Alceu Mendes
de Oliveira Castro é considerado por muitos como ‘mestre’, porque o seu grande
amor ao Botafogo fê-lo anotar pormenorizadamente os resultados dos jogos de
futebol do Glorioso e os acontecimentos mais importantes de ordem ‘política’
que atravessaram o Botafogo na 1ª metade do século XX, bem como as suas lutas
contra federações, mídia e até clubes adversários.
Mestre Alceu
dividiu o seu livro por anos civis e descreveu em cada ano o que de mais
importante acontecera ao Glorioso, bem como uma síntese dos resultados dos
jogos, dos marcadores dos gols e das equipas escaladas.
O autor
cobriu magistralmente o Botafogo de 1904 a 1950 numa obra esgotadíssima e que
somente se encontra em segunda mão em sebos, e a preços elevados. A família
nunca concordou com uma reedição e somente alguns privilegiados possuem a obra,
entre os quais felizmente me encontro eu.
Sempre senti
a falta da continuidade da obra de Mestre Alceu, até que recebo a gentileza de
Carlos Vilarinho que me brindou com o envio do seu recente livro, acompanhado
de uma dedicatória: ‘O Futebol do Botafogo 1951-1960’.
Li de ponta
a ponta: é a almejada continuidade da obra de Alceu Mendes de Oliveira Castro.
Carlos Vilarinho adotou o mesmo modelo e mesclou as descrições dos jogos com os
acontecimentos mais importantes do Botafogo e acrescentou, aqui e ali,
subitamente, ligações ao que acontecia no país em termos políticos. No final de
cada capítulo dedicado ao ano civil, Vilarinho incluiu as sínteses dos jogos do
Glorioso em cada ano.
No conjunto
saiu uma obra imprescindível, cuja 1ª edição cobre a vida do Glorioso entre
1951 e 1960. Vilarinho já tem mais duas edições na forja: 1961-65 e 1966-1970.
Numa
linguagem tipicamente anglo-saxónica, de parágrafos sucintos e significantes,
Vilarinho imprime uma dinâmica fortíssima à narração, porque a leitura envolve
o leitor na própria narração. E com a mesma facilidade que envolve o leitor nas
jogadas, Vilarinho muda subitamente de registro entre um jogo de quarta-feira e
outro de domingo, narrando episódios de assuntos que estão a ser geridos pelo
Botafogo ou outros novos acontecimentos de gestão, não poucas vezes
relacionados a acontecimentos políticos do país.
É assim que,
de uma forma aparentemente aleatória, mesclando a descrição dos jogos com a
narração dos acontecimentos e com a pontuação de ocorrências no país, Vilarinho
consegue manter um ritmo fortíssimo de leitura com mudanças frequentes de
registros que levam o leitor de um lado a outro e varrem da leitura qualquer
hipótese de descrições entediantes e repetitivas.
Além do
mais, Vilarinho está dentro do livro: o seu envolvimento é total e toma
partido. Partido sobre as ocorrências políticas, partido sobre os atos de
gestão, partido sobre as jogadas e os resultados, usando sempre um adjetivo
muito significante para catalogar o resultado das partidas. Isto é, Vilarinho
não é consensual, não pode ser consensual. E essa não consensualidade
certamente causará alguns desagrados entre alguns dos leitores que foram
protagonistas reais das histórias narradas. Mas Vilarinho não cede um milímetro
ao cinismo, à hipocrisia, ao apaziguamento; não é consensual, mas pretende
justamente não sê-lo, assumindo a sua ‘individualidade coletiva’ sem qualquer
condescendência ao ‘politicamente correto’. O autor é um investigador rigoroso,
que pesquisou intensivamente os acontecimentos, mas não fica à margem deles:
protagoniza-os como botafoguense apaixonado e dá-lhes uma coerência feita de
emoções e razões.
Efetivamente,
Vilarinho não é um botafoguense que só tece loas e jamais faz críticas
negativas, pelo contrário: ele adjetiva, ele toma partido, ele avalia à luz da
sua própria ideologia. Porque todos sabemos que não há livro algum fora de uma
ideologia: o caminho que se escolhe para um livro, seja ele qual for, é
ideológico; as obras que se pretendem despidas de ideologia, são embustes de
uma ideologia bem definida. Vilarinho sabe, obviamente, que o real nunca se
apresenta tal como é, que o real é construído num escrutínio que alcança muito
mais do que a vista e por cada um de nós na interação com o Outro, e o Botafogo
não é o real em si mesmo, mas sim um significante em mutação que carrega
consigo opções e decisões de inúmeras gerações de botafoguenses que foram
moldando um clube recheado de personalidade e ideologia própria – não um clube
restrito a uma simples história cronológica que pontua os seus heróis e os seus
mártires, como todas as histórias cronológicas de todas as nações, que na sua
saga sempre elogiosa escondem o que não lhes convém e adulteram o que lhes
interessa, mas uma história ciência, uma história analítica, uma história que
constrói o real com todos os seus protagonistas e lhes dá a força da emoção e
da crença num destino escolhido.
É desse modo
profundo e interativo que Vilarinho nos descreve e analisa os acontecimentos,
dentro e fora de campo.
“E o Botafogo
ainda perderia quatro chances preciosas para virar. Paciência!”
“Escandalizado
e sem outros afazeres o senador (…) foi à tribuna insurgir-se contra a revisão
[da tabela de preços do Maracanã]. O Jornal dos Sports chamou-o de “sentinela”.
O circo tinha de ser barato. Já o pão, não. Uma garrafa de cerveja custava 4,50
cruzeiros (dentro do Maracanã: 8,00). Um pão com mortadela? Quatro cruzeiros.”
“Garrincha
prefere servir a Cañete, que vem na corrida e atira um canhonaço, vencendo Ary:
1x0. Um gol espetacular!”
“Você é
Flamengo! Você é ladrão! Você não é homem!”
“O terror se
abaterá sobre os partidários da…”
“Zizinho
cobra e Lucas cabeceia sem chances, mas Joselias falha clamorosamente: 3x3.
Triste!”
“A Rádio
Globo foi atacada. Exemplares do jornal O Globo foram empilhados e incendiados
nas ruas. Os carros da reportagem desse jornal foram virados.”
“Seguiu a
linha demagógica dos que jogavam nas costas dos clubes a responsabilidade pelo
custo de vida.”
“O apito
atravessou o caminho do Botafogo.”
“Longe das
arquibancadas o povo comemorava a consumação da sensacional vitória sobre as
forças golpistas.”
“Garrincha
manda Zagalo sentar na bola.”
“No tumulto,
o bando do Barcelona apoderou-se da súmula e só a devolveu após o juiz expulsar
todos os botafoguenses.”
“Este cai para a direita e a bola entra à
esquerda, mas batendo no seu pé esquerdo, sobe e cai atrás do gol.
Inacreditável!”
“Dezenas de
dirigentes de sindicatos operários foram presos pelo nazista Cecil Borer, chefe
do setor trabalhista da DOPS.”
“Nos últimos
minutos, o Real Madrid joga na defensiva, o que contribui para um domínio do
Botafogo, que busca desesperadamente a vantagem, registrando-se dramáticas
situações ante a meta madrilena.”
“Dino não
mediu as palavras: Mas vejam vocês. Esse juiz chegou ontem, veio de longe e já
é Flamengo. Assim, quem é que pode?”
“Vitória!
Botafogo, cinquentão, outra vez, campeão!”
“Dali
entrega de bandeja a Dino, vindo na carreira e colhendo de joelhos o couro:
5x1. Foi de encher os olhos!”
E ficamos a
conhecer as mais variadas coisas sobre as quais Vilarinho discorre à velocidade
da luz: os poemas de Nelson Cintra na sua coluna do Jornal dos Sports, as
condecorações pessoais que Carlito Rocha rejeitou porque os ‘condecoradores’
haviam tratado mal o Botafogo, o partido político em que Garrincha era filiado
e do qual fazia propaganda, as ‘jogadas’ da mídia e as lutas contra as
transmissões de televisão sem cachê para os clubes, os bastidores das decisões
do Glorioso, a ira de Zagalo contra Garrincha quando ainda vestia a camisa do
Flamengo, os pormenores das garfadas dos juízes ao Botafogo, a confirmação de
que Juscelino Kubitshek e Oscar Niemeyer eram botafoguenses, as revelações de
um português apaixonado pelo Glorioso, as lutas contra o hino de Lamartine Babo
em favor da preservação do verdadeiro hino oficial muito mais espetacular e
engrandecedor, o sururu feito pelos catalães do Barcelona nosso freguês, o Real
Madrid remetido à defesa defendendo um empate, as vitórias e as derrotas ao
sabor da análise nua e crua e as expressões de tristeza e alegria sempre
adjetivadas por Vilarinho.
Em suma,
caríssimos leitores, um livro de não se ficar pelo desfolhar nos escaparates
das livrarias: é comprar sem hesitação, ler acompanhado de um bom vinho generoso
e fruir a intensidade de uma obra feita à medida do Glorioso, usando-a também
com o instrumento de reflexão acerca dos destinos possíveis e desejáveis do
clube que tanto amamos.
Algumas
livrarias em que a obra está à venda: Livraria Saraiva, Livraria da Travessa,
Livraria Siciliano, Livraria Folha Seca, Livraria Leonardo da Vinci, Livraria
Cultura, Livraria Arlequim, Livraria Pontes, Livraria Livros na Internet.
Também se vende nas lojas oficiais do Botafogo.
6 comentários:
Prezado Ruy,
Eu jamais conseguiria descrever o livro da maneira como você o fez. Eu apenas estudo e escrevo, sem uma intenção ou objetivo. Por isso, não tenho uma noção precisa da importância do livro. Mas uma coisa é certa: ficarei grato a você enquanto viver. Não escrevi o livro para defender teses acadêmicas. Os fatos são contados e falam por si mesmos, confirmando ou contrariando os nossos desejos de torcedor (e de militante político). Evidentemente, cada um seleciona os fatos de acordo com sua visão de mundo e seu engajamento, encadeando-os para argumentar, defendendo e atacando. É certo também que a escolha dos fatos (tanto quanto sua interpretação ao longo da narrativa) revela muita coisa do narrador. Como disse um mestre, "quem escreve se mostra".
Depois de tanto elogio, tomara que o leitor não se decepcione com o livro. Estou certo, por outro lado, que a narração dos jogos vai agradar bastante.
Permita-me chamar sua atenção para um pequeno erro de digitação (entre 1551 e 1960). Note outra coisa. Os clubes lutavam contra o televisamento direto dos jogos no Maracanã (mesmo pago) e o arrocho (tabelado) dos preços dos ingressos, primeiro porque afastavam o povo do estádio; segundo porque os levavam à falência.
Devo dizer também que o livro pode ser visto como um instrumento de propaganda e agitação a favor de uma determinada visão esportiva, justamente a defendida pelo Botafogo. Embora a narração não esteja subordinada a este ou aquele objetivo, ficaria satisfeito se os leitores (botafoguenses) passassem a conhecer a história concreta do seu Clube (que não deixa de refletir a história do Brasil). O livro é um documento histórico de uma facção esportiva. Portanto, não pretende obter o aplauso dos que odeiam o Botafogo.
Muito obrigado, mais uma vez.
Tudo de bom,
Carlos Vilarinho
Meu estimado amigo, quem escreve é sempre um ideólogo, com ou sem consciência. Por isso seleciona os fatos à sua visão do mundo, mas faz mais: encadeia-os de uma forma específica, interpreta-os e conduz o leitor a determinados desideratos.
No meu caso concreto de leitor, o livro conquistou-me.
PS: Já emendei a gafe referida (1551 para 1951).
Abraços Gloriosos!
Rui,
Agora chegou a minha vez de dizer que te invejo por teres a primeira obra de arte sobre o nosso Botafogo.
Já pesquisei e o livro do Alceu Mendes de Oliveira Castro é algo na casa de alguns mil reais, se encontrarmos!
Não deixarei passar essa oportunidade e agendei a compra do livro do Carlos Vilarinho.
Sempre fiz a comparação da história e jogos do Botafogo com a minha vida. Gosto disso e agora vou poder fazer com o nosso País e, melhor ainda, conhecer a política do clube.
Valeu Rui,
Valeu Carlos,
Abs e Sds, Botafoguenses!!!
É isso que dizes, Gil. valor de mercado é de mil reais. E para mais não se encontra...
Abraços Gloriosos!
Rui,
A última vez que pesquisei o livro do Alceu Castro, estava por R$ 1.700,00 (Um mil e setecentos reais).
Abs e Sds, Botafoguenses!!!
Pois é, Gil, é caro. E aumenta à medida que escasseia mais nos sebos.
Abraços Gloriosos!
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