“Didi: a
trajetória da folha-seca no futebol de marca brasileira” – artigo científico de
Luiz Henrique de Toledo do qual o Mundo Botafogo selecionou alguns excertos.
por LUIZ HENRIQUE DE TOLEDO
Antropólogo e professor da
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), formado pela Universidade de São Paulo
(graduação em Ciências Sociais-1988, Mestrado em Antropologia-1994, Doutorado
em Antropologia-2000 e pós doutorado-2018)
[EXCERTO
SOBRE A FOLHA-SECA (Toledo, pp. 79-81)]
Folha-seca significava, além de
trajetória quase improvável imposta à bola, um gol certo. Quem a fazia de um
modo todo particular era Valdir Pereira, mais conhecido por Didi, um dos
maiores nomes da primeira conquista brasileira de uma copa do mundo de futebol,
em 1958, na Suécia. Chute considerado um tanto quanto insolente, sobretudo do
ponto de vista indignado dos adversários, fazia a bola descrever no ar um
percurso sinuoso – uma meia parábola, como afirmam alguns –, obviamente
intencional, uma vez que ela não raramente chegava às redes, de mansinho. A
dedicação e os significados simbólicos dados aos chutes de Didi são tamanhos
que, volta e meia, comportam descrições pormenorizadas, definições precisas,
tais como:
Uma dolorosa contusão no
tornozelo da perna esquerda levou este jogador detalhista à utilização, não do
peito do pé ou de faces interior e exterior, mas de sua extremidade, batendo na
bola com a superfície do dedo maior e dois artelhos. Com isso, a dor não se
manifestava, e nascia a bola-de-efeito tanto para o passe curto e de longa
distância como, sobretudo, para a cobrança do tiro livre com barreira – a
famosa “folha seca”. (Ostermann & Cabral, 1970.)
Ou
um jeito venenoso de bater
faltas. A bola subia, despretensiosa. Ao chegar perto do gol, tomava outra
direção, caindo longe dos braços dos goleiros, lembrando o movimento de uma
“folha seca” caindo de uma árvore. (www.futbrasil.com)
Ou ainda, em prosas mais
alegóricas:
Didi reinventava a geometria
euclideana [...] passes esquivos e dissimulados como o olhar de Capitu.
(Armando Nogueira, O Estado de S. Paulo, 16 mai. de 1993.)
Chutando de longe, enganava o
goleiro [...]: batia na bola com o lado do pé e ela saía girando e girando
voava, dava cambalhotas e mudava de rumo como uma folha seca perdida no vento,
até que se metia entre as traves, no ângulo onde o goleiro não esperava.
(Galeano, 1997, p. 120.)
E mais,
[...] a bola descreve uma
trajetória elíptica de semi-boomerang, enganando o goleiro. (Leite Lopes, 1997,
p. 72.)
E, por fim, nas palavras do
próprio jogador:
Eu levei uma pancada no
tornozelo, um carrinho que tocou meu pé apoiado. Inchou na mesma hora. Botaram
éter, e tal, e eu terminei o jogo. Mas fiquei quinze dias fazendo exames, pra
ver se tinha infecção. Não acharam nada e eu não ficava bom. Aí eu comecei a
bater na bola “cortando”, e não sentia. Comecei a fazer peso. Amarrei um
paralelepípedo com arame, coloquei um paninho pra não ferir o pé e fiquei
suspendendo, com a ponta dos dedos. Fiquei com isso aqui forte [aponta a parte
superior dos dedos, logo abaixo do peito do pé], mas perdia as unhas a cada
três meses. E eu jogava com a chuteira 40, embora calçasse 41, para o pé ficar
bem coladinho.1 Eu colocava a chuteira antes de entrar no gramado, amarrava ali
mesmo. Não usava tornozeleira nem faixa, só meia e chuteira. E dava um laço de
sapato, comum. Eu pegava na bola “cortando”, e ela passava a barreira e caía.
Quer dizer, a única preocupação era tocar certo pra que a bola passasse da
barreira. Se passasse, era só levantar os braços, ela ia lá no cantinho. (Revista
Bundas, nº 61, ago. 2000.)
A folha-seca foi um ato quase
solitário marcado pela habilidade individual de uma técnica corporal repetida,
treinada inúmeras vezes, revelando na mesma proporção uma considerável dose de
improviso, recurso que tal procedimento exigia cada vez que Didi o realizava.
Mas também uma habilidade socialmente muito valorizada por toda uma
coletividade, fazendo dela uma experiência mais transcendente.
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