por LÚCIA
SENNA | Escritora e Cantora | Cronista do Mundo Botafogo
Depois de vinte e seis anos de convivência
intensa, barulhenta e muitas vezes perturbadora, ele finalmente começou a dar
sinais de que estava se despedindo. Sim, o zumbido. Aquele som insistente, inconveniente,
impertinente – meu inquilino auditivo sem contrato – resolveu, aparentemente,
entrar em silêncio. E como tudo que deixa marca merece uma despedia à altura,
decidi organizar o que ninguém jamais ousou: o velório do zumbido. Foi íntimo,
mas digno.
Na capelinha do meu cérebro, reuni os mais
próximos: o nervo auditivo (emocionado), o labirinto (levemente enjoado) e o
cerebelo, que veio só pela comida. Minha secretária cuidou do buffet: tortas de banana, biscoitinhos
de polvilho em forma de ouvido, e sucos de maracujá – em respeito à paz que
finalmente se fazia presente.
Do lado de fora, uma plaquinha delicada:
– Favor manter o silêncio. O defunto já fez
barulho demais em vida.
A cerimônia foi conduzida por mim mesma,
vestida de preto e fones de ouvido, não por necessidade, mas por memória
afetiva. Fiz um discurso breve:
– Estamos aqui reunidos não para chorar, mas
para comemorar a partida de um som que me acompanhou por décadas. Foi um relacionamento unilateral, barulhento e
sem consentimento. Eu, gritava por paz. Ele, apitava por rebeldia. Mas hoje me
despeço com gratidão e com certo alívio:
– Vá em paz, zumbido. E fique, de preferência, bem longe.
Teve até homenagem musical, claro. Um violino
ao fundo tocando ‘Ode ao Silêncio’,
que compus mentalmente, só de imaginar as noites sem ele.
Não, não tocamos ‘La Bamba’. Esse é um funeral, não um castigo. Alguns amigos
quiseram comparecer, mas acharam estranho participar do velório de um som.
Estranho?
Mais estranho é ter uma corneta invisível no ouvido por vinte e seis
anos e fingir que está tudo bem. Teve quem chorou (de emoção). Teve quem não entendeu nada (normal). E teve
quem disse:
– Mas… se ele voltar?
Ora, se ele voltar, a gente faz outro
velório. Ou, então, uma sessão de exorcismo auditivo. Ainda não decidi. Por
enquanto, sigo esperançosa, de luto seletivo e um tanto desconfiada. O zumbido
sempre gostou de fazer aparições súbitas – tipo parente que não avisa que vai
dormir na sua casa. Mas até segunda ordem,
ele está silenciado.
E eu? Bom, estou ouvindo o mundo de novo: o
barulho da rua, os pássaros, as risadas e até o silêncio, agora, tem outro som.
E como todo velório que se preze tem
lembrancinha, o do meu zumbido não podia ser diferente. Mandei fazer
chaveirinhos com a miniatura da minha cóclea – dourada, claro, que era pra
parecer vitória. A embalagem vinha com um bilhetinho:
– Obrigada por comparecer ao silêncio que
nunca tive.
Alguns acharam de mau gosto. Outros disseram
que ouviram um tinnitus vindo da caixa, mas era só culpa. Culpa por
nunca terem entendido que o inferno, às vezes, mora dentro da orelha.
PS: Se alguém ouvir um apito vindo da região
espiritual, favor ignorar. Pode ser só interferência do além.
Não perca o zumbido em plena atividade:
https://mundobotafogo.blogspot.com/2025/08/o-otorrino-nao-me-deu-ouvidos.html

14 comentários:
Enquanto Lúcia Senna chora com o maldito zumbido, ela nos diverte com seu bom humor único. Nossa cronista é digna de admiração!
Costa Neto
Esse tal zumbido tem dado crônicas ótimas kkkk
Só você, minha amiga, para conseguir rir e fazer rir mesmo nos perrengues. Adorei!
CLARA
.
Meu dia começou muito bem com as divertidas crônicas da Lucia. Houve um tempo em que ela estava mais assídua por aqui. Tomara que nesse nova fase, que venha pra ficar . Ela faz falta!
João Martini
Velório do Zumbido ?????. Kkkkkkk. Lúcia Senna , que a criatividade jamais te abandone.
E te parabenizo por mais esse texto Hilário.
Joel Pessoa
Lucia, vc é mesmo porreta! Que sacada a sua: usar tanto humor para descrever um assunto tão desagradável, que só te causou desconforto e aborrecimento! Que bom que vc conseguiu fazer uma "limonada" com esse "limão" barulhento! Fico feliz com o velório do dito cujo.
Que os zumbidos azedos sigam direto para o nono círculo do inferno, lá ficando para sempre, devidamente metidos a ferros por nosso velho conhecido Hefesto, que, aliás, também padecia desse mal, só que, no caso dele, as fofocas sobre as traições de Afrodite é que zunzunzavam na cabeça do corneado deus!😂🤣
bjks,
Sol de Anlarec
Oi, Lucia
Eu que já tive uma crise de zumbido, sei muito bem o quão desesperador é. Fico realmente surpresa de ler um texto tão engraçado, apesar de ter um alarme disparado dentro do ouvido. Parabéns, amiga!
Eliane
Concordo com todos os comentários dos seus leitores.
A mim, só me resta parabenizá-la!
Alan
Obrigada COSTA NETO pelo carinhoso comentário.
Abraço grande !
Acho que estou ficando realmente boa nesse quesito.
Diante de um perrengue, o remédio é transforma-lo em crônica kkkkk
Beijão!
Que comentário mais gostoso esse que me fazes. Às vezes me ausento um pouquinho pra vocês não se cansarem de mim. Mas como uma boa filha, sempre retorno ao lar .
Grande abraço!
Oi, Joel
Também espero o mesmo, mas confesso que muitas vezes ela me abandona sim. Realmente ela voltou com força pós zumbido.
Parece que o tal zumbido tem um humor peculiar . Ao menos esse MALDITO trouxe algo de bom.
Abraço grandão!
Realmente nem eu mesma sou capaz de compreender esse fato.
Mas acho mesmo que sou digna de um parabéns kkkkkkk
Beijão, querida amiga.
Muito obrigada , Alan.
Grande abraço!
Sol, vou aproveitar uma expressão usada por ti ao fazer o comentário, pra dizer que PORRETISSIMO, foi tirar Hefesto do Olimpo e trazê-lo pra mim.
A ideia é genial : com toda certeza Hefesto deveria ter mil grilos ZUMBINDO no seu ouvido.Afinal, AFRODITE -- sua amada esposa - não era flor que se pudesse cheirar e diversas vezes enfeitou a cabeça do pobre homem com galhos robustos.
Agradeço teres dado um toque mitológico ao meu zumbido, deixando-o até mais sedutor aos meus barulhentos ouvidos.kkkkkkk
Valeu, querida!
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