por Rui Miguel Tovar, reputado jornalista
desportivo português
Jornal
i – publicado em 21.06.2014
Oito jogadores brasileiros trocam a bola antes do
capitão Carlos Alberto Torres fixar o 4-1
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Pelé,
número 10 do Santos. Jairzinho, 10 do Botafogo. Gérson, 10 do São Paulo.
Rivelino, 10 do Corinthians. Tostão, 10 do Cruzeiro. Cinco 10. É o Brasil do
tri.
O
seleccionador é Mário Jorge Lobo Zagallo, campeão mundial em 58 e 62 como
ponta-esquerda, mas não é ele que joga a qualificação. Esse é João Saldanha,
meio técnico, meio jornalista. Em 1957, o Botafogo contrata-o apesar da sua
total falta de experiência e sagra-se campeão estadual do Rio. Dois anos
depois, Saldanha é convidado por João Havelange, então presidente da CBD
(Confederação Brasileira de Desporto), para assumir o escrete. "Talvez
assim os jornalistas não critiquem a selecção tantas vezes", numa alusão à
profissão de João Saldanha, também conhecido como João Sem Medo, por se recusar
a convocar os jogadores propostos por Emílio Garrastazu Médici, presidente em
plena Ditadura Militar. A campanha de apuramento é exemplar, só vitórias (seis)
e apenas dois golos sofridos.
Os
problemas começam depois. João reabilita a selecção, humilhada na Copa-66 com a
eliminação na fase de grupos aos pés de um estreante (Portugal), mas a sua
ligação ao Partido Comunista, os rumores de desentendimentos com o preparador
físico e a constante recusa em chamar Dadá Maravilha, protegido de Médici,
ditam a demissão.
Isso
mais as polémicas declarações. Perguntam-lhe uma vez sobre o estado do relvado
no Beira-Rio. "Sei lá, nunca comi relva na vida." Até na hora do
adeus, a incontinência verbal é uma realidade. "A comissão técnica foi
dissolvida? Não sou sorvete, não posso ser dissolvido."
Havelange
chama então Dino Sani, mas as exigências dele são exageradas. A segunda opção é
Otto Glória, o homem do terceiro lugar de Portugal na Copa-66, e o cenário
repete-se. Ambos pedem muito dinheiro e aí não dá. Surge então a alternativa do
plano B. É ele Zagallo, vencedor da Taça do Brasil-68 pelo Botafogo. Nos
primeiros tempos, o novo treinador não reúne os cinco 10 no mesmo onze. O intruso
é Paulo César Caju no lugar de Tostão. Um particular fracassado com a Bulgária
B (0-0) no Morumbi, em São Paulo, vale uma assobiadela monstra ao apagado Caju,
do Botafogo, e só aí é que Zagallo se convence da mais-valia de Tostão (então a
moeda nacional brasileira). Mas como reunir os dez todos no onze? Na base da
conversa.
Tostão
vira um 9, Rivelino vai para a esquerda e Jairzinho para a direita. Há dois
médios fenomenais como Piazza e Clodoaldo mas é preciso que um deles recue se
quiser jogar. Zagallo puxa Piazza para central e o 4-3-3 é um carrossel humano.
Para manter a organização, Gérson vira o capitão de corpo e alma, a voz de
comando do treinador dentro de campo, enquanto Carlos Alberto é tão-só o
portador da braçadeira.
Há
nuances entre o onze do João Sem Medo e o de Zagallo? Ah pois. Cláudio; Carlos
Alberto Torres, Djalma Dias, Joel e Rildo; Piazza e Gerson; Jairzinho, Pelé,
Tostão e Edu é o de Saldanha. Agora vejam as diferenças para o de Zagallo:
Félix; Carlos Alberto Torres, Brito, Piazza e Marco António (Everaldo);
Clodoaldo, Gérson e Rivelino; Jairzinho, Tostão e Pelé.
O
Mundial-70 é um hino à magia, com exibições e golos do outro mundo. Ao todo,
seis vitórias com 19 golos, sete deles de Jairzinho, conhecido como Furacão da
Copa por ter marcado em cada um dos jogos (Checoslováquia, Inglaterra, Roménia,
Peru, Uruguai e Itália). Como se diz aqui, "foi chover no molhado". É
a gloriosa vitória do futebol moleque sobre a táctica, com todos os jogadores a
ocuparem as mais variadas posições, quatro anos antes do denominado futebol
total da Holanda de Rinus Michels.
A
selecção de 1970 é uma conjunção mágica de um plantel de jogadores não apenas
qualificados tecnicamente, mas também dotados de grande inteligência táctica.
Juntos se exibem a um nível técnico jamais visto e nunca mais repetido, até
hoje falado como a melhor selecção de sempre. A final do Azteca, na tarde de 21
de Junho, é o capítulo final dessa constelação de estrelas.
O
Brasil coloca-se em vantagem com um extraordinário cabeceamento de Pelé, lá no
alto. "Pensei que era de carne e osso, enganei-me", desabafa
Burgnich, marcador do Rei. Roberto Boninsegna ainda empata para a Itália, após
um erro da defesa, mas o Brasil dá um chocolate na segunda parte. Gérson faz o
2-1 num fantástico pontapé do meio da rua e depois inicia a jogada do 3-1, da
autoria de Jairzinho, a passe de Pelé. O 10 (do Santos e do Brasil) faria
também a assistência açucarada para o 4-1 de Carlos Alberto Torres, após uma
série de toques e tiques, não sei quantos anos antes do tiki-taka.
Um
total de oito jogadores tocam na bola até o capitão martelar a bola no bico da
grande área para o ângulo inferior de Albertosi. A festa do título é tão
intensa e espectacular como a campanha do Brasil de Saldanha mais o de Zagallo.
Os adeptos invadem o campo, levam os jogadores em ombros e arrancam as roupas
deles. É o máximo.
Nota
do Mundo Botafogo: O reputado Rui Miguel Tovar quer, evidentemente,
realçar a magia do time tricampeão de 1970, onde pontificou o ataque botafoguense constituído por Jairzinho, Paulo Cezar Caju, Roberto Miranda e ainda Gerson, que embora tivesse sido negociado com o São Paulo acabara de sair do Glorioso e por ele havia sido convocado nos jogos de classificação. Publico este belo
artigo apologético pelo seu valor intrínseco, mas quero realçar que o tiki-taka do Brasil 1970 não tinha nenhuma comparação com o tiki-taka do Barcelona atual, que é, em
minha opinião, um futebol chato e horizontal, muitíssimo aquém do futebol
espetáculo de grandes times mundiais, como as seleções da Hungria em 1954 e do
Brasil em 1970 ou algumas formações do Real Madrid da década de 1960 ou do Ajax
da década de 1970, cujo futebol era entusiasmante e vertical e enchia os estádios
de êxtase futebolístico. Se o futebol do Barcelona século XXI é chato, o do Brasil 1970 era mágico.
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