General Severiano
em 1913
por Mauro Beting
Lancenet, 02.05.2013
A razão e a ciência tentam explicar o mundo. Para todas as outras coisas
inexplicáveis existe o Botafogo.
“Enquanto todos os
outros torcedores vão ao jogo de futebol para escapar da vida, nós, botafoguenses,
vamos ao estádio para entendê-la melhor”. Explica João Moreira Salles, um dos
selecionados no escrete de finíssima arquibancada gloriosa que escala Vinicius
de Moraes, Clarice Lispector, Luis Fernando Verissimo, Otto Lara Resende, Ivan
Lessa, Armando Nogueira, João Saldanha, Paulo Mendes Campos, Glauber Rocha,
Fernando Sabino, Olavo Bilac, Antonio Candido, Sandro Moreyra, Emir Sader.
Tantos alvinegros de berço e de General Severiano.
São cem anos do
estádio do clube que mais atletas cedeu à maior seleção do futebol mundial. São
60 anos de um treino em que o craque-bandeira Nilton Santos levou um baile de
um anjo diabólico que driblava certo com pernas tortas. Quando Mané Garrincha
ganhou um lugar no clube e na história do futebol. Gênio e Alegria do Povo.
Craque tipicamente botafoguense. Pode existir outro atleta neste mundo como o
E.T. Pelé. Mas um novo Mané, daquele jeito, naquelas pernas, isso não existe.
Isso é Botafogo. Aquilo foi em General Severiano, em 1953. Onde todos os
grandes craques e ídolos do clube atuaram até o último jogo, em 1974. Onde
Heleno foi ele no melhor jeito e nos melhores jogos.
Garrincha não se
explica pela ciência e pela bola. Botafogo não quer e não pede explicação. Como
diz o botafólogo Lúcio Rangel: “Eu não gosto de futebol. Gosto do
Botafogo”. É isso. Não precisa ter título – e tem muitos. Não precisa ter
craque – e teve tantos. Não precisa ter um estádio – teve vários. Não precisa
ter mais torcida, mais dinheiro, mais poder, mais vitórias, mais, muitos. Só precisa
Mané. Só precisa de um canto para ser Botafogo. Não precisa nem mesmo ter uma
casa. Pode alugar. Pode arrendar. Pode demolir. Pode tudo. Pode até ficar
errando de campo em cancha.
Mas é preciso
Botafogo. Por mais impreciso que seja.
É preciso contar General
Severiano. Lar do Glorioso. Da Estrela Solitária até quando o clube e os cofres
se perderam num buraco negro.
Botafogo da
primeira cancha na Humaitá até o ground da Voluntários da Pátria – que
foi vendido e virou rua General Dionísio (sempre existem patentes estreladas na
história única do Botafogo). Quando o clube ficou com apenas 12 sócios em 1912,
Marechal Hermes da Fonseca (mais um estrelado, e que não se perca pelo nome…)
deu ao Botafogo a concessão do terreno na rua General Severiano por sete anos –
outro sete cabalístico do clube de Mané, de Maurício e de Túlio Maravilha.
General Severiano em 1930
Os abnegados
botafoguenses (uma redundância) construíram o campo que só podia inaugurar no
ano 13. 1913. No Dia 13. Treze de maio. 13 de maio de 13. Saravá, Zagallo – e
não preciso contar quantas letras tem a frase anterior.
Só podia ser em
Botafogo. No Botafogo. Não tinha mais match na pedreira da Assunção, ou
na charneca da rua São Clemente. O que era um casarão em ruínas no bairro virou
um campo para treinar. Para jogar. Para ser Botafogo. Para colocar luz no
estádio em 1930. Para fazer drenagem pioneira no país. Para fazer campanha por
cimento e ampliar as arquibancadas para 25 mil pessoas, reinaugurando a praça
de futebol em 1938, com vitória sobre o Fluminense. Dez anos antes do último
título conquistado no lindo estádio de espírito. O Estadual de 1948. Com
vitória sobre o Vasco.
As grandes datas
de General Severiano sempre têm um rival vencido. Como no primeiro clássico. Em
1913. Um a zero no Flamengo. Gol de Mimi Sodré. Sem mimimi. Só mais um fino
craque de bola e sem cartola. Não por acaso, outra expressão nascida em General
Severiano: “cartola” para definir um dirigente de clube.
Por mais inefável
que tenha sido um diligente como o dirigente Carlito. Não houve cartola no
clube e no Brasil como Carlito Rocha. Ele amarrava e dava nós nas cortinas do
palácio Wenceslau Brás para travar e marcar os rivais… Ele, Carlito, que adotou
Biriba. Cão preto e branco que virou craque campeão estadual em 1948. Só por
que em um jogo de aspirantes contra o Madureira o cachorro invadiu o gramado
durante e partida. Virou mascote. Virou símbolo. Virou Botafogo.
General Severiano
onde Carlito Rocha viu “sangue, suor e lágrimas dos botafoguenses”. Onde só se
viu quase tudo isso – menos botafoguenses – na venda da área de General
Severiano para a Companhia Vale do Rio Doce, em 1977. Quando o clube virou
suburbano em mais uma patente estrelada – Marechal Hermes. Depois atravessaria
a ponte para jogar em Niterói, em Caio Martins. Este século faria festa e jogos
no Engenhão.
Mas quando ficou
distante de Botafogo, a partir de 1977, o clube se perdeu por muito tempo. Nada
mais ganhou até 1989. Em 1995, quando voltou a ser o maior do Brasil, foi no
mês em que o clube voltou definitivamente a General Severiano. No estádio onde
se vê o Corcovado e o Pão de Açúcar. Onde Carlito, nas tardes cinzas como as
meias gloriosas, pedia ao roupeiro Aloísio para que soprasse as nuvens que
cobriam o Cristo Redentor para que ele pudesse enxergar o Glorioso… Coisa de
Carlito. Caso de Botafogo. Na casa alvinegra por excelência. Por uso campeão.
General Severiano em 1938
O Maracanã foi
tirando o Botafogo de General Severiano a partir de 1950. Mas jamais o Botafogo
tirou General Severiano da alma. É mítico. É um mistério. É de quem tem
estrela. “O Botafogo é mais que um clube. É uma predestinação celestial”,
defendia Armando Nogueira. Um que veio do Acre para ver naquele pedaço de terra
do Rio muito do que é o futebol. Não apenas pela qualidade. Mas por aquilo que
não se quantifica. Poucas coisas são tão “futebol” quanto o Botafogo. Essa
perfeita imperfeição inventada pelo homem tem no clube carioca umas das mais
precisas traduções e preciosas tradições.
Paulo Mendes
Campos, sumidade botafoguense (outra redundância), disse que “o Botafogo é um
menino de rua perdido na poética dramaticidade do futebol.” Com tantas casas e
mudanças, o clube até pode ter se perdido. Mas raros são os casos no futebol de
clubes que voltam para casa. Raríssimos têm um lar com tanta história como
aquela rua de Botafogo.
Aquele menino da
rua General Severiano, de fato, ganhou no drama do esporte uma história
centenária de vida. “Quando o Botafogo está em campo há sempre mais coisas
entre uma trave e outra além de 23 sujeitos e uma bola”, afirma João Moreira
Salles.
Quando o Botafogo
está em General Severiano, não precisa nenhum atleta, nem árbitro, nem bola.
Basta uma estrela.
A estrela.
Centenária.
Mauro Beting,
jornalista esportivo há 22 anos. Não viu jogo em General Severiano em 46 anos
de vida. Mas não precisa ter visto para saber que o do Botafogo é o campo dos
sonhos. Como o do delírio do primeiro prélio, o da foto, em maio de 1913.
(Este texto seria
para um posfácio de um livro que será lançado a respeito dos 100 anos do
estádio.
Mas não será por
que não sou Botafogo.
Isso é Botafogo.
Nem sempre fácil
de entender. Mas sempre respeitável e admirável.
Parabéns para o
centenário General Severiano e para todas as patentes e estrelas.
Parabéns para
todas as solidárias estrelas alvinegras que fizeram esta história linda como a
geografia do Rio e de Botafogo).
P.S.: Queria
dedicar estas palavras a um amigo que perdeu há um mês o amor da vida dele. O
João Almeida. Acabei de saber da perda. Não tive palavras a ele. Mas como ele
entende de vida, de Botafogo e, por tabela, de amor, sabe muito bem o que é uma
paixão incondicional.
O que é um
Botafogo.
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