por LÚCIA SENNA |
Escritora e Cantora | Cronista do Mundo Botafogo
Há uma batalha travada dentro do meu
corpo neste carnaval. Enquanto minha alma carnavalesca anseia por folia e
diversão, meu pé parece ter declarado guerra contra a alegria festiva. Já não é
a primeira vez que o pé me deixa na mão. Sendo mais específica, quebrei o osso
do tornozelo e me vejo presa a uma bota ortopédica às vésperas do carnaval.
Dizem as más línguas que só quebrei o tornozelo pra não dar o braço a torcer. Confesso
que a observação me deixa um tantinho vaidosa pelo poder da minha própria
teimosia. Sim, talvez aja um grão de verdade nisso.
Mas, voltemos para o que de fato
interessa:
Ele, o vilão dessa história, é um
sujeito estranho e insensível, dono de uma personalidade teimosa e mal-humorada,
fazendo questão de sabotar qualquer tentativa de diversão. Sempre foi
preguiçoso, avesso aos festejos de Momo e, no momento, se porta como uma diva
acidentada, desfrutando do conforto do ar condicionado do quarto, trepado em
vários travesseiros, curtindo essa inesperada pausa pré-carnaval e com ar de
puro deboche, sugere-me enfeitar a bota ortopédica com adereços festivos ou
improvisar uma fantasia de pirata com moletas. Esse sujeito é mesmo
extremamente arrogante!
Triste mesmo é perceber que me
encontro em um verdadeiro duelo épico com meu próprio tornozelo. Quem diria que
aquele ingrato seria capaz de tal desfeita. Aqui estou eu, doída de tristeza
por não poder participar das festividades e ele, o grande culpado, simplesmente
não se importa. Eu, que sempre o tratei como uma verdadeira estrela de cinema,
com cremes esfoliantes, hidratantes de luxo, massagens dignas de SPA cinco
estrelas, o que recebo em troca?
Não, minha gente, é decepcionante
constatar que um velho companheiro de vida, possa ser tão indiferente à nossa
relação. Deveríamos ser como irmãos, já que estamos unidos por uma história
compartilhada desde o momento que demos os primeiros passos. No entanto, ao
invés de demonstrar gratidão e lealdade, ele parece preocupar-se apenas consigo
mesmo. Nem percebe que procuro carregar o peso do mundo sobre os ombros só pra
não sobrecarrega-lo.
Será que é pedir demais que ele
reconheça nossa conexão e faça um esforço pra colaborar? Bobagem minha
acreditar nessa possibilidade. Não há como convencer um tornozelo tão cheio de
si, adotando atitudes de oposição obstinada, a participar da folia. Ele sabe
melhor do que ninguém o quanto gosto de carnaval. Ainda assim, já me tirou da
festa algumas vezes. Começo a pensar que deve haver alguma razão muito séria por
trás de tanta rabugice.
Volto no tempo com a intenção de
rever nossa longa história. Estou com 15 anos, preparando-me para uma festa e
já o vejo sabotando meus planos de um jeito muito peculiar. No início, uma leve
sensação de desconforto, evoluindo para um inchaço doloroso, impedindo-me de
dançar como gostaria. Atribuía o fato a um azar inexplicável. Jamais poderia
supor que meu tornozelo estivesse conspirando contra mim. Mas, a verdade é que,
estranhamente, isso aconteceu inúmeras vezes.
Retorno dessa viagem com uma teoria
absurda em minha mente inquisitiva: e se ele estiver agindo por ciúmes? Pode
soar ridículo, eu sei, mas à medida que mergulho fundo nessa ideia, ela começa
a fazer algum sentido. Afinal, sempre tive uma alma festiva, agitada, energética.
Já ele, o avesso disso: tímido, sonolento, sem atrativos físicos e nenhum
traquejo social.
E tudo começa a ganhar contornos
ainda mais claros ao lembrar-me que ele age de forma especialmente problemática,
toda vez que estou me divertindo, rindo alto e até mesmo flertando com alguém.
Ele logo protesta, inchando e doendo, só pra chamar atenção. Eis aí uma
revelação surpreendente e de certa forma, engraçada. Nunca imaginei que um
simples membro do corpo pudesse ter sentimentos tão humanos e, ao mesmo tempo,
tão irracionais.
Amigas solidárias chegam carregadas
de superstições, simpatias e quilos de cristais energizantes que vão deixar o ingrato
em ponto de bala, pronto pra sambar. “Vingança, dizem elas, é prato que se come
frio”. E, antes que iniciem os elaborados rituais de cura, informo, diante de
olhares incrédulos, que já não sinto mais o mesmo entusiasmo em relação ao
carnaval.
A questão é que descobri ser o
tornozelo meu ponto fraco, vulnerável e assim como o lendário calcanhar de
Aquiles, ele se revela como sendo minha própria vulnerabilidade, uma lembrança
constante de que até os mais fortes, tem seus pontos fracos. A hora, portanto,
é a de deixar as festas de lado para cuidar adequadamente dele.
As amigas, confusas e sem entender
muito bem o que estou dizendo, me olham com expressões que oscilam entre o
espanto e a perplexidade. E entre risos nervosos, uma delas exclama: “Espera aí,
você está falando sério sobre esse tal de Aquiles, aquele cara saradão? Eu
achava que era somente um personagem de filme de ação!”
“Ah, sim, querida, esse mesmo! Mas
olha, se eu fosse vocês, ficaria de olho nos calcanhares também. Nunca se sabe
quando eles vão se revelar e começar a desligar os superpoderes de todas nós.”
39 comentários:
Adorei. Lúcia, você com seu humor maravilhoso, consegue criar uma história fantástica da sua relação com o seu próprio tornozelo. Ah, amiga. ... legal demais. Bjssss, Carmem.
Lúcia e seus finais imprevisíveis, fazendo com que nós, leitores, fiquemos ansiosos pelos desfechos inimagináveis!
Guilherme.
Você, Lúcia, nos diverte pra valer.Muito espirituosa essa nossa cronista! Em um mundo tão problemático e violento, o que todos nós precisamos mesmo é de um momento para desligarmos de tudo e dar boas risadas.E é isso que as crônicas dela tem de sobra.
Amiga, dizer que gostei muito da crônica é ser repetitiva. Só digo, então, que fiquei pra lá de surpresa com o tema de hoje kkkkk. Bom demais!!!!! Regina.
Lúcia, só uma pergunta: depois daquela viagem tenebrosa com a Fera da Previsibilidade (kkkk) e, agora, fazer de um tornozelo quebrado, inchado e dolorido, tema da crônica de hoje, diz aí...Como consegues sempre tirar proveito das situações mais espinhosas e transformar em algo tão divertido, mesmo usando uma bota ortopédica? Aguardo resposta.
MACEDO
Oi, Lúcia
Que titulo mais original KKKKKKK e que arremate delicioso. Do início ao final, show!
Parabéns pelo talento! Saiba que fazer rir é bem mais difícil do que fazer chorar.
Edson
Acabei de ler a crônica com a minha mãe. Ela está com mais de 80 anos e se admirou de sua verve e inteligência. Perguntou-me onde você publica suas crônicas. Já dei a ela o caminho das pedras. Acabas de ganhar uma nova fã. Beijão, minha querida cronista predileta. ANA
Muito bom, prima querida!Adoro teu jeito de escrever, transformando casos verídicos em uma elegante e gostosa piada! SLYVIA
Depois da gotinha, simbolo da liberdade e da Tereza, presa nela mesma , vítima de suas neuroses, Lúcia nos traz uma relação totalmente inusitada qual seja , dela com seu proprio tornozelo.Quem poderia imaginar escrever sobre algo , a principio, tão maçante... Pois conseguiu fazer uma crônica que reputo uma das mais incríveis dentre tantas e tantas já aqui publicadas. GENIAL!!!!
Joaquim Alves.
Hoje, só quero te parabenizar mais uma vez pela imaginação fértil, e através dela compartilhar com todos nós aqui do blog, sua admirável capacidade criativa. Um tornozelo que sofre de ciúmes é algo delicioso!!! kkkkkk ALVARO MONTEZ.
É uma relação antiga e problemática. Ciumento e possessivo como ele só...kkk.
Valeu, Carminha pelo retorno Beijão.
Ah, Guilherme...e como são difíceis bolar arremates interessantes. Quando me dizes que gostas deles, sinto- me verdadeiramente lisonjeada!
Obrigada, por mais esse retorno tão gentil.
Tens razão, amigo. Nada pode ser melhor do que uma boa risada. E se eu, de alguma forma, te faço sorrir com os meus escritos, fico feliz da vida.
Grande abraço,
Eu também kkkk.
Mas , obrigada a ficar dentro de casa, sem saber o que acontecia fora das paredes do quarto, o jeito foi mergulhar pra dentro de mim mesma e o tornozelo,no apagar das luzes,foi a salvação da lavoura. Beijo,Re.
Ah, Macedo...não me faça perguntas difíceis... kkk Sinceramente, acho que é repetitivo afirmar , mas não me ocorre te dar outra resposta que não seja a velha história de fazer limonada com os limoes que a vida nos impõe.
Será que respondi a tua pergunta? Espero que sim.
Abraços gloriosos.
Confesso que a coisa é tão real que cheguei a ficar com muita raiva do teu tornozelo. Inclusive fui uma das amigas a te levar conforto com a minha sacola carregada de cristais, a título de me vingar do antipático e infiel tornozelo. Que loucura! eu, hein!!! Tua doce loucura, estava me levando junto.... KKKKKKKKKKK; Confesso ainda que amei a história. Beijão, da Leila.
Oi,Edson.
Concordo com a tua afirmação,embora eu seja uma chorona de marca maior.
Obrigada pelo comentário amigo de sempre. Valeu!
Abração.
Poxa,Ana! Ganhar uma fã é sempre motivo de grande alegria. Ela será muito bem-vinda aqui no blogue. Amei a novidade!
Beijos pras duas!!!!
Oi,minha prima !
Que alegria te encontrar aqui no blogue.Alegria ainda maior é ler teu comentário. Valeu, queridona ! 💋 💋 💋
Joaquim Alves, caríssimo leitor! Estou me sentindo lá nas alturas com esse teu depoimento.
Nem por um instante poderia imaginar que o meu tornozelo ainda pudesse , no apagar das luzes, me trazer tanta felicidade..
Muito obrigada pelos elogios. Eles me enchem de vontade de contar cada vez mais histórias e dividir aqui com vocês.
Muitíssimo obrigada!!!!
Lúcia, digo e repito mais uma vez: és uma figurinha adorável.Tuas " sacadas" são hilárias, a conferir : " eu que sempre o tratei como uma verdadeira estrela de cinema, com cremes hidratantes, esfoliantes, massagens dignas de SPA 5 estrelas.... " não é fofo demais????
beijão da Letícia , fã number 0ne !!!!!
Que delícia esse depoimento da ANA que demonstra como o partilhamento da arte de nossa querida Lúcia, encanta pessoas das mais variadas faixas etárias.Parabéns, amiga, por fazer com que suas crônicas despertem interesse por várias gerações.
CRISTINA NEMER!
A crônica é a tua cara.Só em um ponto, não concordo : acho que não deverias ter deixado as festas de lado.Conhecendo como te conheço, acho que não merecias tamanho sacrifício. Esse " CARA" não era merecedor da tua angustia, pois carnaval pra ti sempre foi sagrado. De resto, tudo ok! Tua irmã Mariane !
Espetacular! Você é mesmo muito criativa. O final é delicioso kkkkkkk
Raquel ( nora)
Vou dizer uma coisa: a Lúcia é muito sedutora. sabe prender seus leitores do inicio até o final. Destaco o título e a imagem. Como passar batido e virar a página, vendo tanta engenhosidade não só no título como na imagem ?
Parabéns, Lúcia Senna e obrigado por instantes de plena e total descontração.
CELSO
Pois é, Alvaro... sempre me criou problemas, afastando-me das pessoas amigas, pois logo ficava inchadão, mal -humorado, um porre! KKKKK . Minha esperança é que depois dessa crônica, feita exclusivamente pra ele, fique mais satisfeito e me trate melhor. KKKK abração!
KKKKK, foi mesmo. Chegaste que era só cristal ! Acho que com jeitinho daria pra fazer uma outra crônica sobre vocês, amigas lindas e com um adorável quê de loucura. Beijocas !!!!
Obrigada, LÊ! adorei saber que és minha fã " number one". E porque me escondeste esse fato por tanto tempo? kkkk
Beijocas, figurinha!!!!
Cris, eu também fiquei muito feliz com esse depoimento da ANA e, agora, com o teu. Realmente é demasiadamente acalentador saber que pessoas das mais variadas idades curtem os meus textos. Beijocas, amiga!
Gostei do teu comentário, minha irmã. Ele é a tua cara! Sempre equilibrada e sensata nas tuas opiniões. Beijão!
Meu caríssimo leitor!
É muito bom perceber que ainda guardas na memória as crônicas da Gotinha e da Tereza , estabelecendo comparação com a de hoje. Poxa, isso me deixa altamente inspirada e agradecida! Não sei o que te dizer diante de comentários tão deliciosos.
Obrigada mais uma vez.
Abraços gloriosos!
Alô, Raquel!
Obrigada, queridona !
Posso confessar uma coisa ?
Também achei o final muito legal. Sei que autoelogio é algo a ser evitado. Mas é que passei um bom tempo sem saber como finalizar o texto. De repente, um estalo aconteceu. Corri para o computador e ...ah,que alívio. A ideia me pareceu gira, como diria o Ruy. Que bom,que fui aprovada também por ti
💋 💋 💋
Uau.....Que delícia de depoimento!!!!No entanto,é importante dar a César o que é de César. O que quero dizer com isso ? Bem...que a imagem foi escolha do Ruy . Ele tem escolhas sensacionais, o que muito engrandece o texto.
O Ruy é o máximo em tudo o que realiza,haja visto o próprio blogue,não é mesmo?
Obrigada,Celso, e um grande abraço.
Bom dia, há tempos não acesso o blogue. Estava fora do Brasil. Ontem, depois de um longo e tenebroso inverno, voltei e tive a sorte de encontrar uma crônica sua. Lembro-me ainda perfeitamente de um comentário que fiz a priscas eras, e vou repeti-lo : tuas crônicas são variadas e coloridas que dá gosto de ler. Mal comparando,parecem caixas de lápis de mil cores, dos estojos da minha infância. Parabéns por me trazer a infância de volta. THADEU.
Bom dia, Lúcia Senna!
Você é memo uma humorista nata. Não é de hoje que tenho lido as crônicas publicadas aqui no blog do RUY e nunca vi um traço sequer de desanimo, pessimismo ou mesmo abatimento nos textos. E olha que essa de hojetinha tudo pra ser. No entanto, tudo é transformado em alegria, imaginação , criatividade e energia positiva. Que alquimia é essa? Grande abraço do JOÃO MARTINI .
Que bom tê-lo de volta! Ah! João... que alquimia nada, kkkk´. É muito esforço mental , muito suor para que as coisas aconteçam. E os aplausos de vocês, caros leitores, são a minha maior recompensa. Não suma mais, por favor. Estarei esperando aqui nesse nosso MUNDO, tão diversificado e encantador. Grande abraço e feliz regresso.
Tua resposta, THADEU, é pura poesia. Lindo demais, a comparação das crônicas com os lapís de cores da tua infância. Obrigada pelo comentário tão cheio de ludicidade.
Abração!!!!
Ah, Lucia! Esse seu tornozelo é, na verdade, muito manhoso! Um tornozelo de diva! Rebelde e cheio de atitudes!! E, de quebra, ainda rende divertidas crônicas!! Parabéns para ele!!
🤣🤣
Sol de Anlarec
Estás coberta de razão. Ele é mesmo muito rebelde. A partir da crônica, feita exclusivamente pra ele , já o sinto diferente, mais amigo, menos inchado e com a moral mais elevada. No fundo é um sujeito carente e ávido por atenções especiais. Minha esperança é que passe a ter atitudes mais sensatas em relação a mim. Estou levando fé. Vamos ver como ele ficará daqui pra frente...
Beijocas 💋
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