terça-feira, 13 de abril de 2010

O depoimento de Fernando Molica


por Fernando Molica
13 de Abril de 2010
publicado com autorização
http://www.fernandomolica.com.br/blog/

Desde pequeno - tenho 49 anos - me acostumei com a ideia de que havia quatro grandes clubes de futebol no Rio: Botafogo, Flamengo, Vasco e Fluminense. Bangu e América tentavam correr por fora, beliscavam vitórias e, de vez em quando, um título. Lembro que, nos chamados clássicos, a arquibancada era dividida. Metade pra cá, outra metade pra lá. Isso, mesmo que jogo fosse do Flamengo contra o Botafogo ou o Fluminense. A divisão se refletia na sociedade, como mostra o ótimo livro da Cláudia Mattos, o Cem anos de paixão.

Ao longo dos anos - 40 anos, muito tempo - o panorama mudou. O Botafogo passou duas décadas sem títulos, o Vasco colecionou vices campeonatos e conviveu com uma ditadura interna, o Fluminense montou sua Máquina (Rivelino, Paulo César, Edinho) e não conseguiu manter uma certa regularidade.

O Flamengo, lá pela metade dos anos 70, teve a sorte e a competência de montar um timaço, aquele de Zico, Júnior, Leandro, Andrade, Adílio, Carpegiani. O rubro-negro ficou na moda, passou também a ser cultivado num universo mais sofisticado, foi para as colunas sociais, seu baile de carnaval virou referência chique na cidade. O clube sempre identificado com os mais pobres virou também o clube dos ricos, desbancou o Fluminense. Grosso modo: o Fluminense virou o dinheiro velho, a nobreza decadente; o Flamengo passou a ser o novo e poderoso rico, temido e admirado - como aqueles tais yuppies, agressivos nos negócios, na luta pelo poder.

Time da Zona Norte, ligado à colônia portuguesa, historicamente sacaneado pelos clubes da Zona Sul (vale ler O negro no futebol brasileiro, do Mário Filho), o Vasco tentou resistir. Afinal, tinha a segunda maior torcida da cidade. Como tinha também o segundo melhor time, eternizou-se na condição de vice. Para piorar, seu dirigente máximo tratou de fomentar a rivalidade com o Flamengo, a estimular a violência, a agressividade. Juntas, fome, vontade de comer e a própria violência na cidade geraram uma situação quase insuportável, a ponto de impedir que torcidas rivais subam a mesma rampa do Maraca.

Sem ter nada a ver com a incompetência dos adversários, o Flamengo cresceu e conquistou uma hegemonia que se tornou desastrosa para o futebol do Rio. Não defendo a teoria da conspiração, mas sustento que, no futebol como na vida, o mundo gosta de sorrir para os mais fortes. Na prática, os juízes cariocas tendem a favorecer o Flamengo. São subornados? Acho que não, apenas não são bobos.

Para não parecer perseguição com o Flamengo. Em 2006, o Botafogo foi escandalosamente favorecido quando disputava a Taça Guanabara com o América. O juiz deixou de marcar um pênalti claro contra o alvinegro. Tinha sido comprado? Não creio. Apenas o sujeito olhou para as arquibancadas, viu que havia 90% de torcedores do Botafogo. E achou melhor não complicar a festa da maioria. No nível internacional, a seleção brasileira conta com uma histórica simpatia dos árbitros.

Ao longo dos anos, a torcida do Flamengo passou a ir mais aos estádios. As histórias de violência - principalmente nos jogos contra o Vasco - afastaram torcedores de outros times. Criou-se o discutível mito de que os rubro-negros são mais violentos. São, sim, maioria. E isso assusta. Na prática, o sujeito comum, não organizado, pensa duas vezes antes de ir ao Maracanã em dia de jogo contra o Flamengo. As arquibancadas deixaram de ser divididas.

Na imprensa, a geração Zico chegou ao poder, desbancou a antiga tradição de jornalistas esportivos alvinegros (João Saldanha, Oldemário Toguinhó, Sandro Moreyra). Os caras mandam nas redações - e é fácil conferir o resultado disso nas páginas.

Dono da maior torcida, da maior quantidade de títulos, simpático à imprensa, o Flamengo também papou a maior parte das verbas publicitárias, reforçou sua identificação com o Rio. A cidade, no seu aspecto esportivo, era vista como um mosaico, fruto da divisão/integração das quatro grandes torcidas. Hoje, o Rio é identificado com o vermelho e o preto.

Por sorte, tanto poder gera divisões. A roubalheira no Flamengo (nenhuma acusação aos atuais dirigentes, apenas uma consideração, digamos, histórica) impede que o clube se torne uma potência absurda (que bom!). Os torcedores são tantos que acabam brigando entre si. Mas tanto poder também gera intolerância, desprezo pelos diferentes, por quem segue outra cartilha, prefere outras cores. Tanto poder vira semente do autoritarismo, de um tipo de intolerância quase fascista. Não estou dizendo, claro, que rubro-negros tendem ao fascismo. Afirmo que hegemonias - tenham as cores que tiverem - volta e meia descambam para comportamentos autoritários, intolerantes, fascistóides.

Com medo de tanto poder, juízes tendem sim a, na dúvida, apitar de forma favorável ao Flamengo. Aconteceu em 2007, na final do Carioca. O gol do Dodô em 2007 - que decidiria o campeonato a nosso favor - não teria sido anulado (e ele não teria sido expulso) se seu uniforme fosse rubro-negro. Aconteceu domingo passado, naquele escandaloso pênalti não marcado a favor do Vasco.

Enfim, a vitória do Botafogo é necessária para arejar o futebol carioca, para acabar com a lógica do partido único, para afastar qualquer possibilidade fascistóide. A vitória do Botafogo é essencial para a democracia. E, claro, a vitória do Botafogo é essencial para mim.
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5 comentários:

Augusto A J Gomes disse...

Artigo lúcido e imparcial mesmo mantendo e afirmando a paixão. Como torcedor gostaria muito de concordar com tudo o que foi dito. No entanto, presente na arquibancada do Maracanã no final da década de setenta e boa parte dos anos 80 presenciei o Arnaldo e o José Roberto, ambos atualmente titulares da 'flaglobo', ao lado do Júnior (coincidência!?), marcando de três a cinco faltas na meia lua, por jogo, a favor desse tal timaço, sem contar com os pênaltis, tudo à feição dos esforçados e bem treinados craques que não deram nehum título à seleção brasileira. Consequência: vitórias, títulos, dinheiro, poder, vitórias, títulos... A velha história do ôvo e da galinha, ou dos roubos e do galinho.

Ruy Moura disse...

Tem inteira razão, amigo Augusto. O tal timaço tinha árbitros a seu favor tal como Zero Berto Wright que expulsou cinco atleticanos num jogo do Flamengo e permitiu que os cathartiformes permanecessem na Libertadores, que ganharam no ano em que os argentinos não competiram.

Aliás, eu tenho essa triste 'história' cathartiforme documentada, e só nunca a publiquei para não se pensar que tenho 'dor de cotovelo' ou coisa pareceida.

Não conheço nenhum time cathartiforme que seja realmente de invejar. Aliás, creio que no Rio de Janeiro os melhores times dos quatro grandes clubes foram o famoso 'expresso vitória' e o Botafogos de Didi, Garrincha e Nilton Santos (e Paulo Valentim, Quarentinha, Amarildo e Zagallo). E o time de Manga, Rildo, Gerson, Roberto e Jairzinho não ficava muito atrás. Também teve papel fundamental na copa do mundo.

Os citados do Fluminense e dos cathartiformes creio que eram inferiores.

Abraços Gloriosos!

Leonel Ventorim disse...

Muito bonito o texto. Parabéns ao autor.

Leonel de Jesus

Luiz Rogério disse...

Rui,

O texto é interessante, mas não concordo muito com o seu conteúdo, a hipotética hegemonia rubro-negra no futebol do rio ficou descrita, como bem asseverou o amigo Augusto, "lúdica", pois faltou mencionar como a Rede Globo de Televisão, maior potencia brasileira em telecomunicações apoiou e difundiu as cores do "mais favorecido do Brasil".

Mas de qualquer forma é um texto muito escrito e demonstra conhecimento sobre o futebol carioca.

Abraço e saudações alvinegras!!!

Luiz Rogério

Ruy Moura disse...

Luiz, creio que a pressão da envolvente da mídia e dos torcedores cathartiformes acaba por influenciar alguns botafoguenses. Por exemplo, já li muitos botafoguenses a insistirem que há bons rubro-negros e que blá-blá-blá. É influência de amigos, de envolvente do emprego, etc. Na verdade, salvo raras exceções, as melhores pessoas transformam-se em pessoas exceráveis quando falam de futebol e simultaneamente são torcedores rubro-negros. Por isso, acho que o Luiz tem razão nas suas apreciações. Mas o texto do Molica é muito interessante mesmo com essa 'pequena' falha. Por isso o publiquei.

Abraços Gloriosos!

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