segunda-feira, 5 de maio de 2025

Nana, Botafogo e outras estrelas solitárias

Eduardo Affonso é botafoguense, arquiteto, vegetariano e quando tem tempo é cronista e fotógrafo; é mineiro, taurino convicto, gosta mais de poesia do que de prosa e admira Nana Caymmi.

por EDUARDO AFFONSO | oglobo.globo.com

A maior cantora, o maior time. Só que não para todo mundo. O Flamengo tem a torcida; Anitta o fã-clube; O Fluminense a história; Xuxa, mais discos vendidos. Vasco tem mais garra; Elis, voz potente. Mas, com a licença do vascaíno Drummond, só Nana é capaz da canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças. Com a devida vênia do flamenguista Arnaldo Jabor, todos os times são prosa; o Botafogo é poesia.

Nana Caymmi e o Botafogo estão juntos aqui porque carregam, cada um a seu modo, uma elegante melancolia em preto e branco. Por gloriosos que sejam, cultivam glórias passadas. Flertam com o abismo.

Quem, a não ser o Botafogo, perderia o título mais ganho da história do futebol? Quem, senão Nana, teria tido a ideia de dar a um disco de boleros (boleros em pleno ano de 2000!) o título de “Mi último fracasso”? (A gravadora não deixou. A obra saiu como “Sangre de mi alma”. Os torcedores bem que suaram sangue na arquibancada, o time de alma trágica fracassou no fim.)

Eles são assim, bemóis, outono – aquele dos soluços dos violões, que enchem o coração de dor e abandono (versos de Verlaine e Wisnik – este, um santista, mas o Santos é o Botafogo paulista, assim como Manuel Bandeira era o Botafogo dos poetas, e Hilda Hilst sua Nana).

Temos as cantoras do rádio, da Jovem Guarda, da fossa, da Bossa Nova, da MPB. As roqueiras, as baianas, as ecléticas. Do samba, do funk, do feminejo. Nana é (olha o Botafogo aí de novo) uma estrela solitária, daquelas de lutar quando é fácil ceder.

Sabe a “fase popular”, de lançar discos com canções “românticas” para alavancar as vendas? Pois é, toda cantora tem. Não, Nana não teve. Romântico, no dialeto que só ela fala, é outra coisa. É Oh, insensato coração / por que me fizeste sofrer?. É uma só noite de paz pra não lembrar / Que eu não devia esperar / E ainda espero. É me tira desta canseira / Me tira essas olheiras / De esperar tanto tempo / A mudança dos ventos. É Não lance nos meus / Esses olhos de mar / Que eu desisto do adeus / Pra me envenenar.

Seu maior sucesso não foi releitura de brega ou obra de hit maker, mas uma resposta ao tempo, escrita por Aldir Blanc e Cristóvão Bastos. E, na contramão de tudo, dedicou seus discos mais recentes a Tito Madi, Tom e Vinícius.

Não sei que time seriam o conto, o romance, a novela – mas a crônica é Botafogo. E Nana canta como ninguém os cronistas da canção: Paulo César Pinheiro, Fernando de Oliveira, Cacaso, Peterpan, Chico Buarque, Dolores Duran.

Pouco mais de um ano separa os nascimentos de Nana (29 de abril de 41) e do Botafogo (dezembro de 42). Mas já éramos campeões em 1907, e Nana começou a cantar ainda antes de nascer, quando Dorival se encantou por Stella Maris, na Rádio Nacional.

Tentar calar o outro virou sinal de virtude, e Nana continuou desbocada. Palavras matam, pronomes ofendem – e olha Nana fiel ao palavrão, aquele que liberta.

Não sei por que time torce Nana Caymmi. Torço que seja o Botafogo, ela que faz com a voz e a canção o que Garrincha fazia com os pés e com a bola.

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* Escrito no dia 1º de maio, antes que a estrela solitária, cuja respiração também era música, deixasse de respirar.

Nota do Mundo Botafogo: Nana Caymmi era torcedora do Flamengo.

Fonte: https://oglobo.globo.com/opiniao/eduardo-affonso/coluna/2025/05/nana-botafogo-e-outras-estrelas-solitarias.ghtml

2 comentários:

Sergio disse...

Esse realmente foi um grande fã da Nana Caymi, independente do clube de coração cantora, uma admiração interessante. Abs e SB!

Ruy Moura disse...

Sim, uma coisa pode não ter relação com a outra. Conheço pessoas de direita que apreciam artistas de esquerda e vice-versa. Porém, como puro botafoguense que é, Eduardo Affonso não resistiu a relacionar o Botafogo à artista que admira recorrendo à figura da Estrela Solitária. Botafoguense sempre teve artes subtis de relacionar o Botafogo com outras paixões suas, como se fosse impossível gostar de coisas que não se relacionassem ao Botafogo. (rsrsrs)

Abraços Gloriosos.

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