[Aos leitores interessados informa-se que as crônicas de Lúcia Senna no Mundo Botafogo foram publicadas em livro intitulado 'No embalo da Rede', 148 p.]
por LÚCIA
SENNA | Escritora e Cantora | Cronista do Mundo Botafogo
Conviver com um zumbido no ouvido por vinte e
seis anos é quase uma relação de casamento, daquelas bem tóxicas. A gente até
aprende a conviver, mas nunca se acostuma. No meu caso, o relacionamento
começou cedo. Nunca houve pausas, férias ou um momento de silêncio. Um
companheiro fiel, mas com uma voz aguda e estridente, assim como um motor de
geladeira em fim de carreira que insiste em ser a trilha sonora da minha vida.
Claro que jamais fiquei de braços cruzados
ouvindo esse podcast do inferno. Já
fiz de tudo. Rezei para todos os santos e posso garantir que não encontrei a
Nossa Senhora do Zumbido. Se existisse, eu já teria levantado um altar no
quarto e acendido velas com aroma de silêncio. Fiz promessas para as entidades
da Umbanda, do Candomblé e do Xambá. Subi escadas de igrejas de joelhos (inclusive,
o joelho tá bem melhor que o ouvido).
Fui a São Paulo me consultar com uma médica
famosíssima – dessas que têm currículo maior que bula de antidepressivo. Fui
quase obrigada a comprar um livro de sua autoria: “Quem disse que zumbido não
tem cura?” Pra compensar, ganhei de amostra grátis um comprimido novo que,
segundo ela, tem ajudado muitos pacientes. No meu caso, ajudou o zumbido a
entrar em modo turbo. A médica, com a naturalidade de quem comenta a previsão
do tempo, me disse através de vídeo chamada que, em casos raros, isso podia
acontecer. Devo ser o pokémon do zumbido raro.
Mas… sigo firme! Nunca se sabe quando o
milagre auditivo vai acontecer. Há três dias, numa dessas crises mais agudas em
que o zumbido sobe o tom, tal qual cantor de karaokê empolgado, fui ao encontro
de um outro otorrino indicado por uma prima. Ela me disse que ele era jovem,
pesquisador, super atualizado, humano, competente – desses que respiram ciência
no café da manhã. Que maravilha, pensei! O combo perfeito! E lá estava eu,
acompanhada da minha fiel escudeira: uma pasta abarrotada de exames, assim como
quem leva provas para um tribunal celestial.
Chego na hora marcada e esperei quase duas
horas para ser atendida. Finalmente, chamam o meu nome. Entro animada. Diante
de mim, um homem bonito, simpático e muito, muito falante. Um verdadeiro
protagonista de série médica da Netflix.
– Em que posso te ajudar? – perguntou
sorrindo.
Aproveito o gancho e disparo:
– Tenho zumbido no ouvido esquerdo há vinte e
seis anos. Trouxe os últimos exames...
Foi nesse momento que a situação virou
tragicômica. Ele me interrompeu subitamente e eu ainda estava no prefácio da
minha dor. Ele, ao contrário, já estava lançando a autobiografia. Começou, a
partir daí, um animado monólogo sobre... ele mesmo! Contou das cirurgias que realizava,
das pessoas que havia ajudado a respirar melhor (e tudo o que eu queria, era
ouvir melhor), das palestras, dos cursos, dos congressos e da paixão pelas vias
aéreas. Falou de otites com um brilho nos olhos que, sinceramente, invejei.
Tentei, juro, enfiar o zumbido no meio da
conversa. Tudo em vão. A mim só me restava prestar atenção sobre o sucesso da
carreira dele. Enquanto isso, o zumbido esperneava. Em alguns momentos tossi levemente,
levantei a sobrancelha, balancei a pasta como quem diz: “tenho provas!”. Mas
nada o fazia parar de falar. Ele estava inspirado. Sim, o fato é que o otorrino
não me deu ouvidos.
O melhor, no entanto, ainda estava por vir.
No meio da “palestra”, ele solta, com cara de quem compartilha um segredo íntimo,
uma revelação bombástica:
– Eu também tenho zumbido no ouvido esquerdo.
Arregalei os olhos, esperançosa! Uma mistura
de alívio e empatia me invadiram. Era como se eu acabasse de encontrar um companheiro
de trincheira, irmão de chiado! Enfim, alguém que entenderia minha luta
incessante, minhas madrugadas insones, meus testes malucos com tampão de ouvido
e a caça por ruídos brancos no YouTube. Mas o momento de conexão foi breve. E
com a maior seriedade, ele me perguntou:
– Você tem alguma receita caseira que funcione?
Foi a minha vez de fazer ouvido de mercador.
Por dentro, o Zumbido gargalhava. Ele, então, resolveu compartilhar sua técnica
pessoal:
– Tomar um banho bem quente, demorado,
deixando a água cair abundantemente sobre os cabelos, sacudir a cabeça com
força e sair do banho cantarolando uma música bem alto. A minha preferida é “La
Bamba”. Mas pode ser outra a teu gosto. Importante é que seja bem animada,
entendes?
Senti uma vontade grande de olhar para uma
câmera que não existia e dizer:
– Vocês estão vendo isso, né?
Olhei para ele. Olhei para a pasta. Olhei
para o teto. Paguei a consulta. Saí da clínica com uma única certeza: o zumbido, além de tudo, tem um senso de
humor muito peculiar. Quanto à pasta apinhada de exames, vou vendê-la no sebo e
comprar uma caixa de espuma acústica.
E hoje, enquanto escrevo essa crônica, sigo
ouvindo o mesmo zumbido de sempre – agora, com um leve eco de “La Bamba”,
graças ao ritual do dr. Karaokê.
Sem comentários:
Enviar um comentário