Arnaldo Bloch, jornalista e escritor
Jornal ‘O Globo’, 13.10.2012
“Se eu sou um gênio, Rembrandt é o quê?” A
frase, uma de suas preferidas em entrevistas, não é citada em “Woody Allen – Um
documentário”, de Robert B. Weide, que esteve em cartaz no Festival do Rio. Mas
é a síntese do que o filme revela: Allen vê sua obra como um conjunto medíocre,
irregular, lotado de cenas que não funcionam, com raros achados artisticamente
felizes.
Sua estratégia, ele confessa, é, sempre foi,
fazer um filme atrás de outro na esperança de que, a cada três ou quatro
temporadas, um deles caia no gosto do público ou da crítica, pois ambicionar à
convergência é como acreditar num truque de mágica. Ou em vida após a morte. Ou
em Deus.
Não importa que a ‘Time’ o tenha alçado a
gênio da comédia nos anos 1970. Não importa que Scorcese veja o advento de uma
revolução no cinema americano a partir de ‘Manhattan’. Não importa que cada
ator o tenha como a uma divindade. Não importa. Pois ele mesmo, o autor, não
enxerga essa grandeza. São, só, circunstâncias.
Quem acha que é só gênero vá assistir ao
filme (vai ter repescagem) e deixe-se vencer pela argumentação de Allen. É um
documentário feito sob medida não só para os fãs, que vão conhecê-lo mais e enfrentar
algumas desilusões de tiete, mas, sobretudo, para quem odeia o cinema do judeu
baixote de óculos.
Ele sabe direitinho o que conquistou e se diz
sem motivos para reclamar. Realizou seus sonhos de menino: ser ator, filmar,
ter controle sobre o conteúdo, ousar sempre que quisesse e tocar clarineta.
Aceitou e aceita os fracassos às vezes fulgurantes como preço natural a pagar
pela liberdade criadora e pelo direito a um ritmo de produção em série,
obsessivo.
Mesmo quando esteve na lona, forças ocultas e
algum cash o fizeram emergir. Hoje,
prefeituras do mundo inteiro se digladiam por uma vaga nos seus “filmes de
cidade”, que o tornaram um popstar globalizado après-la-lettre.
De bónus, casou com lindas mulheres e
conseguiu a proeza de sobreviver artisticamente, psicologicamente e, para
muitos, até moralmente ao escândalo de trair uma delas com a própria enteada e,
depois, desposá-la e adotar filhos, formando uma família tradicional.
História que, nunca é de mais repetir, se
ajustaria bem a uma comédia dramática a seu modo: sua vida, de fato, com os
devidos ajustes de tom e se tempo, é como a de seus personagens.
Allen nunca deixou de sê-los, todos.
Nada disso significa que ele tenha grande
apreço artístico pelo resultado. É um autor de tragédias frustrado que até hoje
persegue as luzes e sombras de Bergman, Fellini, Shakespeare e os russos sob
sua lente essencialmente americana, romântica, em permanente estado de guerra
com o pessimismo da herança judaica, com auxílio luxuoso da psicanálise (como
sistema de pensamento e como sistema de anedotas incessantes fornecidas pelo
freudismo de massa).
Ele sabe que muitas das suas anedotas estão
datadas. E que algumas delas sempre foram datadas e são tão rasteiras quanto
seus momentos menos inspirados no stand
up, quando só o público não via seu constrangimento com o material que
usava para ganhar fama.
Acha-se um cineasta obreiro, industrioso mais
que industrial, que tem altos e baixos, como a maioria, inclusive entre os
supostos ‘gênios’ declarados que habitam o Sistema do Cinema. Ele sente-se como
um desses equívocos. Sabe que não é Rembrandt.
Sua diferença para a média humana consiste no
fato de que essa constatação não o fere: se sobrevive ao Universo em expansão e
à existência sem sentido, que mal há em isolar cinco bolas antes de fazer um
gol?
Woddy Allen gosta de NF mas é Botafogo, mesmo
sem sabê-lo. Só um espírito alvinegro teria aversão ao Oscar. Allen crê em
filmes preferidos, mas não num “melhor filme”.
Transformar a apreciação de arte num sistema
de índices e hierarquias é algo, para ele, que desafia a lógica e mata o
subjetivo. A excelência conferida por um Oscar é irreal. Como um tapete
vermelho em Cannes:
“Ninguém em sua vida cotidiana veste um
smoking e pousa para cem fotógrafos histéricos num tapete vermelho. Isso
simplesmente não é real”, ele diz, num dos grandes momentos do filme.
A certa altura um fã se aproxima.
- Germany
loves you.
Ele finge ouvifr o nome de uma mulher.
- Who?
Gemma?
O alemão, com pureza corrige: “o país”.
- Ah, o país! Mas o país inteiro?
O tiete confirma, Allen replica:
- Isso é muita gente, não é?
A cena termina com o silêncio do fã, autômato
desconstruído pelo golpe socrático do comediante. O fã, repetidor de scripts é como somos, todos, quase o
tempo todo: figuras irreais e tristemente cômicas.
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