[Nota preliminar 1: O autor desenvolveu uma pesquisa
acadêmica e publicou um artigo sobre o assunto com o objetivo de reunir
evidências sobre a constituição de formas associativas de pertencimento
clubístico com a conformação de identidades coletivas de torcer ao redor do
futebol profissional do Rio de Janeiro no decurso dos anos 1930 a 1960, que
surgiu na esteira da estruturação de uma cultura de massas urbana, voltada ao
lazer e ao entretenimento nas metrópoles, por meio de um calendário desportivo
rotinizado. O artigo demonstra, ainda, o processo de reconhecimento público de
determinados atores, egressos das classes populares, e de específicos grupos de
torcedores aficionados, legitimados pelos meios de comunicação da época, em
conformidade com a afirmação e expansão do futebol no dia a dia da cidade. O
Mundo Botafogo apresenta a conclusão do referido estudo. Nota preliminar 2
(curiosidade): A origem da expressão “torcedor” ocorreu por ação das
mulheres que assistiam aos jogos nos primórdios do século XX gritando, xingando e
torcendo os seus lenços e luvas, que ficavam encharcados de suor devido a
nervosismo durante as partidas. Foi o cronista desportivo Coelho Neto que criou
a expressão.]
*****
A invenção do torcedor de futebol: imprensa esportiva, profissionalismo e a
formação das torcidas organizadas no Rio de Janeiro (1936-1968)
por BERNARDO BORGES BUARQUE DE HOLLANDA | Escola de
Ciências Sociais (RJ), 2023
Eis, em linhas gerais, um panorama do que se conseguiu levantar de informações biográficas do perfil dos personagens torcedores que a imprensa e a crônica carioca do período consagraram. O diapasão cronológico da pesquisa procurou cobrir três décadas de publicações diárias, entre 1936 e 1968. Por razões de espaço, muitas notícias foram abstraídas ou sumarizadas, à medida que elas corroboravam o argumento central proposto. A narrativa optada aqui foi quase literária, uma vez que a preocupação principal foi compreender a trajetória desses atores coadjuvantes do futebol profissional e de espetáculo, à luz dos escritos cronísticos, com a descrição de tais relatos.
Procurou-se mostrar de que maneira os torcedores angariaram reconhecimento
por parte dos jornalistas no universo público futebolístico, em função de sua
atuação nas arquibancadas, de suas relações clubísticas e do interesse
despertado entre cronistas e escritores. Esses escribas não só registraram e
perfilaram como, no limite, inventaram tipos-ideais e estereótipos associados
ao comportamento de líderes de torcida e torcedores-símbolos.
A abnegação e o altruísmo, por um lado, eram combinados à paixão desmedida
tanto quanto ao papel de contenção das massas nos estádios. Havia, desta forma,
múltiplas formas de enquadramento e um gradiente comportamental dos
personagens. Os atributos socialmente esperados passavam pela manutenção da
ordem junto ao policiamento, pela promoção da animação festiva nas
arquibancadas, pelas provas de amor incondicional e pelo etos da humildade,
manifesta na doação protagonizada e demonstrada vis-à-vis ao
clube do coração.
Por outras vias, no contexto da Era Vargas e nos anos desenvolvimentistas subsequentes, tratava-se da mesma forma de fazer do torcedor o apanágio de uma visão nacional-popular, à luz do enquadramento moral das multidões, conforme as fotografias de Thomas Farkas e de José Medeiros permitem flagrar. Diga-se, a propósito, que tal visão era forjada historicamente por uma gama de folcloristas, intelectuais e cronistas, a entender o povo como puro e bom em sua essência, e que deveria ser educado segundo a moral e os bons costumes. Ao invés de ser inferiorizada, a posição social desses torcedores era exaltada e tipificada pelos cronistas como expressão genuína de espíritos altruístas, abnegados e amadores, capazes de quaisquer renúncias em âmbito individual, familiar ou econômico para a sua vivência esportiva, a cultivar uma retórica em torno da autenticidade e da pureza da paixão torcedora.
Uma observação final diz respeito aos arquivos dos anos de 1963 a 1968,
do Jornal dos Sports, entendido como uma fase final, antes do
surgimento das Torcidas Jovens e da geração dos movimentos dissidentes de fins
da década de 1960. Nesse momento, passadas duas décadas da criação das
primeiras torcidas e da geração de seus primeiros líderes, grande contraste de
forma e conteúdo no recorte pesquisado já se identifica no periódico, desde os
temas reportados até o léxico escolhido para a representação do torcedor pelo
jornal.
As práticas torcedoras que germinavam nas páginas pesquisadas n’O Globo dos
anos 1930 e no Jornal dos Sports das décadas de 1940 e 1950 – comemorações
de rua, passeatas, “guardas” dos torcedores de clube durante o carnaval,
promoção pela imprensa de “duelos de torcida” nos estádios, foguetórios,
preparativos para o dia do jogo –, consolidam-se na condição de atividades
rotineiras. Mais que uma consolidação, é possível observar um aumento na
frequência e na intensidade desses hábitos que passaram a constituir um
elemento cultural típico da cidade.
Uma diferença fundamental entre esses dois momentos é como se emprega o
termo “torcida organizada”. Se entre 1936 e 1940 o termo aparece de modo
incidental, ainda vazio de sua significação a posteriori, entre
1963 e 1966 o termo já emerge como uma categoria constante ou como uma
expressão rotinizada. O surgimento de agrupamentos torcedores oficiais, com a
Charanga rubro-negra e a Torcida Organizada do Vasco (TOV), foi incorporado na
paisagem das arquibancadas (uniformes distintivos, faixa fixa no alambrado e
banda musical para animação do espetáculo) e na maneira de sua nomeação pela
imprensa esportiva carioca.
Cada um dos principais clubes do Rio de Janeiro passa a ter uma torcida organizada oficial, reconhecida pelo clube e legitimada pela cobertura do Jornal dos Sports. Clubes de menor força e popularidade também contavam com as TO que seguiam práticas semelhantes. Organizavam festas nos estádios, viagens para jogos em outros estados, preparavam comemorações nas ruas e influenciavam na política dos clubes, seja na posição de situação seja de oposição. Outro traço importante é que não se limitavam ao futebol profissional e compareciam a diversas modalidades para apoiar os atletas de seu clube – futebol de areia, campeonatos de aspirantes, hoje chamados de categorias de base, provas de atletismo, vôlei, basquete, natação etc.
Nos anos 1960, cada torcida era representada oficialmente por um líder, a
saber, os seis principais clubes cariocas, já mencionados acima: Juarez de
Oliveira (Bangu), Elias Bauman (América), Tarzan (Botafogo), Jaime de Carvalho
(Flamengo), Paulista (Fluminense) e Dulce Rosalina (Vasco). Tais lideranças
tinham espaço dentro do jornal e algum grau de interlocução junto aos clubes,
sendo muitos deles associados. Os colunistas identificados com cada clube
divulgavam com constância anedotas sobre esses personagens e contribuíam de
modo indireto para popularizá-los e para chancelá-los em sua legitimidade. Com
frequência eram publicadas entrevistas em que se indagavam quais eram os planos
para eventuais comemorações, as estratégias para o campeonato de torcidas e
opiniões sobre o momento do time e as decisões das diretorias.
Em alguns casos, como o de Dulce e Jaime, seguidores de Vasco e Flamengo,
respectivamente, o destaque recebido pelo jornal podia ser até maior que o dos
dirigentes. Em vários momentos são discutidas as sucessões de comando e as
cadeias de liderança no interior das torcidas, já que alguns deles já eram
veteranos de arquibancada e chegavam à terceira idade. Um exemplo a comentar é
o último mês do ano de 1966, quando concluímos a periodicidade da pesquisa. Ao
invés de reportagem sobre assuntos estritamente esportivos, encontra-se uma
matéria especial, em que se traça em página inteira o perfil de cada um dos
seis principais líderes, como tratamos no fim da última seção.
Meados dos anos 1960 demarca igualmente a cristalização das rivalidades torcedoras. Embora elas já existissem antes, a promoção contínua de “duelos de torcidas” nos chamados jogos clássicos colocava a concorrência dos torcedores à frente do confronto esportivo em campo. Direta ou indiretamente, estimulavam-se no jornal provocações entre torcidas e clubes. Não raro, atitudes provocativas entre rivais eram promovidas pelos próprios colunistas, que dialogavam através das páginas jornalísticas.
A emulação podia ser colocada em segundo plano em duas situações: quando
salientava-se a união das torcidas cariocas em prol do apoio à Seleção
brasileira e quando se opunham rixas bairristas interestaduais. Essas exceções
ficam evidentes durante a Copa do Mundo de 1966 na Inglaterra, com a convocação
de uma torcida conjunta da Seleção brasileira, a envolvendo as TO de cada time,
durante os amistosos preparativos no Maracanã. Também nessa Copa fica evidente
o papel do cronista Nelson Rodrigues, a propor uma união dos torcedores
cariocas contra os paulistas.
Tal polêmica diz mais sobre rivalidades entre imprensas de cada estado e
consequentemente a luta inter-jornais por hegemonia na comunicação esportiva.
Estende-se tal lógica subsumida à das torcidas, com a suspensão de diferenças
internas, em favor de uma identidade maior carioca, abalada desde 1960, com a
transferência da capital federal para Brasília.
A relação da imprensa com as torcidas passa também pelo torcedor comum,
isto é, por aquele não organizado. Seu discurso procura orientar o torcer, com
o estímulo ao ambiente festivo nas arquibancadas. A resiliência do tema vem
desde os anos 1930 e ganha vulto na década de 1960 por certa pretensão em instruir
e “educar” o torcedor. Reforçam-se ideais morais, como o do fair play,
em narrativa enquadradora resiliente que se dilata até os dias de hoje. Quanto
às torcidas organizadas, há uma grande diferença na abordagem prática e na
construção discursiva da época pesquisada e do que se pratica hoje. No período
pesquisado no Jornal dos Sports, nota-se uma abordagem positivada
das TO, assim como espaço nas páginas para a manifestação dos seus
representantes e a divulgação de suas atividades.
Dessa maneira, é possível compreender em seu painel histórico a atuação e a
representação das lideranças de torcidas do Rio de Janeiro em meados do século
XX, durante a formação de uma cultura de massas esportiva na cidade, capital da
República até 1960, e um dos centros da projeção identitária nacional, em que o
futebol e a música, dois aspectos constitutivos da identidade das torcidas
organizadas, se entrosavam, numa espécie de simbiose e sincretismo.»
Artigo completo disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-4369e2023026
Endereço das fotos: https://poylatam.org/pt/torcedores-do-botafogo-orgulho-e-gloria/





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