quarta-feira, 20 de agosto de 2025

O otorrino não me deu ouvidos

[Aos leitores interessados informa-se que as crônicas de Lúcia Senna no Mundo Botafogo foram publicadas em livro intitulado 'No embalo da Rede', 148 p.]

por LÚCIA SENNA | Escritora e Cantora | Cronista do Mundo Botafogo

Conviver com um zumbido no ouvido por vinte e seis anos é quase uma relação de casamento, daquelas bem tóxicas. A gente até aprende a conviver, mas nunca se acostuma. No meu caso, o relacionamento começou cedo. Nunca houve pausas, férias ou um momento de silêncio. Um companheiro fiel, mas com uma voz aguda e estridente, assim como um motor de geladeira em fim de carreira que insiste em ser a trilha sonora da minha vida.

Claro que jamais fiquei de braços cruzados ouvindo esse podcast do inferno. Já fiz de tudo. Rezei para todos os santos e posso garantir que não encontrei a Nossa Senhora do Zumbido. Se existisse, eu já teria levantado um altar no quarto e acendido velas com aroma de silêncio. Fiz promessas para as entidades da Umbanda, do Candomblé e do Xambá. Subi escadas de igrejas de joelhos (inclusive, o joelho tá bem melhor que o ouvido).

Fui a São Paulo me consultar com uma médica famosíssima – dessas que têm currículo maior que bula de antidepressivo. Fui quase obrigada a comprar um livro de sua autoria: “Quem disse que zumbido não tem cura?” Pra compensar, ganhei de amostra grátis um comprimido novo que, segundo ela, tem ajudado muitos pacientes. No meu caso, ajudou o zumbido a entrar em modo turbo. A médica, com a naturalidade de quem comenta a previsão do tempo, me disse através de vídeo chamada que, em casos raros, isso podia acontecer. Devo ser o pokémon do zumbido raro.

Mas… sigo firme! Nunca se sabe quando o milagre auditivo vai acontecer. Há três dias, numa dessas crises mais agudas em que o zumbido sobe o tom, tal qual cantor de karaokê empolgado, fui ao encontro de um outro otorrino indicado por uma prima. Ela me disse que ele era jovem, pesquisador, super atualizado, humano, competente – desses que respiram ciência no café da manhã. Que maravilha, pensei! O combo perfeito! E lá estava eu, acompanhada da minha fiel escudeira: uma pasta abarrotada de exames, assim como quem leva provas para um tribunal celestial.

Chego na hora marcada e esperei quase duas horas para ser atendida. Finalmente, chamam o meu nome. Entro animada. Diante de mim, um homem bonito, simpático e muito, muito falante. Um verdadeiro protagonista de série médica da Netflix.

– Em que posso te ajudar? – perguntou sorrindo.

Aproveito o gancho e disparo:

– Tenho zumbido no ouvido esquerdo há vinte e seis anos. Trouxe os últimos exames...

Foi nesse momento que a situação virou tragicômica. Ele me interrompeu subitamente e eu ainda estava no prefácio da minha dor. Ele, ao contrário, já estava lançando a autobiografia. Começou, a partir daí, um animado monólogo sobre... ele mesmo! Contou das cirurgias que realizava, das pessoas que havia ajudado a respirar melhor (e tudo o que eu queria, era ouvir melhor), das palestras, dos cursos, dos congressos e da paixão pelas vias aéreas. Falou de otites com um brilho nos olhos que, sinceramente, invejei.

Tentei, juro, enfiar o zumbido no meio da conversa. Tudo em vão. A mim só me restava prestar atenção sobre o sucesso da carreira dele. Enquanto isso, o zumbido esperneava. Em alguns momentos tossi levemente, levantei a sobrancelha, balancei a pasta como quem diz: “tenho provas!”. Mas nada o fazia parar de falar. Ele estava inspirado. Sim, o fato é que o otorrino não me deu ouvidos.

O melhor, no entanto, ainda estava por vir. No meio da “palestra”, ele solta, com cara de quem compartilha um segredo íntimo, uma revelação bombástica:

– Eu também tenho zumbido no ouvido esquerdo.

Arregalei os olhos, esperançosa! Uma mistura de alívio e empatia me invadiram. Era como se eu acabasse de encontrar um companheiro de trincheira, irmão de chiado! Enfim, alguém que entenderia minha luta incessante, minhas madrugadas insones, meus testes malucos com tampão de ouvido e a caça por ruídos brancos no YouTube. Mas o momento de conexão foi breve. E com a maior seriedade, ele me perguntou:

– Você tem alguma receita caseira que funcione? 

Foi a minha vez de fazer ouvido de mercador. Por dentro, o Zumbido gargalhava. Ele, então, resolveu compartilhar sua técnica pessoal:

– Tomar um banho bem quente, demorado, deixando a água cair abundantemente sobre os cabelos, sacudir a cabeça com força e sair do banho cantarolando uma música bem alto. A minha preferida é “La Bamba”. Mas pode ser outra a teu gosto. Importante é que seja bem animada, entendes?

Senti uma vontade grande de olhar para uma câmera que não existia e dizer: 

– Vocês estão vendo isso, né? 

Olhei para ele. Olhei para a pasta. Olhei para o teto. Paguei a consulta. Saí da clínica com uma única certeza:  o zumbido, além de tudo, tem um senso de humor muito peculiar. Quanto à pasta apinhada de exames, vou vendê-la no sebo e comprar uma caixa de espuma acústica. 

E hoje, enquanto escrevo essa crônica, sigo ouvindo o mesmo zumbido de sempre – agora, com um leve eco de “La Bamba”, graças ao ritual do dr. Karaokê.

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