quinta-feira, 30 de outubro de 2025

A invenção do torcedor de futebol

Final da Copa Libertadores 2024 | André Coelho / Poy Latam.

[Nota preliminar 1: O autor desenvolveu uma pesquisa acadêmica e publicou um artigo sobre o assunto com o objetivo de reunir evidências sobre a constituição de formas associativas de pertencimento clubístico com a conformação de identidades coletivas de torcer ao redor do futebol profissional do Rio de Janeiro no decurso dos anos 1930 a 1960, que surgiu na esteira da estruturação de uma cultura de massas urbana, voltada ao lazer e ao entretenimento nas metrópoles, por meio de um calendário desportivo rotinizado. O artigo demonstra, ainda, o processo de reconhecimento público de determinados atores, egressos das classes populares, e de específicos grupos de torcedores aficionados, legitimados pelos meios de comunicação da época, em conformidade com a afirmação e expansão do futebol no dia a dia da cidade. O Mundo Botafogo apresenta a conclusão do referido estudo. Nota preliminar 2 (curiosidade): A origem da expressão “torcedor” ocorreu por ação das mulheres que assistiam aos jogos nos primórdios do século XX gritando, xingando e torcendo os seus lenços e luvas, que ficavam encharcados de suor devido a nervosismo durante as partidas. Foi o cronista desportivo Coelho Neto que criou a expressão.]

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A invenção do torcedor de futebol: imprensa esportiva, profissionalismo e a formação das torcidas organizadas no Rio de Janeiro (1936-1968)

por BERNARDO BORGES BUARQUE DE HOLLANDA | Escola de Ciências Sociais (RJ), 2023

Conclusão

Eis, em linhas gerais, um panorama do que se conseguiu levantar de informações biográficas do perfil dos personagens torcedores que a imprensa e a crônica carioca do período consagraram. O diapasão cronológico da pesquisa procurou cobrir três décadas de publicações diárias, entre 1936 e 1968. Por razões de espaço, muitas notícias foram abstraídas ou sumarizadas, à medida que elas corroboravam o argumento central proposto. A narrativa optada aqui foi quase literária, uma vez que a preocupação principal foi compreender a trajetória desses atores coadjuvantes do futebol profissional e de espetáculo, à luz dos escritos cronísticos, com a descrição de tais relatos.

Final da Copa Libertadores 2024 | André Coelho / Poy Latam.

Procurou-se mostrar de que maneira os torcedores angariaram reconhecimento por parte dos jornalistas no universo público futebolístico, em função de sua atuação nas arquibancadas, de suas relações clubísticas e do interesse despertado entre cronistas e escritores. Esses escribas não só registraram e perfilaram como, no limite, inventaram tipos-ideais e estereótipos associados ao comportamento de líderes de torcida e torcedores-símbolos.

A abnegação e o altruísmo, por um lado, eram combinados à paixão desmedida tanto quanto ao papel de contenção das massas nos estádios. Havia, desta forma, múltiplas formas de enquadramento e um gradiente comportamental dos personagens. Os atributos socialmente esperados passavam pela manutenção da ordem junto ao policiamento, pela promoção da animação festiva nas arquibancadas, pelas provas de amor incondicional e pelo etos da humildade, manifesta na doação protagonizada e demonstrada vis-à-vis ao clube do coração.

Por outras vias, no contexto da Era Vargas e nos anos desenvolvimentistas subsequentes, tratava-se da mesma forma de fazer do torcedor o apanágio de uma visão nacional-popular, à luz do enquadramento moral das multidões, conforme as fotografias de Thomas Farkas e de José Medeiros permitem flagrar. Diga-se, a propósito, que tal visão era forjada historicamente por uma gama de folcloristas, intelectuais e cronistas, a entender o povo como puro e bom em sua essência, e que deveria ser educado segundo a moral e os bons costumes. Ao invés de ser inferiorizada, a posição social desses torcedores era exaltada e tipificada pelos cronistas como expressão genuína de espíritos altruístas, abnegados e amadores, capazes de quaisquer renúncias em âmbito individual, familiar ou econômico para a sua vivência esportiva, a cultivar uma retórica em torno da autenticidade e da pureza da paixão torcedora.

Final da Copa Libertadores 2024 | André Coelho / Poy Latam.

Uma observação final diz respeito aos arquivos dos anos de 1963 a 1968, do Jornal dos Sports, entendido como uma fase final, antes do surgimento das Torcidas Jovens e da geração dos movimentos dissidentes de fins da década de 1960. Nesse momento, passadas duas décadas da criação das primeiras torcidas e da geração de seus primeiros líderes, grande contraste de forma e conteúdo no recorte pesquisado já se identifica no periódico, desde os temas reportados até o léxico escolhido para a representação do torcedor pelo jornal.

As práticas torcedoras que germinavam nas páginas pesquisadas n’O Globo dos anos 1930 e no Jornal dos Sports das décadas de 1940 e 1950 – comemorações de rua, passeatas, “guardas” dos torcedores de clube durante o carnaval, promoção pela imprensa de “duelos de torcida” nos estádios, foguetórios, preparativos para o dia do jogo –, consolidam-se na condição de atividades rotineiras. Mais que uma consolidação, é possível observar um aumento na frequência e na intensidade desses hábitos que passaram a constituir um elemento cultural típico da cidade.

Uma diferença fundamental entre esses dois momentos é como se emprega o termo “torcida organizada”. Se entre 1936 e 1940 o termo aparece de modo incidental, ainda vazio de sua significação a posteriori, entre 1963 e 1966 o termo já emerge como uma categoria constante ou como uma expressão rotinizada. O surgimento de agrupamentos torcedores oficiais, com a Charanga rubro-negra e a Torcida Organizada do Vasco (TOV), foi incorporado na paisagem das arquibancadas (uniformes distintivos, faixa fixa no alambrado e banda musical para animação do espetáculo) e na maneira de sua nomeação pela imprensa esportiva carioca.

Cada um dos principais clubes do Rio de Janeiro passa a ter uma torcida organizada oficial, reconhecida pelo clube e legitimada pela cobertura do Jornal dos Sports. Clubes de menor força e popularidade também contavam com as TO que seguiam práticas semelhantes. Organizavam festas nos estádios, viagens para jogos em outros estados, preparavam comemorações nas ruas e influenciavam na política dos clubes, seja na posição de situação seja de oposição. Outro traço importante é que não se limitavam ao futebol profissional e compareciam a diversas modalidades para apoiar os atletas de seu clube – futebol de areia, campeonatos de aspirantes, hoje chamados de categorias de base, provas de atletismo, vôlei, basquete, natação etc.

Final da Copa Libertadores 2024 | André Coelho / Poy Latam.

Nos anos 1960, cada torcida era representada oficialmente por um líder, a saber, os seis principais clubes cariocas, já mencionados acima: Juarez de Oliveira (Bangu), Elias Bauman (América), Tarzan (Botafogo), Jaime de Carvalho (Flamengo), Paulista (Fluminense) e Dulce Rosalina (Vasco). Tais lideranças tinham espaço dentro do jornal e algum grau de interlocução junto aos clubes, sendo muitos deles associados. Os colunistas identificados com cada clube divulgavam com constância anedotas sobre esses personagens e contribuíam de modo indireto para popularizá-los e para chancelá-los em sua legitimidade. Com frequência eram publicadas entrevistas em que se indagavam quais eram os planos para eventuais comemorações, as estratégias para o campeonato de torcidas e opiniões sobre o momento do time e as decisões das diretorias.

Em alguns casos, como o de Dulce e Jaime, seguidores de Vasco e Flamengo, respectivamente, o destaque recebido pelo jornal podia ser até maior que o dos dirigentes. Em vários momentos são discutidas as sucessões de comando e as cadeias de liderança no interior das torcidas, já que alguns deles já eram veteranos de arquibancada e chegavam à terceira idade. Um exemplo a comentar é o último mês do ano de 1966, quando concluímos a periodicidade da pesquisa. Ao invés de reportagem sobre assuntos estritamente esportivos, encontra-se uma matéria especial, em que se traça em página inteira o perfil de cada um dos seis principais líderes, como tratamos no fim da última seção.

Meados dos anos 1960 demarca igualmente a cristalização das rivalidades torcedoras. Embora elas já existissem antes, a promoção contínua de “duelos de torcidas” nos chamados jogos clássicos colocava a concorrência dos torcedores à frente do confronto esportivo em campo. Direta ou indiretamente, estimulavam-se no jornal provocações entre torcidas e clubes. Não raro, atitudes provocativas entre rivais eram promovidas pelos próprios colunistas, que dialogavam através das páginas jornalísticas.

Final da Copa Libertadores 2024 | André Coelho / Poy Latam.

A emulação podia ser colocada em segundo plano em duas situações: quando salientava-se a união das torcidas cariocas em prol do apoio à Seleção brasileira e quando se opunham rixas bairristas interestaduais. Essas exceções ficam evidentes durante a Copa do Mundo de 1966 na Inglaterra, com a convocação de uma torcida conjunta da Seleção brasileira, a envolvendo as TO de cada time, durante os amistosos preparativos no Maracanã. Também nessa Copa fica evidente o papel do cronista Nelson Rodrigues, a propor uma união dos torcedores cariocas contra os paulistas.

Tal polêmica diz mais sobre rivalidades entre imprensas de cada estado e consequentemente a luta inter-jornais por hegemonia na comunicação esportiva. Estende-se tal lógica subsumida à das torcidas, com a suspensão de diferenças internas, em favor de uma identidade maior carioca, abalada desde 1960, com a transferência da capital federal para Brasília.

A relação da imprensa com as torcidas passa também pelo torcedor comum, isto é, por aquele não organizado. Seu discurso procura orientar o torcer, com o estímulo ao ambiente festivo nas arquibancadas. A resiliência do tema vem desde os anos 1930 e ganha vulto na década de 1960 por certa pretensão em instruir e “educar” o torcedor. Reforçam-se ideais morais, como o do fair play, em narrativa enquadradora resiliente que se dilata até os dias de hoje. Quanto às torcidas organizadas, há uma grande diferença na abordagem prática e na construção discursiva da época pesquisada e do que se pratica hoje. No período pesquisado no Jornal dos Sports, nota-se uma abordagem positivada das TO, assim como espaço nas páginas para a manifestação dos seus representantes e a divulgação de suas atividades.

Dessa maneira, é possível compreender em seu painel histórico a atuação e a representação das lideranças de torcidas do Rio de Janeiro em meados do século XX, durante a formação de uma cultura de massas esportiva na cidade, capital da República até 1960, e um dos centros da projeção identitária nacional, em que o futebol e a música, dois aspectos constitutivos da identidade das torcidas organizadas, se entrosavam, numa espécie de simbiose e sincretismo.»

Artigo completo disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-4369e2023026

Endereço das fotos: https://poylatam.org/pt/torcedores-do-botafogo-orgulho-e-gloria/

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