sexta-feira, 12 de abril de 2013

Elza Soares celebra Mané Garrincha


por Pedro Motta Gueiros
O Globo, 13.01.2013

RIO – Sem receber um centavo de Garrincha, Elza Soares é herdeira de seu bem  mais valioso. A uma semana dos 30 anos de sua morte, em 20 de janeiro de 1983, o  craque vive na capacidade da ex-mulher de usar a arte para driblar as pancadas  da vida. Depois de perder três filhos e seu maior amor, Elza ainda solta a voz  com otimismo e bom humor para sustentar um mito de rara grandeza.

Entre o apogeu e a derrocada, qual a imagem que fica do  Garrincha?

Do futebol feliz, daquele homem alegre, que entrava em campo e acabava com  qualquer tristeza e monotonia. Esquece o outro lado, já tem muita gente por aí  fazendo besteira. Se soubesse por que ele foi esquecido já tinha corrido atrás  como fiz para evitar que tirassem o nome dele do estádio de Brasília. E ganhei. Fui lá na Câmara e falei: “o que sobrou para ele foi isso”.

O Brasil não gosta de olhar para suas mazelas?

É como dizia o Cazuza: “Brasil, mostra a sua cara, quero ver quem paga para a  gente ficar assim…” O espelho às vezes mostra coisas feias. Eu amo o espelho, mas tem gente que não gosta. Sou um ser humano, tive momentos de desespero, mas você não pode sair gritando por aí. A dor é minha e me doeu. Melhor celebrar do  que sofrer. Vamos celebrar o Mané Garrincha.

Já se passaram 40 anos da Copa de 1962, quando o Garricnha conquistou  a madrinha da seleção como seu maior troféu…

Parece que foi tudo agora, ainda sinto o cheiro, o calor dele. Mané era muito  limpo, cheiroso e asseado. Foi uma coisa de pele, de encostar, arrepiar.  Alquimia total. Muito amor. Depois da Copa, ficamos fechados vários dias na  minha casa na Urca. Na época, se deixava o pão e o leite na porta. Acumulou  tudo. Eu saía devagarinho, pegava uma garrafa de leite, um pão, e entrava.

Consta que a paquera no início era com o Pelé…

Deus me livre. Não estou desfazendo, mas nunca fui esse tipo de mulher. Se  fosse o Mané, seria o Mané e não o Pelé. Tenho respeito, mas para mim o rei é o  Mané.

Como pintou o clima?

Negócio de Pelé?

Não, Mané. Pelo que você conta, o Pelé nem chegou  perto…

Se alguém chegou, não fui eu. Tinha vinte e poucos anos, sempre tive corpo  muito perfeito, mas para conquistar o Mané, o negócio era fazer uma boa comida. Gozado que ele era caçador mas gostava muito de peixe. Eu fazia uma peixada na  panela de barro, com pirão, muito coentro, pimenta. Ele chegava em casa e só pelo  cheiro já sabia que quem tinha feito era eu. Comia com muito gosto porque depois  ele tinha outro peixe para comer. Prefiro falar assim com essa ironia que era  dele.

Como vocês se conheceram?

Fui ver um treino da seleção em Friburgo antes da Copa. O Mané pediu para  falar comigo, disse que tinha comprado um disco meu e estava espantado com a  forma como eu cantava. Também falou que tinha ganhado um disco da cantora cubana  Celiz Cruz e do músico J.J Johnson, que era o maior tombonista na época. Fiquei  surpresa: “Cara, você conhece J. J. Johnson?”. Ficamos conversando e na hora de  ir embora ele me deu um beijo. Eu correspondi, lógico. Receber um beijo e não  retribuir seria falta de educação.

E no Chile?

Quem tomava conta dos jogadores era um cara muito bravo, o Paulo Amaral, mas  ele gostava de mim e me levou para fazer uma visita à concentração. Foi um auê.  Eu era uma menininha, custei muito a virar mulher. Na nossa conversa, eu falei  para ele da minha preocupação porque estava faltando um monte de coisa lá no  Brasil, arroz, feijão, soja, e sabe o que Mané disse? “Não se importa não, tenho  um sítio e quando eu voltar vou abastecer vocês, desde que você faça uma  feijoada para mim”. Essa foi nossa conversa, não dá para esquecer.

Em sua primeira aparição pública, no programa de calouros de Ary  Barroso, você disse que vinha do planeta fome, mas em 1962 a escassez que te  preocupava era outra?

Estava falando do povo. Eu já tinha filé mignon na geladeira. Não precisava  do Garrincha para nada. Na minha casa, só não tinha cerveja porque nunca gostei  de bebida. Nem sabia que ele bebia, fui descobrindo aos poucos. Ele começou a  chegar bêbado, dizia que tinha vindo de uma festa. Com o tempo, essa festa  passou a ser todos os dias. Ele enterrava as garrafas de cachaça na beira da  Lagoa, quando a gente morava lá. Saía para pescar e voltava embriagado. É triste  demais para quem viu aquele garoto no auge virar aquele cara tão acabado.

E a separação?

Foi muito doída, tinha que fazer se não ele matava o meu filho. Pegava o  menino pelos pés na beira da piscina e ficando gritando: “vou soltar”. Quando  bebia ficava agressivo. É aquele negócio de o médico e o monstro. Depois, vinha  cabisbaxo. Vivemos entre a dor e o desejo até o fim. Mané era um grande amante,  um puta amante, só dizendo assim. Essa fama não é à toa. Era habilidoso até  demais.

Numa crônica, o Hermínio Bello de Carvalho tornou público o mito da  virilidade ao revelar seu espanto diante da queda da toalha de Garrincha no  vestiário do Botafogo…

Tudo que o povo queria era que o Mané deixasse cair a toalha. Todo mundo  queria ver aquele índio criado a Toddy, livre, ao vento. O Mané tinha muito  humor. Era uma pessoa linda de se lidar, que tem a cara do Brasil. Sumia para o  mato, vivia sem camisa, com aquela sunga, as pernas tortas… Dizia: “Criola, tô  indo”. Se enfiava no sítio do Chico Anysio e desaparecia. Trazia só passarinho.  Era a paixão dele, conversar com os pássaros. Era gentil, sabia tirar a cadeira  para uma mulher sentar, como já não se faz mais hoje. Se fizer, a mulher cai de  bunda no chão. Nunca ouvi um palavrão da boca dele.

Em meio às dores, é preciso preservar a delicadeza.

Perdi três filhos, dois foram embora porque não tinham o que comer. Nem por  isso, deixei de ser o que sou. Acordo todo dia com esperança de que vai ser  melhor. Se está difícil, não briga. Brinca. Usei muita maquiagem, muito curativo  para esconder as feridas. Tenho a minha medicina que é a música. Graças a Deus  estou com um show maravilhoso, “Deixa a nega gingar”, vou para a Europa e muita  gente por lá ainda pergunta por ele. As vezes, é preciso dar uma beliscada. Tudo  que acontece hoje no futebol começou com ele. Gosto de passar naquele muro do  Botafogo para ver a caricatura dele e apontar: olha lá o cara. Tenho camisas 7  que compro nas Copas do Mundo. É esquisito, você sofre dobrado, suspira fundo  porque é muito frágil. Toda alegria do povo é sofrida, são momentos, um bom  carnaval, um bom réveillon. Natal não sei se é muito bom, fica todo mundo  contando dinheirinho para comprar presente. A gente não controla nada. Ninguém é  de ninguém, fica tudo aí.

Para quem veio do planeta fome, a vida lhe ofereceu um rodízio  completo de emoções.

Às vezes foi pesado, mas teve de tudo. Só quem veio do planeta fome sabe dar  valor a um banquete. Tento sair e levar muita gente mas tem quem adore o planeta  fome, quem não faça nada para sair dele, é pão e circo mesmo. Não adianta ficar  de vítima. A vida dá chance e você tem que aproveitar. Cantando o espírito fica  livre, lindo e maravilhoso, mas evito algumas músicas do passado, como “Se acaso  você chegasse”, a primeira que gravei, porque me lembram muito dele.

Você sobreviveu literalmente a um tiroteio por ficar ao lado dele,  não?

Em 1970, lembro que ele foi me buscar num show e o nosso carro foi cercado  por homens armados. Como o trânsito parou e as pessoas começaram a nos  reconhecer, eles foram para a porta da nossa casa, no Jardim Botânico. A gente  já tinha subido para o quarto quando os vidros começaram a pipocar. Tinha um  piano na sala que foi partido ao meio. O segurança perdeu parte do braço. Nunca  soubemos o motivo, apenas que tínhamos que sair do Brasil. Vimos a final da Copa  de 1970 num quarto em Roma, com o Mané chorando.

Ficou na sua conta o fim do primeiro casamento e da carreira que o  proprio Garrincha não conseguiu conservar…

Peguei ele já em declínio. Eu estava lá em cima e ainda era acusada de me  aproveitar. Tinha uma coisa meio absurda, um falso moralismo, porque ninguém  falava que eu saía para cantar pelo Brasil em cima de caminhão para dar de comer  às meninas deles, porque ele não tinha como pagar a pensão. Quem ganhava  dinheiro era eu. Abri minha vida para ele, engravidei para lhe dar um filho.  Moramos na Urca, Ilha do Governador, Lagoa, Jardim Botânico e ainda mandei fazer  a casa de Jacarepagua para trazer as filhas dele, sete meninas. Queria dar o  melhor para ele, tínhamos mordomo, governanta. O Mané se incomodava com a  presença do mordomo sempre atrás dele e mandava que fizesse um prato para sentar  na mesa e comer com todo mundo.

Você tinha a ilusão de que poderia transformá-lo num homem da  sociedade?

Eu achava que um dia ele ia ser isso. Uma vez, fiz um jantar incrível para que  não se falasse apenas da bebedeira. Consegui botar um blazer no Mané, comprei  naquela casa mais chique de Copacabana. Quando desceu a escada era um lorde, estava lindo. Eu achava que ele iria virar um lorde. Para mim, sempre foi.  Depois, teve o bar naquela casa que comprei da família do Nelson Rodrigues em  Vila Isabel. Minha intenção era o Mané receber times que viessem jogar no Rio, mas foi pior porque havia muita garrafa nas prateleiras. Quando procurava por  ele, estava dormindo atrás dos sacos de feijão, completamente embriagado. Perdi  o bar, tinha que perder.

Você também tentou completar a escolaridade dele?

Depois que parou de jogar, contratei um professor particular, o Sebastião  Filgueiras, de uma família de advogados fortíssimos. Foi uma decepção logo na  primeira aula. O Mané não deu uma palavra e ainda ficou bravo comigo, que eu o  estava chamando de analfabeto. Foi uma lição. Garrincha dificilmente lia um  jornal, o negócio dele era caçar, era natureza. Também caçava muito rabo de  saia. Sabia caçar muito bem, era macho, tinha essa necessidade. Eu sabia, mas a  casa dele estava lá. Ele voltava.

Garrincha fazia planos, tinha ambições?

Não. Mané era hoje. Gostava muito de olhar o céu, as estrelas e se espantava: “Meu Deus, como essa gente é boba, não sabe que vai viver por um tempo tão  curto, para que ficar preso a tanta coisa, não vai levar nada.” Tinha uma  filosofia de vida que também é a minha.

Espiritualmente, ainda tem alguma conexão com ele?

Tenho não. É muito difícil. Rezo muito, converso com ele, peço ajuda, mas não  tenho esse poder. Nós nos separamos.

Você consegue rever o Garrincha no futebol de hoje?

Vejo o Neymar querendo fazer um pouco do Mané. Espero que um dia ele faça,  rezo muito por ele, pode ficar tranquilo, como rezei muito para o Romário, para  o Ronaldo. Tem que tomar conta do menino. Neymar usa a camisa 11 que o Garrincha  usou em 58, tomara que chegue lá. É um menino leve, sem problemas, feliz. Torço  para que não se machuque. Também gosto muito do Ronaldo e espero que agora como  dirigente ele possa fazer da Copa uma homenagem ao Garrincha. Os jogadores de  hoje não sabem quem ele foi. Nem citam. Quero fazer um museu para o Messi e o  Cristiano Ronaldo conhecerem o Mané.

Pela sua capacidade de driblar a vida com arte, você é uma herdeira  legítima de Garrincha.

A gente improvisa muito, Na vida e na musica também. Estrou sempre dando meu  olé para cá e para lá. Mas com toda a brincadeira, levo a vida a sério, é linda  demais, exige cuidado. Sou agradecida a tudo, até às críticas. Sem elas talvez  não soubesse valorizar o que ganhei e o significado da palavra amor.

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