por Paulo Marcelo Sampaio
publicação autorizada pelo autor
Na beira do campo, o juiz reserva levantou uma placa
com bolinhas vermelhas e brilhantes. Não entendi nada. “O que é isso?”. O
vizinho explicou que aquela gerigonça eletrônica anunciava os acréscimos: mais
quatro minutos. Estranhei. Sou de uma época em que não se podia substituir
jogador. Mas, antes de eu morrer, já havia os tais acréscimos, chamados na
época de descontos. Nos meus tempos de juiz – sim! Fui juiz também! Até jogo do
meu Botafogo já apitei. Como foi difícil manter a neutralidade! – nada me
irritava mais do que jogador fazendo cera. Pois bem. Ganhávamos por 3 a 2 e
ainda teríamos quatro minutos pela frente. Mesmo com meus 109 anos de músculos
flácidos, artrites e bicos-de-papagaio incontáveis, criei coragem e me
levantei. Quase me arrependi. Esse novo Maracanã, com essas luzes de cabaré,
não é nada amistoso para peripatéticos como eu. Ah, que saudades da cinzentada
dos largos degraus, que serviram como encosto de uma poltrona. Assisti a muitos
jogos quase deitado, quando o clube carecia de craques nos anos 70. Driblando
as cadeiras, me apoiando nas costas delas, fui vencendo os obstáculos. E
cheguei ao último degrau do estádio já ofegante. Havia poucos velhos. Poucos me
reconheceram. Dois ou três. Melhor assim. Não queria ser visto como um
ex-presidente ilustre, considerado como o pai do botafoguismo islâmico, a
gênese da superstição. Não era nenhuma máscara, nenhuma vaidade. É que ali, na
arquibancada, gosto de ser mais um na multidão.
Dei as costas para o campo. E comecei a rezar. Mas
isso não era o suficiente. Lembrei-me das cortinas de General Severiano.
Precisava ligar para a nossa sede. Por um descuido, falei em voz alta. A
velhice tem dessas coisas. Um jovem – e me espantei por isso – me reconheceu.
Ofereceu um aparelho: um telefone. Ele garantia que aquele aparelhinho, o tal
do celular, do tamanho da minha mão já tão enrugada, funcionava. Eu precisava
tirar uma dúvida. Tivera, aos 45 minutos, um mau presságio. Era tarde e ninguém
atendeu. Fiquei esperando. Até achei bom porque aquilo me distraía. Com o fone
no ouvido, o tempo passava mais rápido. Quando pensava em desligar, na décima
chamada Vitor, um dos funcionários mais antigos do clube, atendeu. Já ouvira
falar dele pela voz de Emil Pinheiro, com quem costumo me encontrar. Era um
faz-tudo lá em Marechal Hermes, para onde o clube migrara quando vendeu o
estádio e o casarão de Venceslau Braz. Nunca estive lá. Não por preconceito
pelo subúrbio, mas pela tristeza do êxodo compulsório. “Vitor, as cortinas
estão amarradas?”. O funcionário não reconheceu a voz mas, pela perguntava
inusitada, logo percebeu de quem se tratava. “Me desculpe, seu Carlito, tô
muito nervoso. Esse juiz não acaba essa porcaria,” disse Vitor. Aquilo me
irritou um pouco, mas entendi.
Andava de um lado pro outro. E deixei de me concentrar
no jogo. Neném Prancha, que conheci nas areias de Copacabana, fazia pouco caso
disso, a tal da concentração. Mas, precavido, resolvi voltar pro meu lugar.
Tocou o celular do garoto. “É pro senhor, seu Carlito!”. “Alô, alô, seu
Carlito, aqui é o Vitor. Um gato preto acabou de pular numa das cortinas. Ela
está desamarrada.” A ligação caiu. No instante em que voltei meu olhar para o
gramado, faltavam dez segundos para o juiz apitar o final da partida. Senti os
jogadores desconcentrados na cobrança de um escanteio. Vi a bola no fundo de
nossas redes, senti uma palpitação e desmaiei. Fui acordar no vestiário, ainda
deserto. Abri a tina de isopor que tinha deixado lá, sem ninguém perceber. A
garrafa de gemada que deixara lá estava intacta. Estava tudo explicado.
Carlos Martins da Rocha
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