
por João Máximo
Quando o moço de 22 anos entrou na velha e lenta barca que deixava a Ribeira com destino à Praça Quinze, partia ali, naturalmente sem o saber, para uma revolução que iria mudar para sempre o estilo de jogar dos laterais brasileiros. Era Nílton Santos indo para seu primeiro treino de experiência em General Severiano. Perto de completar 80 anos (“Vou sumir no dia 16, pois não estou aqui para comemorar minha velhice...”), é com naturalidade, e com sincera modéstia, que ele recorda seu papel, não só na posição que ocupou na maior parte dos 16 anos de Botafogo, seu único clube, mas no próprio futebol brasileiro. Um papel que lhe valeu o epíteto definidor do quanto jogava com inteligência e sabedoria: “Enciclopédia”.
Foi mesmo uma revolução, só que lenta como a barca que o levou para ser apresentado a Zezé Moreira. Em 1948, o modelo do lateral era o defendido com a mais absoluta veemência pelo técnico Flávio Costa, espécie de todo-poderoso do futebol brasileiro.
– Flávio, homem autoritário, estilo militar dos tempos da ditadura, com idéias muito rígidas sobre futebol – lembra Nílton. – Nunca gostou de meu modo de jogar.
Explica-se: Flávio achava que as funções do lateral eram simplesmente marcar e rebater. Ou seja, colar no atacante “como carrapato” e rebater de primeira na base do chutão.
– Flávio preferia Augusto, marcador. Ou o Bigode, que dava carrinho. Eu sempre joguei de pé. As lavadeiras gostavam de mim porque não lhes dava trabalho, sujando a roupa, dando carrinho.

A improvisação divina do ex-atacante do Flecheiras
Nílton começou com o pé direito (o mesmo pé com que ele, supersticioso como poucos, dá sempre o primeiro passo). Foi campeão carioca em seu ano de estréia. Com um detalhe: o Botafogo só perdeu um jogo, o primeiro, uma goleada de 4 a 0 para o São Cristóvão, mas Nílton não jogou (atuou no meio-campo dos aspirantes na preliminar). No domingo seguinte, entrou no time para nunca mais sair:
– Eu era atacante no Flecheiras, time da Ilha do Governador, onde nasci. Depois passei para o meio-campo, posição com que cheguei no Botafogo, mas acabei improvisado como lateral, substituindo Sarno.
Improvisação mais do que bem-sucedida: foi ali, pela lateral esquerda do campo, que o destro atacante do Flecheiras virou Nílton Santos.
Certa vez Flávio Costa, já tendo convocado Nílton para a seleção, advertiu-o: que não driblasse na defesa, que evitasse os enfeites dentro da área, que não avançasse até o campo adversário: “Num drible desses, você ainda perde a bola e a gente toma um gol”. Nílton garante que o receio do treinador jamais se confirmou, como garante, também, que era dos poucos que não tinham medo do “homem”, como os jogadores se referiam a Flávio. O resultado é que, na Copa de 1950, ele foi barrado por Augusto, na direita, enquanto Noronha ficava na reserva de Bigode, na esquerda. Nílton se permite afirmar que a perda daquela Copa, triste que tenha sido, teve um ponto positivo:
– Se fôssemos campeões em 50, não seríamos em 1958 e 62, pois Flávio Costa se eternizaria como técnico da seleção.
A carreira, se teve as experiências tristes de 1950 e 1954 (nesta Copa, foi expulso de campo no tumultuado jogo com a Hungria, a chamada “Batalha de Berna”), teve as alegrias de dois títulos mundiais, quatro cariocas, um pan-americano, um sul-americano. Jamais abdicou de seu estilo: não só marcar, mas tornar-se peça ofensiva quando a oportunidade surgisse; e não só rebater, mas fazer do passe um trunfo a mais, ao alcance tanto do lateral quanto do apoiador. Enfim, jogar também e não apenas ter um papel passivo na defesa. Nílton Santos antecipou, em quase meio século, o estilo do lateral moderno que o futebol mundial consagrou.
A maioria dos títulos foi ganha tendo como companheiro de time Garrincha, seu assunto favorito e, ainda que não o confesse, o craque de sua mais profunda admiração.
– Zizinho, grande jogador, costumava gozar os pontas dizendo que sua função era não deixar a bola sair do campo. Se falasse sério, Garrincha viria para desmenti-lo. Lembro-me do seu primeiro treino no Botafogo. Coube a mim marcá-lo. Olhei para ele, mirrado, pernas tornas, e pensei comigo: “É apenas mais um”. Enganei-me. Aliás, para minha sorte. Enquanto sempre dormi tranqüilo às vésperas dos jogos, Jordan, Coronel e outros passavam a noite em claro pensando no dia seguinte.
É grande o repertório de lances e situações de Garrincha que Nílton desfila com indisfarçável prazer, como se fosse um modo de revivê-los. Histórias engraçadas, como Garrincha e Coronel entrando em campo para um Botafogo x Vasco. Garrincha, de longe, gritando: “Coronel, boa sorte”. E o outro, também de longe, respondendo: “Seja o que Deus quiser, Garrincha”. Histórias recontadas, como a do rádio que Hélio (e não Garrincha) comprou na Alemanha e vendeu pela metade por pensar que só “falava alemão”. Pois foi Garrincha quem convenceu Hélio de que o rádio não falava português. E foi ele quem comprou a pechincha. História, também, como seu lançamento contra a União Soviética em 1958, tantas vezes contadas em tom de lenda:
– Na verdade, quem convenceu Feola de que Garrincha tinha de entrar foi só o Didi. Eu soube da novidade pelo Dr. Hilton Gosling. Na mesma hora, eu disse: “Pelo amor de Deus, doutor, deixa eu dar a notícia a ele”. Garrincha estava triste, preferindo ter ficado em Pau Grande a ser reserva na Suécia. Até o Joel, titular até ali, estava sem jeito com a própria escalação. Todos sabiam quem era Garrincha.
Todos, menos João Carvalhaes, psicólogo da seleção, cuja ciência foi conclusiva quanto à incapacidade de Garrincha para jogar futebol (na verdade, para fazer qualquer coisa). Nílton jamais perdoou o equívoco do psicólogo. E é verdade que coube a ele, Nílton, convencê-lo de que, para jogar o que jogava, Garrincha não era menos que um gênio.

A fidelidade a um princípio: nunca depender dos outros
Nílton foi uma espécie de pai para o jogador de sua admiração. Este não só o respeitava (jamais bebeu na sua frente) como também o admirava.
– Depois da Copa de 62, que ele ganhou quase sozinho, fui a Pau Grande conhecer seus amigos. Garrincha me apresentava assim: “Olha, Fulano, este aqui é que é o Nilton Santos!” Como se o importante fosse eu e não ele — diz.
Nílton Santos largou o futebol na hora certa. Tinha 38 anos. Como a Copa de 1962 deixara claro, seu futebol passara a apoiar-se quase inteiramente na inteligência e na sabedoria. Pernas e pulmões já não eram os mesmos. Nunca quis ser técnico, fiel a um princípio:
– Em futebol, sempre quis depender de mim mesmo, enquanto o técnico depende dos outros, dos jogadores.
Continua não acreditando que técnico ganhe jogo. No máximo, ajuda. E não entende como um sujeito que nunca jogou vá dirigir um time profissional só por conta de um diploma. O máximo que aceitou fazer, depois de largar a bola, foi dirigir uma escolinha em Brasília. Certamente, sem limitar a criatividade da garotada e sem adotar a rigidez técnica e tática pregada pela maioria dos professores diplomados.
– Salvei muito menino desse mal – diz com orgulho.
Fonte:
http://oglobo.globo.com/jornal/esportes/
[O Globo, 15 de Maio de 2005]
Quando o moço de 22 anos entrou na velha e lenta barca que deixava a Ribeira com destino à Praça Quinze, partia ali, naturalmente sem o saber, para uma revolução que iria mudar para sempre o estilo de jogar dos laterais brasileiros. Era Nílton Santos indo para seu primeiro treino de experiência em General Severiano. Perto de completar 80 anos (“Vou sumir no dia 16, pois não estou aqui para comemorar minha velhice...”), é com naturalidade, e com sincera modéstia, que ele recorda seu papel, não só na posição que ocupou na maior parte dos 16 anos de Botafogo, seu único clube, mas no próprio futebol brasileiro. Um papel que lhe valeu o epíteto definidor do quanto jogava com inteligência e sabedoria: “Enciclopédia”.
Foi mesmo uma revolução, só que lenta como a barca que o levou para ser apresentado a Zezé Moreira. Em 1948, o modelo do lateral era o defendido com a mais absoluta veemência pelo técnico Flávio Costa, espécie de todo-poderoso do futebol brasileiro.
– Flávio, homem autoritário, estilo militar dos tempos da ditadura, com idéias muito rígidas sobre futebol – lembra Nílton. – Nunca gostou de meu modo de jogar.
Explica-se: Flávio achava que as funções do lateral eram simplesmente marcar e rebater. Ou seja, colar no atacante “como carrapato” e rebater de primeira na base do chutão.
– Flávio preferia Augusto, marcador. Ou o Bigode, que dava carrinho. Eu sempre joguei de pé. As lavadeiras gostavam de mim porque não lhes dava trabalho, sujando a roupa, dando carrinho.

A improvisação divina do ex-atacante do Flecheiras
Nílton começou com o pé direito (o mesmo pé com que ele, supersticioso como poucos, dá sempre o primeiro passo). Foi campeão carioca em seu ano de estréia. Com um detalhe: o Botafogo só perdeu um jogo, o primeiro, uma goleada de 4 a 0 para o São Cristóvão, mas Nílton não jogou (atuou no meio-campo dos aspirantes na preliminar). No domingo seguinte, entrou no time para nunca mais sair:
– Eu era atacante no Flecheiras, time da Ilha do Governador, onde nasci. Depois passei para o meio-campo, posição com que cheguei no Botafogo, mas acabei improvisado como lateral, substituindo Sarno.
Improvisação mais do que bem-sucedida: foi ali, pela lateral esquerda do campo, que o destro atacante do Flecheiras virou Nílton Santos.
Certa vez Flávio Costa, já tendo convocado Nílton para a seleção, advertiu-o: que não driblasse na defesa, que evitasse os enfeites dentro da área, que não avançasse até o campo adversário: “Num drible desses, você ainda perde a bola e a gente toma um gol”. Nílton garante que o receio do treinador jamais se confirmou, como garante, também, que era dos poucos que não tinham medo do “homem”, como os jogadores se referiam a Flávio. O resultado é que, na Copa de 1950, ele foi barrado por Augusto, na direita, enquanto Noronha ficava na reserva de Bigode, na esquerda. Nílton se permite afirmar que a perda daquela Copa, triste que tenha sido, teve um ponto positivo:
– Se fôssemos campeões em 50, não seríamos em 1958 e 62, pois Flávio Costa se eternizaria como técnico da seleção.
A carreira, se teve as experiências tristes de 1950 e 1954 (nesta Copa, foi expulso de campo no tumultuado jogo com a Hungria, a chamada “Batalha de Berna”), teve as alegrias de dois títulos mundiais, quatro cariocas, um pan-americano, um sul-americano. Jamais abdicou de seu estilo: não só marcar, mas tornar-se peça ofensiva quando a oportunidade surgisse; e não só rebater, mas fazer do passe um trunfo a mais, ao alcance tanto do lateral quanto do apoiador. Enfim, jogar também e não apenas ter um papel passivo na defesa. Nílton Santos antecipou, em quase meio século, o estilo do lateral moderno que o futebol mundial consagrou.
A maioria dos títulos foi ganha tendo como companheiro de time Garrincha, seu assunto favorito e, ainda que não o confesse, o craque de sua mais profunda admiração.
– Zizinho, grande jogador, costumava gozar os pontas dizendo que sua função era não deixar a bola sair do campo. Se falasse sério, Garrincha viria para desmenti-lo. Lembro-me do seu primeiro treino no Botafogo. Coube a mim marcá-lo. Olhei para ele, mirrado, pernas tornas, e pensei comigo: “É apenas mais um”. Enganei-me. Aliás, para minha sorte. Enquanto sempre dormi tranqüilo às vésperas dos jogos, Jordan, Coronel e outros passavam a noite em claro pensando no dia seguinte.
É grande o repertório de lances e situações de Garrincha que Nílton desfila com indisfarçável prazer, como se fosse um modo de revivê-los. Histórias engraçadas, como Garrincha e Coronel entrando em campo para um Botafogo x Vasco. Garrincha, de longe, gritando: “Coronel, boa sorte”. E o outro, também de longe, respondendo: “Seja o que Deus quiser, Garrincha”. Histórias recontadas, como a do rádio que Hélio (e não Garrincha) comprou na Alemanha e vendeu pela metade por pensar que só “falava alemão”. Pois foi Garrincha quem convenceu Hélio de que o rádio não falava português. E foi ele quem comprou a pechincha. História, também, como seu lançamento contra a União Soviética em 1958, tantas vezes contadas em tom de lenda:
– Na verdade, quem convenceu Feola de que Garrincha tinha de entrar foi só o Didi. Eu soube da novidade pelo Dr. Hilton Gosling. Na mesma hora, eu disse: “Pelo amor de Deus, doutor, deixa eu dar a notícia a ele”. Garrincha estava triste, preferindo ter ficado em Pau Grande a ser reserva na Suécia. Até o Joel, titular até ali, estava sem jeito com a própria escalação. Todos sabiam quem era Garrincha.
Todos, menos João Carvalhaes, psicólogo da seleção, cuja ciência foi conclusiva quanto à incapacidade de Garrincha para jogar futebol (na verdade, para fazer qualquer coisa). Nílton jamais perdoou o equívoco do psicólogo. E é verdade que coube a ele, Nílton, convencê-lo de que, para jogar o que jogava, Garrincha não era menos que um gênio.

A fidelidade a um princípio: nunca depender dos outros
Nílton foi uma espécie de pai para o jogador de sua admiração. Este não só o respeitava (jamais bebeu na sua frente) como também o admirava.
– Depois da Copa de 62, que ele ganhou quase sozinho, fui a Pau Grande conhecer seus amigos. Garrincha me apresentava assim: “Olha, Fulano, este aqui é que é o Nilton Santos!” Como se o importante fosse eu e não ele — diz.
Nílton Santos largou o futebol na hora certa. Tinha 38 anos. Como a Copa de 1962 deixara claro, seu futebol passara a apoiar-se quase inteiramente na inteligência e na sabedoria. Pernas e pulmões já não eram os mesmos. Nunca quis ser técnico, fiel a um princípio:
– Em futebol, sempre quis depender de mim mesmo, enquanto o técnico depende dos outros, dos jogadores.
Continua não acreditando que técnico ganhe jogo. No máximo, ajuda. E não entende como um sujeito que nunca jogou vá dirigir um time profissional só por conta de um diploma. O máximo que aceitou fazer, depois de largar a bola, foi dirigir uma escolinha em Brasília. Certamente, sem limitar a criatividade da garotada e sem adotar a rigidez técnica e tática pregada pela maioria dos professores diplomados.
– Salvei muito menino desse mal – diz com orgulho.
Fonte:
http://oglobo.globo.com/jornal/esportes/
[O Globo, 15 de Maio de 2005]
9 comentários:
Rui,
Hoje não havia acordado muito bem, mas depois dessa narrativa sensacional, meu dia melhorou 100%!
SALVE NILTON SANTOS!!
Saudações
André Lira
Amigo Rui,
"Niltão", exemplo de vida, exemplo de profissionalismo, exemplo de torcedor, exemplo de humildade, exemplo de um bom cidadão.
São através desses exemplos que o "Niltão" será eternizado e com toda certeza a nossa admiração e respeito ao "enciclopédia" será repassada às gerações futuras.
Serão histórias como estas, que por sinal tão bem narradas serão contadas por mim aos meus netos e bisnetos.
Agradeço profundamente ao "Nilton Santos' pelo serviços prestados ao nosso querido Botafogo, onde o mesmo dedicou sua vida ao seu clube de coração.
Parabéns ~"Niltão". Parabéns "Mundo Botafogo" por resgatar uma das mais belas páginas do glorioso".
saudações a todos botafoguenses,
Fogão Brasília
Rui,
Nada melhor para acalmar os ânimos de nós BOTAFOGUENSES com essa narrativa de um dos NOSSOS GRANDES ÍDOLOS.
Obrigado por levantar o nosso astral, pois atualmente só temos noticias nada animadoras.
Abs e Sds, BOTAFOGUENSES!!!
PARABÉNS NILTON SANTOS!!!
OBRIGADO POR TUDO QUE VOCÊ FEZ PELO NOSSO BOTAFOGO!!
Abs e Sds, BOTAFOGUENSES!!!
Oi, André! Nilton Santos sempre pronto a ajudar os nossos dias! Ainda nos dias de hoje, apesar da doença progressiva, o Nilton fala com imensa alegria do nosso Botafogo! Fala-se com ele e o dia melhora 100%! rsrsrs...
Abraços Gloriosos!
Fogão Brasília, você tem muito para contar aos seus netos e bisnetos! O Botafogo é uma história infindável de acontecimentos deliciosos e... Gloriosos!
Abraços.
Gil, no sábado o Nilton fará 84 anos e espero encontrar alguma outra história deliciosa acerca dele. Creio que a riqueza do Nilton Santos é inesgotável, desde a forma como tratava a bola até à forma como tratou o árbitro que sonegou o Botafogo - empurrão escadas abaixo do tunel que dava para o vestiário dos árbitros. Craque exemplar nas manifestações mais extremas!
Abraços Gloriosos!
Nílton Santos sempre se orgulhou de jamais ter tido contusões graves na carreira. Sorte dele ter encerrado sua carreira há 45 anos. Jogasse hoje, com esse departamento médico e de preparação física do botafogo, e duvido que conseguisse passar sem contusões graves.
Mais dois estiramentos grau 1 hoje: Alessandro e Renato.
Já são 8 no ano, metade grau 1 e metade grau 2.
Estiramentos grau 1:
Reinaldo
Émerson
Alessandro
Renato
Estiramentos grau 2:
Wellington
Victor Simões
Renato (consegiu ter dois estiramentos de graus diferentes)
Maicosuel
E ninguém faz nada em relação a essa preparação física?
Pois é, Fernando... e ninguém faz nada... Que tristeza...
Abraços Gloriosos!
Enviar um comentário