por ELSA CAIAFFA, Jornalista, 20.09.2019
A autora reconstrói os passos de Garrincha pelo
futebol pré-Botafogo. “Um gênio do Petrópolis” é o título original da
publicação.
Elisa
Caiaffa é uma jornalista, de 25 anos, recém-formada que tem o coração
dividido entre Botafogo e Serrano. Em meio ao preto, branco e azul que ela
carrega no peito, está um ídolo comum às duas torcidas: o inesquecível Mané
Garrincha.
Movida
pela curiosidade que todo bom repórter deve ter, ela passou o último ano
levantando documentos, procurando fontes, pesquisando publicações antigas e fez
a mais completa reportagem já produzida sobre a passagem de Garrincha pelo
futebol de Petrópolis. Entre os achados, uma entrevista exclusiva com Afonso
Moreirão, o técnico que trouxe Garrincha ao Serrano. Moreirão, falecido
há poucos dias, contou histórias inéditas sobre o craque dentro e fora de
campo.
Além
de Moreirão, ex-companheiros de Cruzeiro do Sul (primeira equipe que Mané
defendeu em Petrópolis) como Paulo Rabello e Nenê Neumann dividem saborosas
memórias da passagem de Mané pelos gramados da cidade.
A
reportagem de Elisa Caiaffa traz mais clareza sobre o período e até algumas
correções para a ótima biografia “Estrela Solitária”, escrita por Ruy Castro.
Venha conosco numa saborosa viagem ao início dos anos 50, onde Petrópolis viu
em primeira mão a genialidade do Mané.
MANOEL
SOBE A SERRA
Sai
Magé, entra Petrópolis: público maior para seus dribles
Mané
Garrincha escreveu seu nome na História do futebol com pernas tortas e dribles
desconcertantes. O menino de origem humilde saiu de Pau Grande para conquistar
o mundo e se tornar um dos maiores ídolos do Botafogo e da Seleção Brasileira,
onde ganhou duas Copas do Mundo, em 1958 e 1962. Antes da consagração
internacional, Manoel dos Santos viveu capítulos importantes de sua carreira em
Petrópolis.
Foi
em 1952 – com a camisa do time juvenil do Serrano no recém-inaugurado estádio
Atílio Marotti – que o melhor ponta-direita de todos os tempos começou a ser
projetado para a glória. O ex-treinador das categorias de base do Leão da
Serra, Afonso Moreirão, foi quem descobriu a verdadeira posição de Garrincha.
Segundo
Paulo Rabello, 82 anos, ex-goleiro do extinto Cruzeiro do Sul (outro clube de
Petrópolis que Mané atuou antes do Serrano), a ideia de ir para a ponta-direita
não foi aceita pelo craque inicialmente. Paulo insinua que Moreirão “teve a
audácia de roubar Garrincha do Cruzeiro e como não tinha vaga para o jogador,
resolveu colocá-lo no lado extremo do campo”.
O
ex-goleiro frisa que no momento que o ídolo experimentou a derrota de 2 a 1
para o antigo clube, deu adeus ao futebol petropolitano afirmando “que nunca
jogaria naquela posição”.
Embora
resistisse, não teve jeito. Era o destino. E como Paulo acrescenta: “os anjos
não disseram amém para a profecia”.
Convencê-lo
a jogar em Petrópolis foi difícil, de acordo com Neném, 85 anos, outro
ex-jogador do Cruzeiro do Sul. E, aparentemente, sua partida se deu facilmente
num impulso. Talvez até mesmo ele, amante de grandes histórias, duvidasse ao
ouvir que um jovem pobre do interior abandonou o time da cidade vizinha – que o
remunerava – por rebeldia. Porém, essa ida não definiu o adeus.
O
protagonista de um dos mais peculiares contos do futebol tem raízes e, também,
Cidadania Petropolitana – título concedido em 1958, pela Câmara Municipal. Por
lá fez amigos, gols e história. A passagem de Mané na cidade é repleta de
mistérios e divergências. Mas sem dúvida, os hiatos não mudam a importância de
Petrópolis para o desenvolvimento do singular Manoel dos Santos.
GARRINCHA
NO CRUZEIRO DO SUL
Antes
de conhecer Afonso Moreirão e jogar no Serrano, Mané Garrincha atuou por uma
temporada (1951) como meia-direita no juvenil do Cruzeiro do Sul, onde irmão
mais velho dele, Zé Baleia, era goleiro da equipe principal. No extinto clube
do Morin, Garrincha e os amigos, que vieram de Pau Grande, eram comandados por
Arlindo Sanches. Na mesma época, Mané chegou a ser convocado para a Seleção
Petropolitana.
Fazer
parte do começo da carreira de um dos principais nomes da História do futebol
foi um privilégio para poucos. Almir Neumann, o “Neném”, e Paulo Rabello, o
“Paulinho”, lembram com detalhes do período em que atuaram com o ídolo. O
futebol que encantaria o mundo alguns anos depois foi visto em primeira mão
pela dupla, que defendeu o Cruzeiro do Sul ao lado do incontrolável Mané.
Paulo
Rabello diz que as estupendas atuações de Garrincha no Chile não foram surpresa
para ele. O protagonismo no time Bicampeão do Mundo, especialmente depois da
lesão de Pele, era alcançado com o mesmo estilo de jogo dos tempos de Cruzeiro
do Sul, quando Mané atuava no meio de campo, lançando a bola.
“Ele
jogou no Cruzeiro do Sul como meia-direita e meia-esquerda. Se você quer entender
o que era o Garrincha aqui, procure os VTS da Copa do Mundo de 1962. Quando o
Pelé se machucou, o Garrincha teve que jogar por ele e pelo Pelé. Era mais ou
menos assim quando ele jogava aqui solto pelas meias. O que ele fez no Mundial,
para nós do juvenil do Cruzeiro do Sul não foi nenhuma novidade”, afirma o
ex-goleiro.
Há
68 temporadas o menino alegre se unia ao plantel do Cruzeiro do Sul, e de
maneira singular marcou os integrantes daquela equipe amadora que na época
necessitava de reforços para o Campeonato Municipal. Nem mesmo o tempo ofuscou
o orgulho que aqueles senhores sentem por terem convivido com o artista de
pernas tortas. Neném carregou no bolso por anos a fotografia do juvenil do time
do Morin de 1951, como prova que havia atuado ao lado de Mané. Paulo Rabello
escreveu o livro “O Botafoguinho”, lançado em 1986, e dedicou um capítulo
inteiro aos momentos com o ídolo.
Quem
trouxe Mané para jogar em Petrópolis foi o irmão dele, Zé Baleia, que era
goleiro no Cruzeiro do Sul. Inicialmente, a ideia de deixar os campos de várzea
de onde morava para seguir os passos do irmão mais velho em Petrópolis não era
muito atraente.
Prestes
a completar 18 anos, Mané era muito apegado à rotina em Pau Grande. Segundo
Neném, foi difícil convencê-lo. Por orientação de Baleia, o técnico Arlindo
Sanches foi à casa de Amaro, pai de Garrincha, convidar o menino e seus amigos
para defenderam o Cruzeiro do Sul. Naquela época, Mané trabalhava numa fábrica
de tecidos. Mas esse período não duraria muito tempo.
DE
TREM ATÉ O MORIN
Cruzeiro
do Sul foi o primeiro time de Garrincha na cidade
Almir
“Neném” Neumann era meia da equipe juvenil do Cruzeiro do Sul no começo dos
anos 50. Aos 85 anos, ele é uma das principais testemunhas da passagem de
Garrincha pelo futebol de Petrópolis.
“Nestor
Garcia era o diretor do Cruzeiro, Arlindo Sanches era o técnico dos juvenis e o
Braulio o auxiliar. Iam os três lá em Pau Grande e, por coincidência, passaram
no bar onde eu estava e me chamaram pra ir com eles. Fomos no carro do seu
Nestor até Pau Grande na casa do Garrincha pro pai autorizar a vinda. Foi
difícil convencê-lo, o Cruzeiro ofereceu a ele uma passagem de trem e um
dinheirinho. Era pouco, mas como precisava reforçar o time... Estavam
preparando a inscrição para o campeonato do ano seguinte”, lembra.
Junto
com Garrincha, o Cruzeiro do Sul trouxe de Pau Grande os jogadores Cececo,
Batista e Arlindo Chaminé. Todos recebiam salário, embora singelo. Quando
aceitaram a proposta do time do Morin, eles passaram a fazer diariamente a
viagem de Magé até Petrópolis de trem. O trajeto de pouco mais de vinte
quilômetros pela Serra Velha era repleto de verde e tinha vista para a cidade
maravilhosa. O ambiente de proximidade à natureza e de diversão se tornava cada
vez mais familiar para Mané Garrincha que cresceu em meio às matas.
“Ele
era muito bom, não faltava. Subia de trem com os colegas e soltava aqui no Alto
da Serra. O diretor ficava esperando e depois os levava pro clube pra trocar de
roupa. Geralmente ele vinha no trem das seis e meia e chegava aqui sete e
quarenta e cinco, quase oito horas. Quando eles chegavam, nós já estávamos lá.
Eles almoçavam no clube”, ressalta Neném.
Os
novos contratados mostraram rapidamente que dariam conta do recado. Para o
ex-goleiro Paulinho, Garrincha não era o craque da equipe. O nome de destaque
vindo de Pau Grande era Arlindo Chaminé, meia-esquerda. Entre os atletas também
estava Cececo, irmão do centroavante Diquinho – jogador que atuou pelo Cruzeiro
do Sul em 1950 e, nas duas temporadas seguintes, foi o craque do bicampeonato
juvenil municipal do Serrano, garantindo a artilharia em 1951.
“Arlindo
Chaminé era um meia-esquerda, pra mim o melhor de todos, o cara tinha um chute
espetacular, uma canhota de respeito e muito fôlego. Depois o pulmão foi
corroído por causa do cigarro”.
Embora
Chaminé chamasse atenção por conta da força na perna esquerda, o talento de
Mané era inquestionável. O jeito peculiar é até hoje lembrado pelos
ex-companheiros que narram detalhadamente os dribles e as jogadas inusitadas.
Mané Garrincha também costumava balançar as redes com frequência. Nas vitórias
do time na Liga, o então meia-direita guardava os dele. Na goleada por 6 a 1
contra o Flamenguinho no Campeonato Municipal de 1951, Mané marcou duas vezes.
“Eu
me lembro do Garrincha fazendo gol, driblando. Ele era destaque em qualquer
time, mas tinha muito garoto bom de bola. Ele era rápido. Se deu bem no nosso
juvenil. No campo ele era danado”, conta Neném.
“Ele
era muito moleque, muito alegre. Um contador de ‘mentira de caçar’. Ele gostava
de caçar. Ele caçava tudo, mas era mais passarinho. Os colegas dele eram muito
legais, e ele era o mais tímido de todos. Ele só gostava de mato, se desse um
bodoque ele ficava todo prosa. A gente batia um papo, tomava uma cachacinha ou
uma cerveja”.
Já
Paulo Rabello tem outras lembranças do comportamento de Garrincha. “Ele era
recolhido. Como ele era remunerado, pode ser que ele se sentisse constrangido
pelos colegas de time não serem. Ele era um pouco arredio, trabalhava como
carregador lá na fábrica de Pau Grande. Teve um domingo que ele veio aqui jogar
com o cabelo branco do carregamento de algodão que tinha feito. Cumpria o papel
dele. ‘Qual é o meu papel aqui? É jogar futebol pelo Cruzeiro do Sul?’ Então,
ele jogava. Dentro do campo a gente se entendia. Fora do campo a gente brigava
pra ver quem ia pegar a toalha menos furada (risos)”.
Por
conta de tamanha destreza, o menino Mané ganhou prestígio e reconhecimento na
cidade chegando a ser convocado para a Seleção Petropolitana pela primeira vez
em 13 de dezembro de 1951, na preparação para o Campeonato Fluminense da
Juventude. Digno do sucesso, o atleta começou a despertar o interesse de outros
times da região. Mas para Paulinho, o jogo que decretou a saída de Mané
Garrincha foi o da derrota de 4 a 2 para o Serrano no Campeonato Juvenil de 51.
“Foi
no campo do Cruzeiro do Sul. Nosso técnico reuniu o time, e disse: ‘olha, nós
vamos ter que jogar para nos defender, porque olhando jogador por jogador não
dá para comparar nosso time com o Serrano’. Então, nós entramos em campo
psicologicamente derrotados. Com dez ou vinte minutos estava 3 a 0 pro Serrano.
Como o Serrano já facilitou as jogadas e o nosso time criou um pouquinho de
vergonha pra não apanhar de muito, o primeiro tempo terminou em 3 a 0. E no
intervalo vai dizer o quê? Aí a turma começou: ‘olha vamos jogar a bola pro
Garrincha, vamos jogar pra ele’.
Antes
dele receber a primeira bola, o Serrano fez 4 a 0. Tudo bem. Aí começaram a dar
a bola pro Garrincha. E ele começou a driblar um, driblar dois, driblar três. E
acabou fazendo os dois gols do Cruzeiro do Sul. Perdemos de 4 a 2. Mas ele
‘estraçalhou’ a defesa do Serrano. Foi quando o Serrano colocou a ‘butuca’ em
cima dele”.
Neném descreve a saída de Mané: “O pessoal do Serrano foi lá. O Garrincha era
duro, operário, precisando de dinheiro. Pô, um time oferecia dinheiro pra ele e
ele ia, até eu ia”.
MANÉ
GARRINCHA É DO SERRANO!
Conheça
os bastidores da chegada do futuro ídolo ao clube
Seis
temporadas antes de se tornar o ponta mais famoso do mundo com a conquista da
Copa da Suécia em 1958, Mané Garrincha brilhava no juvenil do Serrano. Lá, o
craque fez poucas partidas, mas a passagem teve enorme significado na carreira
do Anjo das Pernas Tortas: o treinador Afonso Moreirão foi o primeiro a
escalá-lo com a camisa sete.
A
transferência aconteceu oficialmente em 25 de abril de 1952, ano que a garotada
conquistou o Bicampeonato Municipal Juvenil. Naquela temporada, Garrincha não
vestiu apenas o manto azul e branco do Leão da Serra. Pela Seleção
Petropolitana, dirigida por Walter Nicodemos, honrou as mesmas cores usando o
escudo da LPD na disputa do Campeonato Fluminense.
Moreirão,
aos 94 anos, aparenta não se envaidecer com o fato de ter descoberto a posição
que faria do menino Mané o melhor de todos os tempos – eleito pela FIFA no ano
2000. Segundo o ex-treinador, que se diverte ao recordar os momentos ao lado do
ídolo, “Garrincha não tinha posição e jogava de tudo”.
Foram
muitos os encontros entre os dois. Ao longo do tempo, Garrincha viu Moreirão
como técnico, árbitro e até manobrista de um cassino clandestino. Comandante e
atleta colecionaram histórias emocionantes juntos – do início de carreira
promissor do ídolo aos seus últimos anos de vida, já doente – em todas, Afonso
Moreirão dá destaque à simplicidade de Mané, e o define como o dono de um
coração que não era dele. “Era um sarro, uma parada, um amigão meu. Ele só
andava de chinelo, não ligava pro azar. Ele não era mole não, não ligava pra
vida. Foi um bom garoto Ele era uma criança crescida. Um dia eu fui pra casa do
Garrincha, e ele estava num pé de goiaba. Era muito moleque, um bobão. Só
andava com bodoque, com aquelas atiradeiras. Uma vez ele veio à pé de Raiz da
Serra até aqui, pra jogar no Serrano”.
Outro
ídolo do Botafogo está na memória de Moreirão. “Garrincha quando chegou lá,
moleque, já começou a pegar o Nilton Santos de João. Nilton Santos ficou maluco
com ele. Isso foi logo no primeiro treino dele no Botafogo. Ele (Nilton) não
saia daqui de Petrópolis, mas não era farrista, não”.
O
ex-treinador e dirigente veio de uma família serranista apaixonada, que por
muitos anos se envolveu nas questões políticas do Leão da Serra. Na
adolescência chegou a ser atleta de hóquei do Serrano, mas admite que não
levava muito jeito com o esporte. Um dos irmãos de Afonso, o Alfredo, fez parte
do conselho deliberativo e chegou a ocupar por várias vezes as funções de
secretário geral e de tesoureiro.
Moreirão
foi próximo a personalidades fundamentais na história do clube, como o
ex-presidente Atílio Marotti – falecido em 1949 quando buscava recursos para a
construção do estádio do Serrano, que acabou sendo inaugurado em 1951 levando o
nome do militante. Afonso inclusive desfilou com seus atletas, que no ano
seguinte receberiam Garrincha e conquistariam o bicampeonato municipal, na
festa de abertura.
No
período que comandou o juvenil, quem presidia o Leão da Serra era Afonso Paoni,
que em 1963 passou a batizar o ginásio do Azul e Branco. Este dava ao xará
liberdade para montar o elenco que quisesse. Os recursos financeiros para
bancar as escolhas do então treinador vinham de Antenor Muniz Dias, diretor de
futebol. Ele trabalhava como lanterneiro e pintor de carro, e se
responsabilizava em pagar os atletas de Moreirão.
O
time juvenil do Serrano era invejável, contava com um pelotão de grande
qualidade. Porém não era o bastante para o comandante que ficou de olho no
meia-direita do Cruzeiro do Sul. De acordo com Afonso Moreirão, Arlindo Sanches
tinha ciúmes dele, assim como Walter Nicodemos. E a relação, que não era lá das
melhores, chegou a piorar quando o técnico do time do Morin viu o algoz levar
Garrincha.
“Tinha
que ver a confusão que deu (longa gargalhada). Eu tinha um amigo que era
goleiro do juvenil, o Airton, que trabalhava no escritório em Raiz da Serra, na
fábrica de algodão. Na amizade que eu tinha, fui conhecer um parente do
Garrincha que era motorista do antigo matadouro. Então, ele me apresentou esse
garoto, e dali conversa vai, conversa vem, e me enturmei (risos). E nessa, eu
consegui conversar com o Garrincha pessoalmente e o convenci a vir pro Serrano.
Tenho certeza que ele nem acabou o campeonato no Cruzeiro do Sul”.
Neném
e Paulinho acusam Afonso Moreirão de ter “roubado o Garrincha deles”. Os
ex-jogadores do Cruzeiro do Sul insistem que o treinador ofereceu uma alta
quantia em dinheiro para Mané Garrincha abandonar o clube. Moreirão desmente,
diz que tudo isso não passa de “conversa” e que o valor dado à Mané era “uma
bobeirinha para a passagem” – paga por Antenor Muniz, diretor de futebol
juvenil – mas acabava nas mãos de Zé Baleia, que sempre levava as “vantagens”
através do irmão mais novo.
“Eles
ficaram doidos comigo. Eu sabia conversar com os jogadores, arrumava namorada
pra eles. O Garrincha era gente boa, andava só de chinelo e todo
‘esculhambado’. O pai dele trabalhava numa cancela lá em Raiz da Serra, onde
atravessava o trem. Eu estava sempre lá. Tinha esse goleiro irmão dele, o tal
de Baleia, era esse que levava as vantagens com todo mundo, menos comigo. Nesse
tempo, eu estava no Serrano e o presidente era o Afonso Paoni, que me dava
todos os direitos pra eu arrumar quem quisesse. Quem ajudava financeiramente
não era o Serrano. Era o Antenor Muniz, que trabalhava como um louco”.
PRIMEIRA
SELEÇÃO: A MUNICIPAL
Antes
de estrear pelo Serrano, Mané defendeu Petrópolis
Enquanto
não jogava oficialmente pelo Leão da Serra, e iniciava as atividades de
preparação para o Campeonato Municipal, Mané Garrincha defendia a Seleção de
Petrópolis, no desafio do Campeonato Fluminense da Juventude. Neste período,
ele se aproximou de Alcibíades Lopes, lateral-direito do Petropolitano FC.
Alcibíades
também teve uma curta passagem pelo Serrano, mas precisou abandonar o futebol
para se dedicar aos estudos em Minas Gerais. Ele é irmão do atacante Gilberto,
que jogou com Garrincha no Cruzeiro do Sul. Aos 86 anos, o ex-lateral conta que
na Seleção era ele o “responsável pela organização do time em campo”, mas que
Mané não precisava de suas instruções.
São
poucas as lembranças de Alcibíades sobre o Campeonato Fluminense da Juventude
daquele ano. Porém, ele enaltece o humor de Garrincha e a parceria dele com
Diquinho, centroavante do Serrano que também vinha de Magé. “Garrincha ria o
tempo inteiro. Ele tinha dificuldade pra sair de Magé, e era sem palavra. Mas
não tinha maldade, era muito infantil. Brigavam com ele, e ele nem ligava. Ele
era muito legal. Nós jogávamos perto um do outro, pra ele eu não precisava dar
instruções. Ele e o Diquinho eram muito bons. Já tinham até fãs que
acompanhavam os jogos”.
Afonso
Moreirão garante que o jogador do Petropolitano tinha lá qualidades, mas era
“encrenqueiro”. Os dois já se envolveram numa briga no estádio Atílio Marotti
durante uma partida. Desentendimentos eram comuns, o ex-treinador tem vaga
recordação de um dia que levou Mané Garrincha para casa dele após uma discussão
com Walter Nicodemos, treinador da Seleção Petropolitana.
Apesar
do contexto de discórdias, Garrincha criava raízes na cidade e laços de amizade
com o comandante. Moreirão revela que levava a garotada para dormir na pensão
de seu irmão na Rua Floriano Peixoto. Além disso, participava da vida amorosa
dos atletas. O ex-treinador acompanhou o início do namoro de Mané Garrincha com
Nair, e demonstra muito carinho pela primeira esposa do ídolo. Nas palavras
dele, “Nair era a vida de Garrincha”. De Diquinho, ele foi padrinho de
casamento.
Os
meninos de Magé estavam cada dia mais próximos do técnico que com brio os
defendia, e deixava claro aos adversários que a dupla pertencia ao pelotão
serranista. Garrincha e Diquinho haviam se tornado os protagonistas do futebol
juvenil de Petrópolis. E a fama deles não ficou apenas na cidade, os dois
passaram a ser cobiçados por times grandes da capital. Moreirão revela que
Giulite Coutinho, quando acompanhava um jogo da Seleção Petropolitana contra
América, ficou fascinado com Garrincha.
“O
Giulite Coutinho, presidente do América, ficou maluco com ele! Mas não sei o
que houve que o Botafogo entrou na frente. O Diquinho foi treinar no Fluminense
e tremeu. Mas os dois juntos bagunçavam. Eles eram uma parada”.
Passados
os jogos da Seleção Petropolitana, Afonso Moreirão finalmente poderia contar
com Mané e se preparar para a disputa do Municipal. Meninos bons de bola não faltavam
no Leão da Serra. A equipe que havia conquistado o campeonato no ano anterior
em cima do Flamenguinho com a vitória por 3 a 0 – com gols de Nelsinho,
Diquinho e Guerreiro – se manteve sólida. O plantel “quase perfeito” do Serrano
contava com Alcides; Friaça e Alegria; Lízio, Guerreiro e Orestes; Alaripe,
Diquinho, Nelsinho, Passarinho e Hélio.
E,
então surgiu mais um desafio para o técnico: encontrar um lugar para o craque.
Onde mexer naquele time impecável? Eram muitos os questionamentos. Com o meio-campista
Lízio, seu homem de confiança que vestia a 10, o ex-treinador não poderia
mexer. Guerreiro, meia-atacante que “fazia partidas soberbas”, e Diquinho,
centroavante “artilheiro”, eram intocáveis. E agora, Moreirão?
HORA
DE ASSUMIR A CAMISA SETE
Garrincha
se tornou ponta no Serrano com Afonso Moreirão
Com
tantos jogadores se destacando no time juvenil do Serrano, o técnico Afonso
Moreirão viu que colocando Mané Garrincha na ponta-direita teria a linha de
ataque ideal. Moreirão apostava que Mané daria conta de qualquer posição e como
não estava satisfeito com Nelsinho, que vestia a sete, o mandou para o banco.
“Eu
tinha o time todo, só faltava o sete, e como ele jogava em qualquer posição...
No Cruzeiro ele usava a 10 e era até meia-direita, depois que eu passei pra
ponta-direita. Mas não adiantava dar instrução. Eu o colocava pra jogar
(risos), ele era meio “pancada”. Tinha que ver, eu o colocava na ponta-direita
e ele ia pra ponta-esquerda. Ele não tinha posição. Às vezes tava lá de beque
pegando bola. Garrincha era maluco. Dava show de bola já. Fazia o que queria.
Ele era um sarro. O cara o marcava, e ele ficava conversando. Ele era um
artista. Era meu amigão. Garrincha foi campeão com o Moreirão (risos)”.
Foram
poucas as participações de Mané Garrincha no Serrano. Nem mesmo Moreirão sabe
ao certo quanto tempo o ídolo atuou por lá, mas lembra com muita empolgação que
ele esteve presente na festa da conquista do bicampeonato e recebeu as devidas
homenagens.
“Ficou
pouco tempo no Serrano, jogou umas três ou quatro vezes. Eu vou ser sincero ao
dizer que ele foi homenageado e tudo quando nós fomos campeões no juvenil, e já
não estava mais lá. Ele fazia gol. Ele pegava a bola na defesa e saia driblando
todo mundo. Ele foi transferido antes de acabar o campeonato, mas ele fez parte
da festa do Serrano”.
Afonso
também não terminou o campeonato no comando do time, sendo substituído por João
Costa. E mais uma vez a garotada conseguiu garantir o Municipal em cima do
Flamenguinho, dessa vez por 1 a 0. A campanha foi impecável, nove vitórias,
dois empates e apenas uma derrota, justamente para o Cruzeiro do Sul. O
ponta-direita Nelsinho, que havia ido pro banco após a chegada de Garrincha,
dividiu a artilharia com Henrique, chegando à marca de 11 gols.
O
ex-treinador sustenta que equipes do Rio vinham treinar no estádio Atílio
Marotti. E Mané Garrincha foi observado num amistoso por Araty, ex-jogador do
Botafogo e da Seleção Brasileira, que no ano seguinte o tirou do amador Esporte
Clube Pau Grande direto para o Glorioso.
Já
Paulo Rabello, expõe outra versão sobre o tempo que Mané passou no Serrano.
Segundo o ex-goleiro do Cruzeiro do Sul, Garrincha foi para o Leão da Serra ser
tapa-buraco e o que havia sobrado apenas a camisa sete. De acordo com Paulinho,
Afonso Moreirão teimou que Mané fosse para a ponta-direta e aborreceu o craque
que, logo na primeira partida do Torneio Início, jogou mal e se despediu de
Petrópolis.
“O
Moreirão, depois de levar o Garrincha pro Serrano, teve a ousadia de não achar
lugar pra ele. Então, quando teve o Torneio Início do campeonato de 1952 que o
Cruzeiro do Sul venceu. O Garrincha foi escalado como ponta-direita, perdeu
logo o primeiro jogo e se despediu da gente, se despediu do Serrano e de
Petrópolis dizendo mais ou menos as seguintes palavras não proféticas: ‘Eu
nunca fui ponta-direita, não sou ponta-direita e nunca serei ponta-direita nem
no Serrano nem em lugar em nenhum’. Resultado: depois ele foi pro Pau Grande,
recém-saído do juvenil, o time era muito bom e sobrou pra ele a ponta-direita.
Foi quando o Araty o descobriu. Os anjos não disseram amém às palavras dele e à
desaprovação total ao Moreirão”.
O
ex-treinador reconhece que insistiu com Mané para que ele atuasse na
ponta-direita, mas assegura que isso não o deixou chateado e que muito menos
seja este o real motivo para que o ídolo abandonasse o Serrano. Afinal, “ele
jogava tudo” e “voltou para a festa do bicampeonato”. As exposições de Paulinho
e Moreirão não são diferentes apenas na questão da saída de Garrincha do
Serrano: a ida do craque para o Botafogo é outro ponto que gera divergências.
Em
14 de julho de 1953 – um mês depois de Mané Garrincha assinar seu
primeiro contrato com o Glorioso – a Liga Petropolitana de Desportos emitiu um
ofício em resposta à Federação Fluminense de Desportos referente ao interesse
do time da Estrela Solitária em Mané. No documento, a Liga comunicava que “o
Serrano nada tinha a se opor á transferência do jogador desde que fosse
indenizado em Cr$ 2.000,00” (valor estipulado pela Lei de Transferência de
Futebol Profissional).
O
ex-goleiro Paulinho afirma nem a LPD – responsável pelo passe dos jogadores –
nem o Leão da Serra lucraram com a venda de Mané para o Botafogo. Já Moreirão
diz que o Azul e Branco recebeu a indenização pela negociação.
REENCONTROS
Em 1965, Afonso Moreirão pôde acompanhar mais uma vez de perto o sucesso de
Mané Garrincha no campo. O agora árbitro apitou a preliminar juvenil: Paredense
x Petropolitano, num amistoso em que o Brasil venceu País de Gales por 3 a 1 no
Maracanã.
“Depois
que eu apitei o juvenil, fiquei ao lado dele lá. Assim que acabou o primeiro
tempo ficamos conversando. Ah, o Garrincha era um amigão meu, estava sempre
comigo. Eu fiquei feliz naquela preliminar, ele esteve comigo lá antes do jogo
e acabou fazendo um dos gols”.
Anos
depois, Petrópolis voltava a ser cenário para as aventuras de Mané Garrincha.
Eram comuns as vindas à cidade ao lado da segunda esposa dele, a cantora Elza
Soares. Afonso Moreirão comenta que trabalhou como manobrista em um cassino
clandestino frequentado por Garrincha – que também marcava presença em bares da
região, como a Casa D’Angelo.
“A
vida do Garrincha em questão de mulheres era uma parada. Depois de muitos anos,
eu trabalhei como manobrista num cassino clandestino que era do Joãozinho, da
loteria, e do Pirulito, banqueiro. Naquele tempo, Garrincha não estava mais com
a Elza. Ficou com uma cantora de nome, a Norma Bengell. Ele gostava de loira e
era um sarro. Ele virava pra mim e falava: arrumei mais uma”, relembra.
“Ele
ia jogar no cassino e já andava bem arrumado. Chegou lá com um carrão, deixou a
chave comigo e disse que eu poderia dar uma volta. Nesse dia ele ganhou uma
ficha de mil na roleta e deu pra mim. Quando fui jogar, perdi (risos)”.
O
RECONHECIMENTO DE PETRÓPOLIS
Autoridades,
ex-treinadores e o povo celebraram Mané em 58
Na
maior festa que Petrópolis já organizou para homenagear um atleta, o novo ídolo
da Seleção, que dias antes havia conquistado a Copa do Mundo, recebeu mais um
título: o de Cidadão Petropolitano. Em 11 de julho de 1958, Mané Garrincha
voltou à cidade que o projetou para a glória e reencontrou seus antigos
treinadores Arlindo Sanches e Afonso Moreirão.
Depois
de brilhar na Suécia e se tornar um dos nomes mais comentados do futebol
mundial, Garrincha fez novamente pela Serra Velha a viagem de Petrópolis até
Magé – dessa vez no carro do prefeito Flávio Castrioto. O ídolo foi homenageado
pelo Serrano, autoridades e empresários, e aclamado pelos fãs, que lotaram as
ruas do Centro Histórico.
Do
Leão da Serra, Mané Garrincha ganhou uma flâmula, e um troféu de bronze,
entregue por Afonso Paoni. Além disso, se tornou cidadão petropolitano por
indicação do vereador Carlos Julio Plum. Cruzeiro do Sul e a LPD também
prestaram homenagens ao talento genial que Petrópolis conheceu em primeira
mão.
Ao
longo da investigação que culminou nesta edição especial do Jornal do Serrano,
a repórter Elisa Caiaffa cruzou dados, checou documentos e encontrou algumas
diferenças em relação às datas da passagem de Garrincha pelo Serrano.
O cartão de identificação de atleta de Garrincha no Serrano Football Club é datada de 17 de abril de 1951, o que induziu ao erro historiadores do clube e biógrafos do jogador. Manoel dos Santos chegou ao Serrano em abril sim, mas em abril de 1952. Esse erro histórico foi encontrado na busca de jornais publicados em Petrópolis na época. As publicações esclarecem que Garrincha passou 1951 defendendo o Cruzeiro do Sul, ano em que o Serrano foi o campeão municipal entre os juvenis.
Mané chegou para reforçar o time em busca do bicampeonato juvenil. E embora não
tenha ficado até o final da competição, foi lembrado nos jornais após a vitória
por 1x0 sobre o Flamenguinho que valeu ao Leão da Serra o segundo título
seguido. A escalação do jogo final era Paulo, Caveira e Barrinhos; Lízio, Pão
Doce e Vecchi; Nino, Henrique, Diquinho, Nelsinho e Baiano. O técnico era João
Costa.
O
CRAQUE MAIS BARATO DE TODOS
Há
dúvidas sobre valor exato, mas certeza que foi pechincha
Não
foram encontradas divergências apenas na data de chegada e no período que
Garrincha passou no Serrano. O valor pelo qual o jogador foi negociado também é
motivo de controvérsia.
No
livro Estrela Solitária, Ruy Castro diz que o Botafogo pagou ao Serrano 500
cruzeiros para ter Garrincha. A negociação foi efetuada em junho de 1953. O
valor seria equivalente, na época, a 27 dólares. Segundo Castro, seria o valor
aproximado a ser pago por uma bicicleta naqueles tempos.
Nos
arquivos da LPD que o Jornal do Serrano teve acesso, foi encontrado o ofício
acima, enviado pela Liga Petropolitana de Desportos ao presidente da Federação
Fluminense de Desportos.
A
cópia obtida é de 14 de julho de 1953, e revela que o Serrano estaria de acordo
com a transferência de Garrincha ao Botafogo desde que fosse indenizado em 2
mil cruzeiros, ou 108 dólares, seguindo o parâmetro adotado por Ruy Castro.
Se
foram 500 ou 2 mil cruzeiros, uma coisa não muda. A contratação de Garrincha
foi a maior pechincha da história do futebol mundial. É difícil imaginar o que
poderia ter acontecido com o Serrano se o clube conseguisse reter o talento
indomável de Mané Garrincha.
Outro
ponto que deixa dúvidas é o momento exato em que Garrincha deixa de ser meia
direita para virar um ponta. Ruy Castro, em Estrela Solitária, diz que a
mudança teria acontecido depois da passagem pelo Serrano, quando Mané defendia
o amador Pau Grande Futebol Clube. No livro, Ruy diz que Garrincha jogou como
meia-direita no Serrano. O relato não coincide com que foi apurado com o
treinador de Mané no Serrano, Afonso Moreirão, que teve sua versão
confirmada no livro “Garrincha - O Demônio de Pernas Tortas”, de Renato Peixoto
dos Santos.
Castro
diz que Garrincha teria virado ponta por causa de um meia chamado Vu, por
decisão do treinador Duarte Pinto, do Pau Grande. Mas, cronologicamente, essa
mudança teria sido depois da opção de Moreirão em transformar Mané num
ponteiro.
As
versões diferentes não alteram o fato de Garrincha ter sido o mais espetacular
de todos os jogadores. Seu legado é eterno e indiscutível.
Fonte: https://www.botafogo.com.br/noticias/um-g-nio-do-petr-polis
Entrevista
a Elsa Caiaffa: https://open.spotify.com/episode/7p94IP2z0LAdOHcQeR83IA

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