por CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Jornal
do Brasil, 22.01.1983
A necessidade
brasileira de esquecer os problemas agudos do país, difíceis de encarar, ou
pelo menos de suavizá-los com uma cota de despreocupação e alegria, fez com que
o futebol se tornasse a felicidade do povo. Pobres e ricos param de pensar para
se encantar com ele. E os grandes jogadores convertem-se numa espécie de irmãos
da gente, que detestamos ou amamos na medida em que nos frustram ou nos
proporcionam o prazer de um espetáculo de 90 minutos, prolongado
indefinidamente nas conversas e mesmo na solidão da lembrança.
Mané Garrincha foi um
desses ídolos providenciais com que o acaso veio ao encontro das massas
populares e até dos figurões responsáveis periódicos pela sorte do Brasil,
ofertando-lhes o jogador que contrariava todos os princípios sacramentais do
jogo, e que no entanto alcançava os mais deliciosos resultados. Não seria mesmo
uma indicação de que o país, despreparado para o destino glorioso que
ambicionamos, também conseguiria vencer suas limitações e deficiências e chegar
ao ponto de grandeza que nos daria individualmente o maior orgulho, pela
extinção de antigos complexos nacionais? Interrogação que certamente não
aflorava ao nível da consciência, mas que podia muito bem instalar-se no
subterrâneo do espírito de cada patrício inquieto e insatisfeito consigo mesmo,
e mais ainda com o geral da vida.
Garrincha, em sua
irresponsabilidade amável, poderia, quem sabe?, fornecer-nos a chave de um
segredo de que era possuidor e que ele mesmo não decifrava, inocente que era da
origem do poder mágico de seus músculos e pés. Divertido, espontâneo,
inconsequente, com uma inocência que não excluía espertezas instintivas de
Macunaíma – nenhum modelo seria mais adequado do que esse, para seduzir um povo
que, olhando em redor, não encontrava os sérios heróis, os santos miraculosos
de que necessita no dia-a-dia.
A identificação da
sociedade com ele fazia-se naturalmente. Garrincha não pedia nada a seus
admiradores; não lhes exigia sacrifícios ou esforços mentais para admirá-lo e
segui-lo, pois de resto não queria que ninguém o seguisse. Carregava nas costas
um peso alegre, dispensando-nos de fazer o mesmo. Sua ambição ou projeto de
vida (se é que, em matéria de Garrincha, se pode falar em projeto) consistia no
papo de botequim, nos prazeres da cama, de que resultasse o prazer de novos
filhos, no descompromisso, afinal, com os valores burgueses da vida.
Não sou dos que
acusam dirigentes do esporte, clubes, autoridades civis e torcedores em geral,
de ingratidão para com Garrincha. Na própria essência do futebol profissional
se instalam a ingratidão e a injustiça. O jogador só vale enquanto joga, e se
jogar o fino. Não lhe perdoam a hora sem inspiração, a traiçoeira indecisão de
um segundo, a influência de problemas pessoais sobre o comportamento na
partida. É pago para deslumbrar a arquibancada e a cadeira importante, para nos
desanuviar a alma, para nos consolar dos nossos malogros, para encobrir as
amarguras da Nação. Ele julga que entrou em campo a fim de defender o seu
sustento, mas seu negócio principal será defender milhões de angustiados
presentes e ausentes contra seus fantasmas particulares ou coletivos. Garrincha
foi um entre muitos desses infelizes, dos quais só se salva um ou outro
predestinado, de estrela na testa, como Pelé.
A simpatia nacional
envolveu Mané em todos os lances de sua vida, por mais desajustada que fosse, e
isso já é alguma coisa que nos livra de ter remorso pelo seu final triste. A
criança grande que ele não deixou de ser foi vitimada pelo germe de
autodestruição que trazia consigo: faltavam-lhe defesas psicológicas que
acudissem ao apelo de amigos e fãs. Garrincha, o encantador, era folha ao
vento. Resta a maravilhosa lembrança de suas incríveis habilidades, que farão
sempre sorrir a quem as recordar. Basta ver um filme dos jogos que ele
disputou: sente-se logo como o corpo humano pode ser instrumento das mais
graciosas criações no espaço, rápidas como o relâmpago e duradouras na memória.
Quem viu Garrincha atuar não pode levar a sério teorias científicas que preveem
a parábola inevitável de uma bola e asseguram a vitória – que não acontece.
Se há um deus que
regula o futebol, esse deus é sobretudo irônico e farsante, e Garrincha foi um
de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos, nos estádios. Mas
como é também um deus cruel, tirou do estonteante Garrincha a faculdade de
perceber sua condição de agente divino. Foi um pobre e pequeno mortal que
ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é que as tristezas
voltam, e não há outro Garrincha disponível. Precisa-se de um novo, que nos
alimente o sonho.
2 comentários:
Um texto maravilhoso e que nos faz refletir nos tempos de hoje,e novamente a nossa imprensa ao montar os 11 melhores de todos os tempos entre Brasil e Argentina,deixaram de fora,não sei se de proposito,Garrincha e Maradona.É um absurdo!!!
Virou moda fazer jornalismo assim por aqui.
Depois a propria imprensa esportiva diz que devemos valorizar a memoria do Garrincha,sendo que a mesma rasga a historia,seja ela do Garrincha,do Botafogo e até mesmo da seleção.
O jornalismo era uma das áreas de minha eleição quando era jovem. Hoje tenho repugnância pela maior parte do jornalismo, no qual os jornalistas são meras peças seguidoras de uma rotativa comandada por forças obscurantistas, inéticas e imorais. A minha filha foi diretora de uma revista e acabou por se demitir - o que a muitos surpreendeu - porque não aceitou vergar a linha editorial a interesses estranhos. Percebeu em que o jornalismo se estava tornando, fez um 'percurso no deserto' e mudou radicalmente a agulha da sua vida. É diretora de produção teatral, atriz e encenadora. Assimvai o jornalismo desportivo: Montar os 11 melhores sem 2 dos 4 melhores - Garrincha e Maradona - é exatamente igual ao que fez La Liga espanhola quando recentemente colocou à eleição os maiores craques do futebol espanhol e 'esqueceu-se' de mencionar.... Cristiano Ronaldo!!!
Um tal jornalismo merece ser avaliado ao nível da obscenidade!
Abraços Gloriosos.
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