[nota MB: texto
absurdamente notável do jornalista botafoguense mais artístico da prosa
desportiva brasileira.]
por ARMANDO NOGUEIRA
| Jornalista desportivo | 02.09.1997
«Botafogo,
campeão da Taça Guanabara. Venceu folgado, embora seja uma equipe de escasso
fulgor. Passou por todos os adversários, jogando, sempre, à conta do chá. Nem
mais, nem menos. É um time sem estrelas de primeira grandeza. A rigor, tem um
astro: Gonçalves. O time é corajoso, sem ser temerário. Sereno, sem ser indolente.
Guardadas as devidas proporções, me lembra a seleção de Parreira jogando num
rígido 4-4-2 que vence mas não arrebata ninguém. Quando tem a posse da bola, o
time alvinegro põe o jogo em banho-maria. Troca passes, numa cadência pausada
como um adágio, por sinal, bem regido pelo estilo compassado de Djair. Mesmo o
contra-ataque, arma preferida da equipe n jogo final, mesmo o contra-ataque
nada tem de vertiginoso. É alegro ma non troppo.
Louve-se no time do
Botafogo, acima de tudo, a solidariedade, dentro e fora de campo. Da noite pro
dia, o time revelou-se uma entidade ampla e indivisível. Juntando virtudes que
forjam uma equipe. E é da alma que vem a glória o exporte. Cabe aqui uma
verdade irrefutável com sabor de paradoxo: um time é coletivo na soma de seus
integrantes, mas é sumamente individual na alma única que o engrandece. Alma
que, no caso do Botafogo, tem forma de estrela. Solitária. Solidária.
O Botafogo começou a
Taça Guanabara sitiado de descrenças. Fez um time de jogadores enjeitados. Cada
nova contratação era noticiada com desdém. Todo mundo duvidou de uma equipe que
acabara de perder ninguém menos que Túlio, seu maior trunfo. E ainda assim, venceu.
Mal sabiam os desavisados que é de coisas assim, inexplicáveis, que vive o
Botafogo. Sempre fi desse jeito. Quando menos se espera ele apronta uma. O que
parece uma simples frase de efeito, na verdade, é um desígnio de berço: há
cisas que só acontecem ao Botafogo.
Só quem não conhece a
vida do Botafogo é capaz de se admirar que, de repente, ele faça o tremendo
estrago que fez na vida do Flamengo, pondo em campo, contra Romário e Sávio, um
mero time reservas. Coisas do Botafogo. Como dizia o poeta Paulo Mendes Campos,
o Botafogo, tal como ele, Paulinho, sempre foi um tanto tantã.
Em 1948, ganhou um
título com um belo time e atribuiu todos os méritos do triunfo a um cachorro
vira-lata. Chamava-se Biriba. Entrava em campo à frente da equipe, tirava fotografia,
fazia pipi no pé da trave do adversário – e pronto – era mais um jogo ganho.
Nesse mesmo ano de 48, o Botafogo mandou embora o seu bem-amado Heleno de
Freitas e, sem ele, sairia campeão carioca, desbancando, na final, o Vasco, até
então invicto e louvado como o melhor time do Brasil.
O poeta Augusto
Frederico Schmidt era louco pelo Botafogo. O professor São Tiago Dantas, amigo
cáustico do poeta, achava que os dois nasceram um para o outro. Ambos, clube e
poeta, tinham a vocação do erro. Picuinhas intelectuais. A índole botafoguense
é, isso sim, meio neurótica. De repente, ele emerge da mais sombria depressão pro
gozo mais delirante de uma goleada como aquela da decisão de 57, contra o épico
Fluminense. Sies a dois! Nélson Rodrigues deixou o Maracanã carregando no rosto
o mais lívido dos silêncios.
O Botafogo sempre se
lixou pra lógica da vida. Prefere apostar na superstição. Sempre viveu atrelado
ao sortilégio das feitiçarias. Carlito Rocha, quando precisava imobilizar o
time rival, mandava alguém de fé dar um nó na cortina de veludo do salão nobre
do clube. O time inimigo passava a não andar mais em campo… Nilton Santos,
jogador magistral, não abria mão das mandingas que o roupeiro Aloísio fazia, no
vestiário, na véspera de um jogo, fosse contra o Flamengo, fosse contra o
Fuleiro F. C.
Esperar o quê de um
clube que tem por insígnia uma estrela? A estrela de cinco pontas é,
justamente, o símbolo do centro místico do mundo.
A moça que está aqui,
na mesa ao lado da minha, veste, festiva, uma camisa do Botafogo. Que linda
mulher! O rosto, quase grego. A pele, alva e fina, me enternece. Contemplo a
beleza da mulher, pensando: se a vida, se a própria vida falasse em voz alta,
ia passar a vida toda a se gabar, com orgulho, dos encantos dela.
Tanta beleza assim,
numa simples criatura, talvez seja uma dessas coisas que acontecem ao Botafogo.
A moça ostenta na camisa uma estrela solitária. Dentro e fora do peito.»
6 comentários:
Que texto maravilhoso! Bons tempos em que tinhamos cronistas decentes, e não esses bobões pseudo jornalistas clubistas. Abs e SB!
Curiosamente, os melhores textos sobre o Botafogo nem foram de Armando Nogueira, mas da autoria dos irmãos Mário Filho e Nelson Rodrigues. Eram tricolores, mas respeitavam as suas atividades profissionais e tinham a ética hoje desconhecida por esses repugnantes grunhos da mídia.
Abraços Gloriosos.
Eu não me lembro desses grandes comentaristas do passado tentando desmerecer outras equipes, fazer chacota ou destilar ódio, muito pelo contrário, sempre demonstraram respeito e exaltavam as qualidades dos times e dos jogadores, sejam lá para que times eles torcessem. Abs e SB!
Exatamente! No tempo do futebol amador eles portavam-se como profissionais; no tempo do futebol profissional portam-se como amadores. Meros lacaios que não deixam um único texto valioso para a história.
Abraços Gloriosos.
Ontem o cronista era cronista, ronancista e poeta. Na crônica. Hoje são meros e grotescos metidos a adivinhar. Nem pitonisa antiga e milenar chegam perto...
Sem dúvida, mas além de metidos a adivinhar também são malévolos na sua diatribe violenta e injuriosa. Pavorosos e perigosos. Que diferença abismal para os textos de outrora que juntavam a crônica, o romance e a poesia de uma forma tão holística e tão bela!
Abraços Gloriosos.
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