segunda-feira, 18 de março de 2013

A Estrela Solitária


por Sylvio Back
Cineasta, poeta, roteirista e escritor, é autor de 37 filmes (onze longas-metragens), e 20 livros (entre poesia, roteiros e ensaios)

Esta crônica-depoimento é a base do roteiro de um docudrama (misto de doc & fic) de longa-metragem sobre o Botafogo intitulado “O Glorioso alvinegro”. Articulando a paixão do cineasta-poeta, que remonta ao fim dos anos quarenta, com a mitológica saga do time da “Estrela Solitária” – dessa linguagem ressurgirão na tela imagens e sons raros, nunca vistos e ouvidos pelo espectador. Seja botafoguense ou adepto de outro clube, seja um inveterado amante do futebol, o filme vai retraçar, do seu nascimento ao centenário neste 2010 do primeiro campeonato carioca, todas as graças e desgraças que frequentam a história & as estórias do Botafogo. Pois, nenhum time de futebol no Brasil contabiliza tantos desafios e glórias quantas agruras e injustiças, dentro e fora das quatro linhas. Quase como se o Botafogo, intuitivamente (com perdão a todos os nossos adversários e seus torcedores, tão heróicos e inestimáveis quanto nós, ora direis!), simbolizasse a própria alma telúrica do nosso povo sofrido e valoroso, que sempre acaba dando a volta por cima.

GLORIOSO 1948

Osvaldo e Gérson

Paixão tão antiga quanto à de cinéfilo, é a de torcedor do Botafogo. Ambas remontam ao final da década de quarenta do século passado. Ambas, igualmente, já me invadiram com tamanhas alegrias e decepções que só fizeram crescer o amor e a fidelidade a elas ao longo desses sessenta e um anos.

Mas, ao contrário do cinema, cujos primeiros filmes, americanos, italianos e franceses, vistos e revistos no Cine Antonina, me conflagraram de gozo estético para sempre, foi nessa época que, pela primeira vez ouvi, com um laivo de assustador desânimo, a expressão, "o Botafogo é triste!".

Eu tinha dez anos. Era dezembro de 1947. Passava correndo pela porta da frente do Antonina Hotel, no litoral do Paraná, em direção à calçada defronte para jogar bolinha de gude com os amigos. Alguns quartos do estabelecimento, de propriedade de minha mãe (não é à toa que meu filme, “Aleluia, Gretchen”, se passa num hotel...), eram alugados para clientes que ficavam meses seguidos na cidade, como engenheiros e técnicos do porto, funcionários transferidos, etc. Um deles vinha a ser esse torcedor inveterado do Botafogo, que escutava os jogos, o rádio a todo volume, debruçado no parapeito da janela assistindo aos nossos “embates buricos”, orgulhosamente, envergando uma camisa do time! (onde ele havia conseguido essa com a Estrela Solitária, eu nunca soube).

“O Botafogo é triste!”, repetia inconsolado o cidadão, do qual não me lembro o nome nem a idade, mas que, para mim, era “velho”, devia ter em torno de trinta anos. Cabelo untado de gomalina, bigode finíssimo, “homem alinhado” - segundo mamãe! Muito sorridente no restaurante do hotel, com certeza, carioca, não disfarçava o sotaque para nossa alegria, da irmã e minha, acostumados a dizer as palavras com todas as letras (leitê quentê faz bem pra gentê...).

Santos, Rubinho e Ávila

Só ao longo do ano seguinte, mesmo sem atinar para o significado do que vem a ser um “vice-campeonato”, o Hóspede (doravante o chamarei assim, com reverente maiúscula, esse mítico botafoguense) me explicou que o Botafogo amargava, pela quarta vez seguida, a perda do título do Rio de Janeiro. Desde 1944, a sina do time era ser vice, contrastando com o antológico tetracampeonato de 1932, 33, 34 e 35, láurea essa jamais igualada desde então por nenhum clube carioca. Comecei “entendendo” o tortuoso destino do Botafogo com um orgulho às avessas: o alvinegro ficara viciado em ser vice, ainda que tetra pelas virtudes na década passada!

Mas, curiosamente, a minha epifania botafoguense ocorreu, justamente, no dia da única derrota do time, abrindo o campeonato de 1948, quando levou uma surra de 4x0 do São Cristóvão. Convidados pelo Hóspede, abortamos nossa jogatina no chão de terra batida, e sentados na escadaria à entrada do hotel, esticávamos o ouvido para acompanhar, vindo do quarto, a transmissão do jogo. Rádio de válvula, muitas vezes a narração sumia por intermináveis segundos e quando voltava o placar já era outro. E coube a mim flagrar, a cada novo gol, o Hóspede soltando o mantra de meses atrás: “O Botafogo é triste! O Botafogo é triste!” O tom era como se aquela tragédia jamais teria fim.

Até hoje é um mistério impenetrável, para usar, senão a melhor expressão para este raio, como soe acontecer, bastou cair uma única vez sobre mim: como é que, na desgraça, na desolação e a partir daquela derrota do Botafogo, acabei me apaixonando pelo clube por toda a vida. Sei lá, talvez inconscientemente solidário com a depressão do Hóspede que, a cada derrota, no dia seguinte era um outro homem, carrancudo, calado; talvez, aos poucos ouvindo dele a história das façanhas e glórias do Botafogo, ou lendo e vendo fotos do “Jornal dos Sports” que ele recebia do Rio de Janeiro um tempão depois da peleja que havíamos escutado. Ou, quem sabe mesmo, péssimo jogador de peladas, quando eu preferia escalar o time que atuar (se não fosse cineasta seria técnico de futebol!), tomei gosto, isso sim, compensando a falta de habilidade para o esporte bretão, pela insuperável virtualidade do rádio. As “canoras” vozes de um Oduvaldo Cozzi, Doalcey Camargo, Jorge Cury, cujos gritos de gol ficavam ecoando horas e dias na cabeça, se acoplavam à minha imaginação que parecia filmar no éter, tornando “visíveis” as partidas em General Severiano, em São Januário, na rua Bariri, na Gávea... 

Depois daquela inesquecível derrota na abertura da temporada, exatamente, onze dias antes dos meus onze anos, nunca mais fui o mesmo. Junto com meus três, quatro amiguinhos, a tarde de domingo era sagrada, só mesmo quando tinha algum episódio de seriado que eu não podia perder... Neófito, ainda não era um torcedor como o fanático Hóspede alvinegro. Mais tarde, quando me encontrava, ficava descrevendo detalhes da partida vencida pelo Botafogo, pois naquele histórico 1948, o time chegaria (quase) invicto a campeão carioca, goleando no “clássico” da final o Vasco da Gama, o chamado “expresso da vitória”. O Hóspede, forçando seu lindo “carioquês”, passou dias ironizando, com os olhos injetados de prazer e rindo para si mesmo como um louco varrido: agora é o “éqsch-eschpresso” da vitória!, “éqsch-eschpresso” – repetia sem parar.

Juvenal, Paraguaio e Geninho

Tão insólito quanto a inesquecível efeméride, é que aquela criança recém-alvinegra nunca mais me abandonou. Seja nas horas sem tempo foçando os casacões que meus pais haviam trazido em 1935 na fuga da Alemanha hitlerista, à caça de “jogadores europeus” (esse pensamento é a posteriori, lógico, adaptação da recente emigração em massa de jogadores brasileiros ao Velho Mundo) para “reforçar” a defesa do meu Botafogo de mesa. Botões raspados na escadaria do hotel e fatais nos jogos pela sua envergadura e textura. Faziam bonito e provocavam inveja.

Dias antes da final de campeonato, o Hóspede já fazia uma convocação geral para ouvirmos coletivamente o jogo. A mim fuzilou, dizendo que nem a matinê, nem a rainha de gude eram mais importantes. E, também, porque o correio acabara de lhe entregar um rádio novinho em folha. Segundo ele, a voz do locutor não iria mais sumir na hora agá. Sumia, sim, deixando-o meio sem jeito com a minha cobrança. Mas, nada disso diminuiu a adrenalina daquele 12 de dezembro, aquela tarde da redenção, da volta por cima dos reiterados vices, a maldição de “morrer na praia” – aliás, umas das grifes mais tenebrosas e recorrentes do Botafogo em todo os seus mais de cem anos de existência.

Não estávamos em General Severiano, obviamente, no meio daqueles vinte mil torcedores, nem podíamos ter nossos berros ouvidos quando Oswaldo, Gerson e Santos (Nilton, o futuro “A Enciclopédia do Futebol”); Rubinho, Ávila e Juvenal; Paraguaio, Geninho, Pirilo, Otávio e Braguinha, entraram em campo. O Hóspede, com a sua impecável camisa alvinegra, já um tanto desbotada (nunca perguntei, mas anos mais tarde, conjeturei que talvez tivesse jogado no clube, então como teria aquele “troféu”?), exalava uma animação e confiança que nós, eu em especial, botafoguense catecúmeno, não ficamos indiferentes.

E não é que, inopinadamente, o Hóspede puxou o hino do Botafogo e, não demorou, éramos um pequeno e desafinado coro de malucos cantando para espanto de outros hóspedes, os vizinhos e transeuntes. Até minha mãe apareceu na porta do hotel, e com ar de quem sabe das coisas (e ela sabia, meu pai fora um jogador de baralho inveterado!), pediu moderação, o que de nada adiantou. Sentindo a inocência da cena, fez aquele gesto desmunhecando, típico de alemão, deu um sorriso e grunhou, “bah!”, e nos deixou entregues à euforia.

Os gols de Braguinha, logo no primeiro minuto e pouco do jogo, e de Paraguaio, no final do primeiro tempo, confirmava o que só vim a reconhecer ao longo da vida como sendo uma verdade irretorquível. Se na decolagem e na aterrissagem de um avião, é nos cinco minutos primevos e terminais que a fatalidade fica à espreita, no futebol é a mesma coisa. Não deu outra, nem vascaínos dentro e fora do campo, nem nós, botafoguenses curtidos, ou não, à sombra da árvore das desgraças, podíamos adivinhar que já aos cinco minutos do segundo tempo, com um golaço de Otávio, desde já, escrevia-se o heróico e ansiado epílogo.

Mas, como nem tudo seriam louros, uma madrastice, que também acompanha a crônica dorida da solitária estrela, Ávila fez o gol que o Vasco jamais conseguira durante os noventa minutos. Parece que essa bola contra as próprias cores do “Glorioso”, assim alcunhado pela imprensa desde 1910, quando foi campeão carioca, não deixa de embutir uma sutil falseta do destino. Coincidentemente, nessa campanha o time só perdeu a primeira partida, contra o América (4 a 1). E na final, vitória sobre o Fluminense de 6 a 1, sendo o gol tricolor também obra do capeta: contra do botafoguense Lulu.

Pirilo, Octávio e Braguinha

Quando o locutor anunciou o fim do jogo, estávamos irreconhecíveis, meus amiguinhos felizes, todos “botafoguenses da hora”, e o Hóspede que só faltava saltar da janela. Cantava, cantávamos (mal) o hino do Botafogo. Em verdade, o Hóspede é que sabia de cor letra e música certinhas de Lamartine Babo. De repente, o Hóspede sumiu e por alguns segundos ficamos órfãos do nosso “maestro”. Não demorou e começou a voar confete e serpentinas pela janela caindo sobre nós como se fora algum pó mágico. E quem olhasse da rua (e as pessoas iam parando e riam), ficaria espantado porque da escuridão do quarto vinha uma profusão de papel colorido que lembrava canhão de circo.

No meio dela, fantasmagórico, o Hóspede veio no encalço, pulando da janela para a calçada, de cueca e a camisa do Botafogo encharcada. Completamente descontrolado, gritava a todos pulmões, “Botafogo campeão!”, “Botafogo campeão!”. Acho que gostaria que, da poética e modorrenta Antonina, seus berros fossem ouvidos por todos os botafoguenses do mundo.

Insólito, também quanto à festa da vitória, seja essa minha condição de torcedor não-presencial, como se diz no jargão do ensino à distância, de décadas curtindo o time a partir de Antonina, Paranaguá e de Curitiba, só pode ser coisa da proverbial mística do Botafogo. Pois só vim conhecer o clube, anônima e timidamente, ao vivo, em 1953, na primeira viagem ao Rio de Janeiro, fui de imediato assistir a treinos em General Severiano. Nem preciso dizer que chorei ao ver meus “heróis” radiofônicos e da esquadra de botões, ali, bem pertinho, quase sentindo sua respiração, ouvindo a voz deles, usufruindo de sua aura!

O que hoje ressurge para mim, com uma assombrosa nitidez, em câmara lenta, num belíssimo preto-e-branco sem riscos nem manchas e em alta fidelidade, não deve ter levado mais que cinco minutos, se tanto. Mas, talvez sejam esses alguns dos fotogramas e sons mais incandescentes a fluir e a reluzir no filme da minha mente.

8 comentários:

hangman disse...

Belíssimo texto! Com as suas palavras conseguiu nos arremeter ao seu passado, como se lá também estivéssemos.
Independente dele ser botafoguense, sempre admirei esse cineasta!

Ruy Moura disse...

Texto muito bem interpretado por si, Hangman. Ler o cineasta é estar lá a assistir; eu confesso que vi o nosso fanático botafoguense como se fosse ao vivo. E como escreve bem!

Abraços Gloriosos!

Gil disse...

rRui,

O nosso Botafogo tem o dom de nos emocionar, sempre!
Li o depoimento do Sylvio Back, bem menor e menos detalhes em um dos livros do Rui Porto.

Abs e Sds, Botafoguenses!!!

Ruy Moura disse...

E, Gil, este texto é muito detalhado. Ao ponto de nos levar até lá, mais de sessenta anos depois. Eu também me emocionei: pelo Botafogo, pela profundidade do texto e pelo português absolutamente impecável.

Abraços Gloriosos!

Émerson disse...

Rui e amigos, as Vitórias do Botafogo são homéricas.
Nenhum outro clube tem isso.
Nem torcedores com tão bom gosto e perspicácia, como Sylvio Back.

Ruy Moura disse...

É verdade, Émerson. As nossas vitórias são homéricas. Basta comparar a tristeza que foram as conquistas do Flamengo em 2007, 2008 e 2009 com a ajuda das arbitragens e o nosso título de 2012, que deu direito ao Jefferson defender uma grande penalidade cobrada por Adriano e ao Loco Abreu bater o penalty com a cavadinha que deixou o criminoso de bunda no chão.

E... sim, não há torcedores mais perspicazes, cultos e de bom gosto comon os torcedores do Botafogo. Eu gosto que a torcida do Botafogo seja pequena - as elites sempre foram e serão reduzidas. Sempre pensei que quando estou ao lado da maioria tenho que fazer uma introspeção sobre o que se está a passar comigo... (rs)

Abraços Gloriosos!

Biriba disse...

O Sylvio Back tem que "entregar" esse longa!!!

Com todo o respeito ao cinema, ao qual sou estreitamente ligado, e por mais que o que digo contrarie a obviedade, considero a palavra escrita um condutor mais potente ao mundo das imagens. Interessante pensar sobre isso, inclusive, porque parece funcionar ao contrário também.

Saudações botafoguenses!

Ruy Moura disse...

Essa escolha para mim é muito difícil, Luiz. Adoro a escrita e sou um cinéfilo de sempre. Mas se tivesse que optar, escolheria a escrita - o que parece incongruente num mundo de imagens.

Abraços Gloriosos!

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