Cineasta, poeta, roteirista
e escritor, é autor de 37 filmes (onze longas-metragens), e 20 livros (entre
poesia, roteiros e ensaios)
Esta
crônica-depoimento é a base do roteiro de um docudrama (misto de doc & fic)
de longa-metragem sobre o Botafogo intitulado “O Glorioso alvinegro”.
Articulando a paixão do cineasta-poeta, que remonta ao fim dos anos quarenta,
com a mitológica saga do time da “Estrela Solitária” – dessa linguagem
ressurgirão na tela imagens e sons raros, nunca vistos e ouvidos pelo
espectador. Seja botafoguense ou adepto de outro clube, seja um inveterado
amante do futebol, o filme vai retraçar, do seu nascimento ao centenário neste
2010 do primeiro campeonato carioca, todas as graças e desgraças que frequentam
a história & as estórias do Botafogo. Pois, nenhum time de futebol no
Brasil contabiliza tantos desafios e glórias quantas agruras e injustiças,
dentro e fora das quatro linhas. Quase como se o Botafogo, intuitivamente (com
perdão a todos os nossos adversários e seus torcedores, tão heróicos e
inestimáveis quanto nós, ora direis!), simbolizasse a própria alma telúrica do
nosso povo sofrido e valoroso, que sempre acaba dando a volta por cima.
GLORIOSO
1948
Paixão tão antiga quanto à de cinéfilo,
é a de torcedor do Botafogo. Ambas remontam ao final da década de quarenta do
século passado. Ambas, igualmente, já me invadiram com tamanhas alegrias e
decepções que só fizeram crescer o amor e a fidelidade a elas ao longo desses
sessenta e um anos.
Mas,
ao contrário do cinema, cujos primeiros filmes, americanos, italianos e
franceses, vistos e revistos no Cine Antonina, me conflagraram de gozo estético
para sempre, foi nessa época que, pela primeira vez ouvi, com um laivo de
assustador desânimo, a expressão, "o Botafogo é triste!".
Eu
tinha dez anos. Era dezembro de 1947. Passava correndo pela porta da frente do
Antonina Hotel, no litoral do Paraná, em direção à calçada defronte para jogar
bolinha de gude com os amigos. Alguns quartos do estabelecimento, de
propriedade de minha mãe (não é à toa que meu filme, “Aleluia, Gretchen”, se
passa num hotel...), eram alugados para clientes que ficavam meses seguidos na
cidade, como engenheiros e técnicos do porto, funcionários transferidos, etc.
Um deles vinha a ser esse torcedor inveterado do Botafogo, que escutava os
jogos, o rádio a todo volume, debruçado no parapeito da janela assistindo aos
nossos “embates buricos”, orgulhosamente, envergando uma camisa do time! (onde
ele havia conseguido essa com a Estrela Solitária, eu nunca soube).
“O
Botafogo é triste!”, repetia inconsolado o cidadão, do qual não me lembro o
nome nem a idade, mas que, para mim, era “velho”, devia ter em torno de trinta
anos. Cabelo untado de gomalina, bigode finíssimo, “homem alinhado” - segundo
mamãe! Muito sorridente no restaurante do hotel, com certeza, carioca, não
disfarçava o sotaque para nossa alegria, da irmã e minha, acostumados a dizer
as palavras com todas as letras (leitê quentê faz bem pra gentê...).
Santos, Rubinho e Ávila
Só
ao longo do ano seguinte, mesmo sem atinar para o significado do que vem a ser
um “vice-campeonato”, o Hóspede (doravante o chamarei assim, com reverente
maiúscula, esse mítico botafoguense) me explicou que o Botafogo amargava, pela
quarta vez seguida, a perda do título do Rio de Janeiro. Desde 1944, a sina do
time era ser vice, contrastando com o antológico tetracampeonato de 1932, 33,
34 e 35, láurea essa jamais igualada desde então por nenhum clube carioca.
Comecei “entendendo” o tortuoso destino do Botafogo com um orgulho às avessas:
o alvinegro ficara viciado em ser vice, ainda que tetra pelas virtudes na
década passada!
Mas,
curiosamente, a minha epifania botafoguense ocorreu, justamente, no dia da
única derrota do time, abrindo o campeonato de 1948, quando levou uma surra de
4x0 do São Cristóvão. Convidados pelo Hóspede, abortamos nossa jogatina no chão
de terra batida, e sentados na escadaria à entrada do hotel, esticávamos o
ouvido para acompanhar, vindo do quarto, a transmissão do jogo. Rádio de
válvula, muitas vezes a narração sumia por intermináveis segundos e quando
voltava o placar já era outro. E coube a mim flagrar, a cada novo gol, o
Hóspede soltando o mantra de meses atrás: “O Botafogo é triste! O Botafogo é triste!”
O tom era como se aquela tragédia jamais teria fim.
Até
hoje é um mistério impenetrável, para usar, senão a melhor expressão para este
raio, como soe acontecer, bastou cair uma única vez sobre mim: como é que, na
desgraça, na desolação e a partir daquela derrota do Botafogo, acabei me
apaixonando pelo clube por toda a vida. Sei lá, talvez inconscientemente
solidário com a depressão do Hóspede que, a cada derrota, no dia seguinte era
um outro homem, carrancudo, calado; talvez, aos poucos ouvindo dele a história
das façanhas e glórias do Botafogo, ou lendo e vendo fotos do “Jornal dos
Sports” que ele recebia do Rio de Janeiro um tempão depois da peleja que
havíamos escutado. Ou, quem sabe mesmo, péssimo jogador de peladas, quando eu
preferia escalar o time que atuar (se não fosse cineasta seria técnico de
futebol!), tomei gosto, isso sim, compensando a falta de habilidade para o
esporte bretão, pela insuperável virtualidade do rádio. As “canoras” vozes de
um Oduvaldo Cozzi, Doalcey Camargo, Jorge Cury, cujos gritos de gol ficavam
ecoando horas e dias na cabeça, se acoplavam à minha imaginação que parecia
filmar no éter, tornando “visíveis” as partidas em General Severiano, em São
Januário, na rua Bariri, na Gávea...
Depois
daquela inesquecível derrota na abertura da temporada, exatamente, onze dias
antes dos meus onze anos, nunca mais fui o mesmo. Junto com meus três, quatro
amiguinhos, a tarde de domingo era sagrada, só mesmo quando tinha algum
episódio de seriado que eu não podia perder... Neófito, ainda não era um
torcedor como o fanático Hóspede alvinegro. Mais tarde, quando me encontrava,
ficava descrevendo detalhes da partida vencida pelo Botafogo, pois naquele
histórico 1948, o time chegaria (quase) invicto a campeão carioca, goleando no
“clássico” da final o Vasco da Gama, o chamado “expresso da vitória”. O
Hóspede, forçando seu lindo “carioquês”, passou dias ironizando, com os olhos
injetados de prazer e rindo para si mesmo como um louco varrido: agora é o
“éqsch-eschpresso” da vitória!, “éqsch-eschpresso” – repetia sem parar.
Juvenal, Paraguaio e Geninho
Tão
insólito quanto a inesquecível efeméride, é que aquela criança recém-alvinegra
nunca mais me abandonou. Seja nas horas sem tempo foçando os casacões que meus
pais haviam trazido em 1935 na fuga da Alemanha hitlerista, à caça de
“jogadores europeus” (esse pensamento é a posteriori, lógico, adaptação da
recente emigração em massa de jogadores brasileiros ao Velho Mundo) para
“reforçar” a defesa do meu Botafogo de mesa. Botões raspados na escadaria do
hotel e fatais nos jogos pela sua envergadura e textura. Faziam bonito e
provocavam inveja.
Dias
antes da final de campeonato, o Hóspede já fazia uma convocação geral para
ouvirmos coletivamente o jogo. A mim fuzilou, dizendo que nem a matinê, nem a rainha
de gude eram mais importantes. E, também, porque o correio acabara de lhe
entregar um rádio novinho em folha. Segundo ele, a voz do locutor não iria mais
sumir na hora agá. Sumia, sim, deixando-o meio sem jeito com a minha cobrança.
Mas, nada disso diminuiu a adrenalina daquele 12 de dezembro, aquela tarde da
redenção, da volta por cima dos reiterados vices, a maldição de “morrer na
praia” – aliás, umas das grifes mais tenebrosas e recorrentes do Botafogo em
todo os seus mais de cem anos de existência.
Não
estávamos em General Severiano, obviamente, no meio daqueles vinte mil
torcedores, nem podíamos ter nossos berros ouvidos quando Oswaldo, Gerson e
Santos (Nilton, o futuro “A Enciclopédia do Futebol”); Rubinho, Ávila e
Juvenal; Paraguaio, Geninho, Pirilo, Otávio e Braguinha, entraram em campo. O
Hóspede, com a sua impecável camisa alvinegra, já um tanto desbotada (nunca
perguntei, mas anos mais tarde, conjeturei que talvez tivesse jogado no clube,
então como teria aquele “troféu”?), exalava uma animação e confiança que nós,
eu em especial, botafoguense catecúmeno, não ficamos indiferentes.
E
não é que, inopinadamente, o Hóspede puxou o hino do Botafogo e, não demorou,
éramos um pequeno e desafinado coro de malucos cantando para espanto de outros
hóspedes, os vizinhos e transeuntes. Até minha mãe apareceu na porta do hotel,
e com ar de quem sabe das coisas (e ela sabia, meu pai fora um jogador de
baralho inveterado!), pediu moderação, o que de nada adiantou. Sentindo a
inocência da cena, fez aquele gesto desmunhecando, típico de alemão, deu um
sorriso e grunhou, “bah!”, e nos deixou entregues à euforia.
Os
gols de Braguinha, logo no primeiro minuto e pouco do jogo, e de Paraguaio, no
final do primeiro tempo, confirmava o que só vim a reconhecer ao longo da vida
como sendo uma verdade irretorquível. Se na decolagem e na aterrissagem de um
avião, é nos cinco minutos primevos e terminais que a fatalidade fica à
espreita, no futebol é a mesma coisa. Não deu outra, nem vascaínos dentro e
fora do campo, nem nós, botafoguenses curtidos, ou não, à sombra da árvore das
desgraças, podíamos adivinhar que já aos cinco minutos do segundo tempo, com um
golaço de Otávio, desde já, escrevia-se o heróico e ansiado epílogo.
Mas,
como nem tudo seriam louros, uma madrastice, que também acompanha a crônica
dorida da solitária estrela, Ávila fez o gol que o Vasco jamais conseguira
durante os noventa minutos. Parece que essa bola contra as próprias cores do
“Glorioso”, assim alcunhado pela imprensa desde 1910, quando foi campeão
carioca, não deixa de embutir uma sutil falseta do destino. Coincidentemente,
nessa campanha o time só perdeu a primeira partida, contra o América (4 a 1). E
na final, vitória sobre o Fluminense de 6 a 1, sendo o gol tricolor também obra
do capeta: contra do botafoguense Lulu.
Pirilo, Octávio e Braguinha
Quando
o locutor anunciou o fim do jogo, estávamos irreconhecíveis, meus amiguinhos
felizes, todos “botafoguenses da hora”, e o Hóspede que só faltava saltar da
janela. Cantava, cantávamos (mal) o hino do Botafogo. Em verdade, o Hóspede é
que sabia de cor letra e música certinhas de Lamartine Babo. De repente, o
Hóspede sumiu e por alguns segundos ficamos órfãos do nosso “maestro”. Não
demorou e começou a voar confete e serpentinas pela janela caindo sobre nós
como se fora algum pó mágico. E quem olhasse da rua (e as pessoas iam parando e
riam), ficaria espantado porque da escuridão do quarto vinha uma profusão de
papel colorido que lembrava canhão de circo.
No
meio dela, fantasmagórico, o Hóspede veio no encalço, pulando da janela para a
calçada, de cueca e a camisa do Botafogo encharcada. Completamente
descontrolado, gritava a todos pulmões, “Botafogo campeão!”, “Botafogo
campeão!”. Acho que gostaria que, da poética e modorrenta Antonina, seus berros
fossem ouvidos por todos os botafoguenses do mundo.
Insólito,
também quanto à festa da vitória, seja essa minha condição de torcedor
não-presencial, como se diz no jargão do ensino à distância, de décadas
curtindo o time a partir de Antonina, Paranaguá e de Curitiba, só pode ser
coisa da proverbial mística do Botafogo. Pois só vim conhecer o clube, anônima
e timidamente, ao vivo, em 1953, na primeira viagem ao Rio de Janeiro, fui de
imediato assistir a treinos em General Severiano. Nem preciso dizer que chorei
ao ver meus “heróis” radiofônicos e da esquadra de botões, ali, bem pertinho,
quase sentindo sua respiração, ouvindo a voz deles, usufruindo de sua aura!
O
que hoje ressurge para mim, com uma assombrosa nitidez, em câmara lenta, num
belíssimo preto-e-branco sem riscos nem manchas e em alta fidelidade, não deve
ter levado mais que cinco minutos, se tanto. Mas, talvez sejam esses alguns dos
fotogramas e sons mais incandescentes a fluir e a reluzir no filme da minha
mente.
8 comentários:
Belíssimo texto! Com as suas palavras conseguiu nos arremeter ao seu passado, como se lá também estivéssemos.
Independente dele ser botafoguense, sempre admirei esse cineasta!
Texto muito bem interpretado por si, Hangman. Ler o cineasta é estar lá a assistir; eu confesso que vi o nosso fanático botafoguense como se fosse ao vivo. E como escreve bem!
Abraços Gloriosos!
rRui,
O nosso Botafogo tem o dom de nos emocionar, sempre!
Li o depoimento do Sylvio Back, bem menor e menos detalhes em um dos livros do Rui Porto.
Abs e Sds, Botafoguenses!!!
E, Gil, este texto é muito detalhado. Ao ponto de nos levar até lá, mais de sessenta anos depois. Eu também me emocionei: pelo Botafogo, pela profundidade do texto e pelo português absolutamente impecável.
Abraços Gloriosos!
Rui e amigos, as Vitórias do Botafogo são homéricas.
Nenhum outro clube tem isso.
Nem torcedores com tão bom gosto e perspicácia, como Sylvio Back.
É verdade, Émerson. As nossas vitórias são homéricas. Basta comparar a tristeza que foram as conquistas do Flamengo em 2007, 2008 e 2009 com a ajuda das arbitragens e o nosso título de 2012, que deu direito ao Jefferson defender uma grande penalidade cobrada por Adriano e ao Loco Abreu bater o penalty com a cavadinha que deixou o criminoso de bunda no chão.
E... sim, não há torcedores mais perspicazes, cultos e de bom gosto comon os torcedores do Botafogo. Eu gosto que a torcida do Botafogo seja pequena - as elites sempre foram e serão reduzidas. Sempre pensei que quando estou ao lado da maioria tenho que fazer uma introspeção sobre o que se está a passar comigo... (rs)
Abraços Gloriosos!
O Sylvio Back tem que "entregar" esse longa!!!
Com todo o respeito ao cinema, ao qual sou estreitamente ligado, e por mais que o que digo contrarie a obviedade, considero a palavra escrita um condutor mais potente ao mundo das imagens. Interessante pensar sobre isso, inclusive, porque parece funcionar ao contrário também.
Saudações botafoguenses!
Essa escolha para mim é muito difícil, Luiz. Adoro a escrita e sou um cinéfilo de sempre. Mas se tivesse que optar, escolheria a escrita - o que parece incongruente num mundo de imagens.
Abraços Gloriosos!
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