil)? O cantor Blecaute não era o “General da Banda”? Então porque o remo não podia ter o seu general?
Várias vezes aproveitei a sua presença no meu carro para escapar de multas por estacionar em local proibido. Quando o guarda chegava, era só falar:”General Osmar, pode alcançar meus documentos que estão no porta-luvas?” Imediatamente, o guarda desmanchava-se em desculpas e ia embora. Certo dia, teve um que tremeu tanto ao deparar-se com tão alta patente militar que General ficou com pena dele. No dia seguinte, comprou uma camisa e foi dá-la de presente ao guarda. Queria restaurar-lhe a dignidade da função policial que ele havia perdido com o incidente.
General também era dono de uma sutil ironia e um refinado senso de humor. Certa vez, ele, sua mulher Elizabeth e eu estávamos no seu carro quando surgiu uma mosca. Elizabeth, imediatamente, abaixou o vidro do carona para que a mosca saísse, mas ela não saiu. Então pediu: “Osmar, abaixa o teu vidro para a mosca sair”. General abaixou o vidro cerca de 15 cm. Como a mosca insistisse em ficar, Elizabeth tornou a pedir: Osmar, abaixa mais o teu vidro”. General abaixou-o mais uns 15 cm e nada da mosca sair. Elizabeth, já nervosa porque a mosca não saía, então falou braba: “Baixa mais esse vidro, Osmar!” E ele, já irritado: “Afinal, Elizabeth, de que tamanho é essa mosca?”
Dentre todos os dirigentes brasileiros não havia um só que não gostasse de General. Quando surgia um mal-estar entre a Confederação Brasileira de Remo e algum clube, federação ou alguém em particular, General sempre fazia uma ponte entre as partes. Não brigava com ninguém. Conhecia todo mundo e era conhecido por todos. Era a personificação do remo brasileiro.
O maior sonho de sua vida era ir a uma Olimpíada. Volta e meia falava nisso. Queixava-se que gente que fazia tão pouco pelo remo viajava para o exterior e ele nunca era lembrado.
No início de 1988, ano da Olimpíada de Seul, Arlindo Donato foi eleito presidente da CBR com apenas um voto de vantagem sobre José Manoel Gomes. Este, porém, tinha do seu lado as federações mais fortes do país, que não aceitavam Arlindo, cuja eleição tinha sido fruto de um arranjo de última hora, feito no próprio recinto da votação, na boca da urna. Na realidade, Arlindo nem candidato era, mas foi eleito no lugar de Ivaney Veloso de Oliveira, que era apoiado pelo então presidente Renato Borges da Fonseca. Mas como poucos queriam Ivaney na presidência, a situação “costurou” a candidatura de Arlindo no último momento, para não perder o comando da CBR.
O remo estava dividido. Três meses depois das eleições, Arlindo reconheceu que estava sem condições de assumir de fato a presidência. Morava em São Paulo, não era uma pessoa de posses e por isso raramente podia vir ao Rio, sede da CBR. E ainda tinha contra ele as mais fortes federações do país. Pediu então a Zé Gomes que formasse uma diretoria com homens de sua confiança, esperando assim atrair a oposição e pacificar o esporte. Nesta composição, coube-me a diretoria administrativa.
Aproximando-se a época de definir o chefe da equipe que iria a Seul, conversei com Mário Lamosa, então diretor técnico da CBR, o qual, pelo cargo ocupado, seria a pessoa mais indicada para a função. Pedi-lhe que abrisse mão dessa viagem em favor de General, tendo ele concordado prontamente. Mas, sem que soubéssemos, houve uma reunião do Comitê Olímpico Brasileiro, para a qual Arlindo foi convocado sem dar-nos conhecimento, onde foram definidos os chefes de equipes que iriam a Seul. Nunca soube o que aconteceu naquela reunião, mas o fato é que Arlindo saiu de lá como chefe da equipe brasileira de remo. Mais tarde, ele apareceu na CBR para comunicar sua designação. Eu e Mario Lamosa ficamos passados, mas nada mais podíamos fazer em favor de General.
Arlindo estava impedido de presidir de fato a CBR, mas não de ir a Seul.
A patente do General foi insuficiente para lhe garantir o exercício de um direito moralmente adquirido em meio século de dedicação exclusiva ao remo.
***
Às 22 horas do dia 12 de novembro de 1998, General, então com 74 anos, recebeu ordens superiores, vindas da máxima autoridade celestial, para voltar a ocupar o timão. Seu espírito acomodou-se no cockpit de um dois-com, foi para a raia, alinhou o barco e partiu pela última vez.
Quem sabe agora, de onde ele está, possa assistir confortavelmente a todas as Olimpíadas, pela eternidade afora.
No começo, eu olhava-o à distância. Não nos conhecíamos e ele não me dava importância. Eu era apenas mais um “catarina” aprendendo a remar. Um paranaense de Morretes que viera servir no 1º Batalhão de Polícia do Exército e tinha ido parar no Botafogo levado pelo colega de farda Edson Altino Pereira, remador do Clube de Regatas Aldo Luz, de Florianópolis. Tímido, ainda não adaptado ao Rio de Janeiro e muito menos à garagem de remo, eu ficava no meu canto, vendo aquele cara vermelho falando com um e outro, com a desenvoltura de quem conhece todo mundo.
Com o passar do tempo ele foi me dando um “oi!”, depois, perguntando como estava o iole a quatro que eu treinava com mais três “catarinas” e, por fim, me dando os parabéns quando estreei ganhando minhas primeiras medalhas, uma de prata (no iole a quatro) e outra de “ouro”, no iole a oito, onde os quatro catarinas dobraram.
Sua presença na garagem quebrava a monotonia que se instalava no local, depois do treino. O Botafogo ficava (e ainda fica) numa estranha construção abaixo do nível da rua, na curva do Calombo, invisível para quem passava de carro. Ônibus para lá, só o “157”, que costumava deixar os passageiros esperando no ponto durante horas. Por isso, só os próprios remadores apareciam por lá. Portanto, a chegada do General era sinônimo de novidades.
Mas assim como ele trazia noticias dos adversários, também levava as nossas para eles. General fazia a informação realmente circular, disponibilizava-a para quem se interessasse. Para ele, informação de remo era para ser compartilhada, nunca para ser retida. Ele era, já naquela época, uma espécie de Internet viva do remo, acessível a todo mundo. E às vezes esse papel não era bem compreendido. Como aconteceu comigo, por exemplo.
Quando fui escalado com Antonio Maria para correr um dois-com contra Alberto Blema e Assis Garcia Ramos, do Flamengo, toda a Lagoa achava que seríamos massacrados. Em conversas com General comentei que eu sonhava em dar um cacete nos campeões; que iria para a raia, no domingo (20/12/64), disposto a acabar com o reinado deles; que não os achava tão bons assim, e que se preparassem, pois eu iria encará-los.
Quando encostamos no pontão de largada, no dia da regata, Blema e Assis estavam com cara de poucos amigos. Nem ousei desejar-lhes “Boa prova, Flamengo!”, como era praxe entre os adversários.
Terminada a prova, que perdemos por escassos dois segundos, ouvi de Blema um monte de impropérios.
Mais tarde, pensando nas causas daquele incidente, deduzi que Blema e Assis tinham sido ‘envenenados’. Na hora, lembrei das confidências que tinha feito ao General e achei que ele era o responsável. Não me ocorreu que eu podia ter feito os mesmos comentários com alguém do meu clube, que falou para um amigo do Flamengo, que falou para Blema...O fato é que, para mim, General tinha fofocado e resolvi que, dali em diante, mediria as palavras sempre que ele estivesse por perto.
Mal podia imaginar que o futuro nos reservava uma estreita convivência e uma forte amizade.
Nos doze anos seguintes, enquanto durou minha carreira de remador e começou a de treinador, falávamos numa boa, mas sem intimidades. Até que, em meados de 1976, fui contratado para trabalhar na Confederação Brasileira de Desportos junto com General, que já estava lá há um ano. Nós éramos assessores de Lon Teixeira de Menezes, diretor do departamento de desportos aquáticos: eu para assuntos técnicos de remo, ele para assuntos administrativos. Eu programava eventos, criava cursos, preparava publicações, etc. e General cuidava das providências administrativas pertinentes. Tínhamos que trabalhar juntos, com os mesmos objetivos, e isso foi nos aproximando. Em poucos meses, já éramos como corda e caçamba.
Trabalhávamos incansavelmente. Quando tínhamos uma competição para organizar fora do Rio de Janeiro, viajávamos para lá com vários dias de antecedência e providenciávamos tudo que fosse necessário. Nessas ocasiões, trabalhávamos, geralmente, 12 a 14 horas por dia. Depois que a competição terminava e todos iam embora, ficávamos olhando a raia vazia, silenciosa, a água parada, sentindo tristeza por tudo ter acabado. Aquele rebuliço era uma das razões da nossa vida e o seu término deixava uma grande saudade, só não maior do que o orgulho que sentíamos por ter organizado tudo direito e a competição ter sido um sucesso.
Voltávamos, então, para o hotel e nos atirávamos em nossas camas, esgotados, achando que a qualquer hora teríamos um enfarte. Dormíamos 12 horas direto e, às vezes, até mais, para repor as forças gastas nos dias de preparação da regata. Quando acordávamos, já de madrugada, seguíamos um ritual: sempre pedíamos à copa dois pratos fundos de mingau de aveia, para repor as forças, e procurávamos na TV um filme de bang-bang, daqueles bem antigos. Quando achávamos algum, General recordava com alegria aqueles atores da época da sua juventude: Van Heflin, Richard Widmark, Gary Cooper, Broderick Crawford. Como eu também me amarrava no gênero, comíamos nosso mingau de aveia comentando “A lança partida”, “O jardim do pecado”, “Matar ou morrer” e outros westerns de sucessos da pré-história do cinema.
General nasceu em 27 de março de 1924 e sua vida sempre se confundiu com o remo. Toda sua família passou pelas garagens. Seu pai, Eduardo de Souza, tinha sido um grande remador do Clube de Regatas Jardinense, um dos primeiros clubes da Lagoa Rodrigo de Freitas, no início do século 20. Sua mãe, Antonieta Fonseca de Souza, também tinha remado, assim como seus tios, irmãos e primos. Não tinha escapado ninguém.
Ele começou no Botafogo, no fim dos anos 40, primeiro como colaborador, aquele tipo que sempre está na garagem porque gosta de remo e vai ajudando numa coisinha ou noutra. Depois passou a sair em barcos, timoneando e participando do treinamento.
No final dos anos 50, desentendeu-se com Clóvis Dutra, então diretor de remo do Botafogo, seu clube do coração, e transferiu-se para o Vasco. Lá timoneou muitos barcos vencedores, dentre eles o dois-com de Nelson Guarda e Rui Kopper,um dos melhores da história do remo carioca. General enchia-se de orgulho cada vez que falava desta guarnição, bem como dos sacrifícios que se impôs para manter-se dentro do peso. Fazia regimes faquirescos para não perder o posto de timoneiro. Acabou pagando caro pela fórmula mágica que fazia seu corpo de 1,80 m pesar cerca de 50 kg e caber no “cockpit” de um outrigger. Os anos de regime premiaram-no com uma tuberculose e ele foi obrigado a desistir do timão. Passou então a dedicar-se com exclusividade à prática do corujismo, bem menos desgastante.
Não lembro de, alguma vez, ter ouvido General maldizer a “sua” tuberculose. Pelo contrário, falava nela até com certo orgulho, como faziam os poetas de antigamente, e às vezes a brandia como se fosse um troféu. Afinal, a tuberculose simbolizava toda a sua dedicação, todo o seu amor pelo remo. General amou o remo de tal maneira que ofereceu seu corpo à tuberculose, em sacrifício pelo remo.
A habilidade em manejar cronômetros (que já vinha do seu gosto por corridas de cavalo) foi se aperfeiçoando de tanto marcar os tempos de qualquer coisa que se mexesse na Lagoa, principalmente barcos. Mesmo quando estes remavam naquele ritmo suave que General chamava de “vem cá, mulata!”, ele marcava a voga ou qualquer outra coisa. O fato é que os olhos estavam sempre atentos e o polegar de prontidão para disparar o cronômetro.
Para não perder tiro de nenhum barco, acordava às 4 horas da madrugada e ia para as margens da Lagoa. Escondia-se em algum lugar e começava a espionar. Como fazia isso quando tudo ainda estava escuro, ganhou a fama de “coruja” do remo.
General era, na realidade, o sargento Osmar de Souza, reformado pelo Exército Brasileiro como 2º tenente, depois que a tuberculose quase o matou.
O apelido de General foi dado por Frederico Haroldo Quarterolli, o Fred, à época jornalista do Diário Carioca e, depois, do Jornal dos Sports. Caiu muito bem entre o pessoal do remo (que adora colocar apelidos) e rapidamente se espalhou. Ele mesmo assimilou-o sem resistência: era bem melhor ser chamado de general do que de sargento ou 2º tenente, mesmo que fosse só de brincadeira.
Desde o início, este apelido o colocou em situações embaraçosas. Certa ocasião, em que ele era o timoneiro de um oito formado só por oficiais do Exército, apareceu no Botafogo um coronel, comandante da Brigada de Paraquedistas. Tinha ido prestigiar o treino, pois esse barco competiria contra guarnições da Marinha e da Aeronáutica, numa regata de militares. Quando o oito encostou na rampa, o comandante paraquedista aproximou-se. No momento em que General saltou do barco, alguém gritou: “E aí, General, como é que foi o treino?” O oficial paraquedista não vacilou: tomou posição de sentido, bateu-lhe continência e apresentou-se.
Nosso chefe, Lon Teixeira de Menezes, só o chamava de “General Osmar de Souza”. Certa vez, na época do governo militar, ambos foram a uma reunião no Conselho Nacional de Desportos. Sentados à mesa estavam vários dirigentes esportivos, militares de carreira, com patentes de brigadeiro, general, coronel e major (tudo de verdade!), alguns deles membros do próprio Conselho, outros representando confederações às quais pertenciam. A reunião já tinha começado quando surgiu Osmar de Souza. Incontinenti, Lon o chamou: “General Osmar de Souza, queira sentar-se à mesa conosco!” Muito sem graça, ele se aproximou e embora todos o tenham cumprimentado educadamente, ficou evidente o constrangimento dos mais “linha dura”. Um deles, o general Antonio Pires de Castro Filho, era quem mais se aborrecia com o apelido. Quando a reunião terminou, ele se aproximou e perguntou, com a sisudez e o vozeirão que lhe era peculiar: “General” Osmar de Souza, já vasculhei o Almanaque do Exército e não encontrei o seu nome. De que turma o senhor é?”
Certa vez saiu uma matéria sobre remo nos jornais, falando sobre a visita que o general Osmar de Souza faria a algumas federações estaduais. O general Pires de Castro não perdeu tempo e enviou uma carta a Lon Menezes, pedindo-lhe que informasse a arma e o exército a que pertencia o “general Osmar de Souza”. Em atenção ao “requerimento de informações”, Lon respondeu que o general Osmar de Souza era um ex-timoneiro do Botafogo e do Vasco da Gama, muito querido por remadores e dirigentes e que havia sido nomeado por eles o “general do remo”, numa carinhosa alusão ao seu passado militar. Ele, Lon, não via nada demais nisso. Afinal, não tinha o Vasco da Gama um “Almirante” (famoso dirigente do clube) e um “Coronel” (jogador de futebol)?
A televisão não tinha o seu “Capitão Asa” (animador de programa infantil)? O cantor Blecaute não era o “General da Banda”? Então porque o remo não podia ter o seu general?
Várias vezes aproveitei a sua presença no meu carro para escapar de multas por estacionar em local proibido. Quando o guarda chegava, era só falar:”General Osmar, pode alcançar meus documentos que estão no porta-luvas?” Imediatamente, o guarda desmanchava-se em desculpas e ia embora. Certo dia, teve um que tremeu tanto ao deparar-se com tão alta patente militar que General ficou com pena dele. No dia seguinte, comprou uma camisa e foi dá-la de presente ao guarda. Queria restaurar-lhe a dignidade da função policial que ele havia perdido com o incidente.
General também era dono de uma sutil ironia e um refinado senso de humor. Certa vez, ele, sua mulher Elizabeth e eu estávamos no seu carro quando surgiu uma mosca. Elizabeth, imediatamente, abaixou o vidro do carona para que a mosca saísse, mas ela não saiu. Então pediu: “Osmar, abaixa o teu vidro para a mosca sair”. General abaixou o vidro cerca de 15 cm. Como a mosca insistisse em ficar, Elizabeth tornou a pedir: Osmar, abaixa mais o teu vidro”. General abaixou-o mais uns 15 cm e nada da mosca sair. Elizabeth, já nervosa porque a mosca não saía, então falou braba: “Baixa mais esse vidro, Osmar!” E ele, já irritado: “Afinal, Elizabeth, de que tamanho é essa mosca?”
Dentre todos os dirigentes brasileiros não havia um só que não gostasse de General. Quando surgia um mal-estar entre a Confederação Brasileira de Remo e algum clube, federação ou alguém em particular, General sempre fazia uma ponte entre as partes. Não brigava com ninguém. Conhecia todo mundo e era conhecido por todos. Era a personificação do remo brasileiro.
O maior sonho de sua vida era ir a uma Olimpíada. Volta e meia falava nisso. Queixava-se que gente que fazia tão pouco pelo remo viajava para o exterior e ele nunca era lembrado.
No início de 1988, ano da Olimpíada de Seul, Arlindo Donato foi eleito presidente da CBR com apenas um voto de vantagem sobre José Manoel Gomes. Este, porém, tinha do seu lado as federações mais fortes do país, que não aceitavam Arlindo, cuja eleição tinha sido fruto de um arranjo de última hora, feito no próprio recinto da votação, na boca da urna. Na realidade, Arlindo nem candidato era, mas foi eleito no lugar de Ivaney Veloso de Oliveira, que era apoiado pelo então presidente Renato Borges da Fonseca. Mas como poucos queriam Ivaney na presidência, a situação “costurou” a candidatura de Arlindo no último momento, para não perder o comando da CBR.
O remo estava dividido. Três meses depois das eleições, Arlindo reconheceu que estava sem condições de assumir de fato a presidência. Morava em São Paulo, não era uma pessoa de posses e por isso raramente podia vir ao Rio, sede da CBR. E ainda tinha contra ele as mais fortes federações do país. Pediu então a Zé Gomes que formasse uma diretoria com homens de sua confiança, esperando assim atrair a oposição e pacificar o esporte. Nesta composição, coube-me a diretoria administrativa.
Aproximando-se a época de definir o chefe da equipe que iria a Seul, conversei com Mário Lamosa, então diretor técnico da CBR, o qual, pelo cargo ocupado, seria a pessoa mais indicada para a função. Pedi-lhe que abrisse mão dessa viagem em favor de General, tendo ele concordado prontamente. Mas, sem que soubéssemos, houve uma reunião do Comitê Olímpico Brasileiro, para a qual Arlindo foi convocado sem dar-nos conhecimento, onde foram definidos os chefes de equipes que iriam a Seul. Nunca soube o que aconteceu naquela reunião, mas o fato é que Arlindo saiu de lá como chefe da equipe brasileira de remo. Mais tarde, ele apareceu na CBR para comunicar sua designação. Eu e Mario Lamosa ficamos passados, mas nada mais podíamos fazer em favor de General.
Arlindo estava impedido de presidir de fato a CBR, mas não de ir a Seul.
A patente do General foi insuficiente para lhe garantir o exercício de um direito moralmente adquirido em meio século de dedicação exclusiva ao remo.
***
Às 22 horas do dia 12 de novembro de 1998, General, então com 74 anos, recebeu ordens superiores, vindas da máxima autoridade celestial, para voltar a ocupar o timão. Seu espírito acomodou-se no cockpit de um dois-com, foi para a raia, alinhou o barco e partiu pela última vez.
Quem sabe agora, de onde ele está, possa assistir confortavelmente a todas as Olimpíadas, pela eternidade afora.
5 comentários:
General, foi sem dúvida uma das mais queridas figuras do Remo, lembro que o Buck tentava esconder os tempos de nossas guarnições, e nos fazia remar a noite, apesar disto o danado do General foi visto no estádio do Remo nos espionando o que provocava as mais iradas blasfêmias do nosso Buck
SAUDADES
Paulo Bandeira de Mello (Paulo Michinha).
Há figuras na vida que são absolutamente notáveis, caro Paulo. Às vezes, a minha parte boa inveja essas personalidades. É uma inveja boa, misturada com certa admiração. Como sou apaixonado pelo remo, o General sem estrelas era uma das pessoas que eu gostaria muito de ter conhecido. V. teve esse privilégio.
Abraços Gloriosos.
Nunca fui remador, mas convivi com general Osmar, assim como Wilson Reeberg, por algum tempo. Foi muito bom tê-los conhecidos.
E a minha inveja aumentando, caro desconhecido, por não tê-los conhecido. Mas feliz por V. poder ter essas magníficas recordações e vida. Abraços Gloriosos!
Nossa Tarzan!!! Que história fantástica!!! Que narrativa. Abraço, Cesar Seara Neto
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