Charge de
Henfil. In Jornal dos Sports, 22 de junho de 1968, p. 4.
por
ANTÔNIO SÁ | Fiscal de Rendas aposentado do Município do Rio de Janeiro,
Ex-Subsecretário de Assuntos Legislativos e Parlamentares do Município do Rio
de Janeiro. Bacharel em Direito e Economia | In diariodorio.com | 25 de junho
de 2025
«Invasão da sede do Botafogo por forças da
ditadura em 1968 e a gestão autoritária de Charles Borer marcaram um período
sombrio na história do clube.
A Ditadura Invade o Campo: A Invasão de General Severiano
em 1968
Em junho de 1968, o Brasil vivia um dos momentos mais
tensos da ditadura civil-militar iniciada em 1964. Às vésperas da edição do Ato
Institucional nº 5, a repressão às mobilizações estudantes já se intensificava
pelas ruas. […]
A repressão se deu em diversas frentes. […] Em meio ao
caos, um gruo de cerca de 200 estudantes buscou abrigo na sede do Botafogo de
Futebol e Regatas, em General Severiano. A entrada foi autorizada pelo então
presidente do clube, Altemar Dutra de Castilho. Era uma tentativa desesperada
de proteção civil em uma noite que ficaria marcada como uma das mais violentas
daquele ano. […]
A sede do clube foi invadida por forças do Departamento
de Ordem Política e Social (DOPS) e do Serviço Nacional de Informações (SNI),
que ignoraram os apelos dos dirigentes e entraram no clube como se fosse um
bunker inimigo. Vidros estouraram, bombas de gás lacrimogêneo foram lançadas
pelas janelas, portas foram arrombadas. Houve agressões a atletas que
treinavam, funcionários, sócios – e até crianças que ensaiavam uma quadrilha
para a festa de São João. A cozinheira desmaiou, um diretor foi mantido preso
por mais de uma hora e saiu ferido. Cinco crianças precisaram ser
hospitalizadas.
A brutalidade denunciada no dia seguinte por Henfil, com
uma charge no Jornal dos Sports, e registrada com manchetes dramáticas. […]
A cidade ficou em estado de guerra. No dia seguinte, o
Jornal dos Sports relatava: “DOPS e PM mataram três: toda a cidade ficou contra
a Polícia”. O saldo incluía mortos, feridos, barricadas, tiros, bombas,
incêndios e centenas de prisões. Um dos grandes clubes do país havia sido
convertido temporariamente em palco da repressão militar.
Charles Borer: O Policial do SNI que Afundou o Botafogo
Em 1970, dois anos após a invasão de General Severiano, setores ligados à ditadura se movimentaram para consolidar o domínio militar sobre o clube. Foi nesse contexto que Charles Macedo Borer, policial vinculado ao Serviço Nacional de Informações (SNI), foi alçado à presidência do Botafogo de Futebol e Regatas. Seu nome foi impulsionado com apoio de quadros militares e do irmão Cecil Borer, um dos mais temidos delegados do DOPS no Rio de Janeiro.
A chegada de Borer à presidência marcaria um dos períodos
mais sombrios da história do clube. Alegando dívidas elevadas e crise
estrutural, sua gestão implementou uma política de austeridade brutal – mas
que, na prática, apenas aprofundou os problemas financeiros e provocou um dos
maiores retrocessos institucionais do clube.
A venda de General Severiano para a estatal Companhia
Vale do Rio Doce (CVRD), em 1976, por 90 milhões de cruzeiros, foi o ápice da
derrocada. A sede histórica, berço das glórias do clube e símbolo da Estrela
Solitária, foi vendida por um valor muito abaixo do mercado. A decisão foi
aprovada por 140 conselheiros – apesar dos protestos históricos de figuras como
Carlito Rocha.
Sem sede, o clube transferiu-se para o Mourisco Mar, na
Praia de Botafogo, e passou a mandar seus jogos em Marechal Hermes – onde
construiu um estádio precário e improvisado. Esse deslocamento geográfico e
simbólico afastou o Botafogo de sua identidade. Começava ali o maior jejum de
título da história alvinegra: 21 anos sem conquistas expressivas.
Durante o mandato, Borer foi responsável por transformar
o Botafogo em uma espécie de trincheira autoritária. Perseguiu dirigente,
demitiu funcionários, destratou jogadores. O time ganhou a alcunha de “Time do
Camburão”, com elenco formado por nomes irrelevantes, instáveis, sem
identificação com o clube. Em 1981, numa entrevista à revista Placar, o
dirigente resumiu sua visão com uma frase estarrecedora:
“Pouco importa a torcida. Torcedor é volúvel, só aparece
na vitória. Se o time perde, ele some. […] Torcida não é patrimônio, não faz o
clube.”
Borer ainda espalhava acusações de “infiltração
comunista” na torcida do Botafogo, sem jamais apresentar provas. A retórica
anticomunista da ditadura entrava pelos portões do estádio, contaminando o
ambiente com vigilância, intolerância e repressão.
Mesmo com a venda da sede, as dívidas não foram sanadas.
O clube continuou atolado em obrigações fiscais, trabalhistas e cm imagem
pública arruinada. O legado de Charles Borer foi ruína, ressentimento e
desmobilização.
O Retorno a General
Severiano e a Lição da Memória
A recuperação da sede de General Severiano só veio
décadas depois. Em 1992, graças a uma negociação envolvendo a cessão do ginásio
no Mourisco à Vale, o Botafogo reconquistou seu lar histórico. A reinauguração
oficial ocorreu em 1994. Hoje, o prédio abriga o Museu do Botafogo e, mesmo com
o Estádio Nilton Santos sendo a nova casa para os jogos, General Severiano
permanece como sede social e símbolo da história viva do clube.
Essa história, no entanto, é mais do que uma cronologia
de fatos administrativos. É um alerta. A invasão de 1968 e a gestão de Borer
demonstram como o futebol não está imune aos ventos autoritários e às ambições
políticas. Quando a repressão atravessa os muros do estádio, quando um clube
vira campo de operações policiais, ou quando um dirigente despreza seu torcedor
como “não sendo patrimônio”, o futebol perde seu sentido original: ser espaço
de afeto, resistência, identidade e sonho coletivo.»
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