Nunca viu o pai, foi deixado num
orfanato e sofre de uma grave doença; esta é a história de Ulf Lindberg, o
filho que Garrincha teve na Suécia e que estava sumido há 22 anos.
por Ronaldo Soares, da Placar, em Halmstad (Suécia) – 27.06.2008
O franzino Jonas Lindberg, 12 anos, domina a bola pela direita do ataque,
próximo à lateral. Tem a marcá-lo um moleque da mesma idade, mas de porte
físico bem mais avantajado. Jonas recua um ou dois passos com a bola em direção
ao seu próprio campo, mas faz um giro rápido de 180 graus e parte novamente em
direção ao gol adversário, deixando o marcador batido. Jonas chuta forte. A
bola passa rente à trave. Nenhum dos meninos que jogam com ele numa fria manhã
de outono europeu, no ginásio poliesportivo de Halmstad, litoral da Suécia,
sabe que o lance que Jonas acaba de produzir havia sido repetido milhares de
vezes pelo seu avô. Um homem famoso chamado Manuel Francisco dos Santos, mais
conhecido no mundo inteiro como Garrincha.
O único ali a identificar a genealogia do drible de Jonas é seu pai, Ulf
Lindberg Henrik, o filho sueco de Mané Garrincha. Em pé à beira da quadra, Ulf
abre um largo sorriso e comenta, orgulhoso, a jogada do menino:
— Meu pai cansou de fazer isso em campo...
Ulf tem a convicção de que, apesar de o seu filho não ter pernas tortas nem
nenhum outro traço fisionômico que o faça lembrar Garrincha, o menino herdou a
principal característica que celebrizou o avô: a intimidade com a bola. “Quando
ele corre, os mais antigos dizem que o jeito é muito parecido com o de
Garrincha”, conta Ulf.
Para ele, a perpetuação dos dribles de Garrincha nos pés de Jonas não é só
motivo de orgulho. Serve também de conforto para uma frustração que Ulf amargou
ainda na infância: ele não pôde realizar o maior sonho da sua vida, que era
seguir a carreira do pai, em virtude de uma doença óssea que o impede de
exercer qualquer atividade física intensa por mais de 15 minutos consecutivos.
A doença obrigou Ulf a parar de jogar aos 14 anos de idade, mas não o impediu
de continuar ligado ao esporte, que ele define como “a coisa mais importante”
da sua vida.
Não é exagero da parte de Ulf, hoje com 39 anos. Ele simplesmente respira
futebol. Além de dirigir uma escolinha para meninos da cidade, Ulf Lindberg
trabalha como administrador de um clube de Halmstad, o Frennarp. E, para
completar, é casado com a presidente de outro clube de futebol, Anette
Johansson. “Ela é presidente e eu sou treinador. Em casa não falamos de outra
coisa. O futebol é a minha vida”, define.
É justamente ao futebol que Ulf deve sua existência. Ele é fruto de uma
escapulida de Garrincha durante a excursão do Botafogo, em 1959, pela Europa,
cujo ponto inicial era a Suécia — onde, um ano antes, o Brasil conquistara sua
primeira Copa do Mundo. Ele acredita que foi em Umea, no norte do país, que
seus pais vieram a se encontrar. “Numa noite Garrincha saiu, conheceu uma
garota e...”, conta Ulf, completando a frase com gestos.
Há quarenta anos, Umea era uma pequena cidade litorânea de 50 000
habitantes, cujos moradores gostavam de banhos nos lagos da região, pescaria,
passeios pelas florestas, hóquei sobre patins e, como todos naquele país
vice-campeão mundial, futebol. A chegada do grande Botafogo, base da Seleção Brasileira,
foi um grande acontecimento e muita gente correu para assistir ao treino dos
visitantes. Para os jogadores, porém, ali era apenas a segunda etapa da
excursão de 55 dias. Apesar do frio de 2 ºC em Umea, que deixou vários
botafoguenses no hotel, Garrincha não abandonou sua rotina de viagem. Sempre
que chegava a uma cidade diferente, ele colhia algumas informações com gestos
e, de largo sorriso no rosto, anunciava aos companheiros que havia descoberto o
endereço do bordel: “Pessoal, já sei onde é a casa das Marocas”.
A escapada de Garrincha
Naquele dia 21 de maio, Garrincha deixou o hotel e só voltou alta
madrugada, para a ira do técnico João Saldanha. “Ele era liberal, não ligava
que a gente fosse passear”, conta o ex-meia Pampolini, 66 anos, participante da
excursão e hoje administrador do Maracanãzinho. “Só exigia que todo mundo
voltasse até as 22 horas.”
Desta vez, porém, Garrincha não tinha ido à “casa das Marocas”. Na
biografia do craque, Estrela Solitária, o autor Ruy Castro conta que Garrincha
conheceu uma garota que o levou para casa. Enquanto os pais dela assistiam à
televisão, o novo casal se divertia debaixo dos lençóis. Outro jogador
botafoguense, o hoje técnico Zagallo, não confirma, mas acha a hipótese plausível.
“Já naquela época qualquer mocinha na Suécia era dona de si”, lembra. “Fazer
amor lá era como almoçar e jantar. Era fisiológico, não tinha sacanagem.”
O amor podia ser livre, mas tinha suas regras, como os brasileiros
descobriram na manhã seguinte, quando duas policiais femininas foram ao hotel
procurar Garrincha. “Pronto, vão prender o Mané”, pensou o ex-lateral-esquerdo
Nílton Santos. Nada disso. A pedido dos pais da moça, elas apenas queriam
colher amostras do sangue de Garrincha, o que foi feito sem problemas. “Depois
ficamos sabendo que o governo sueco só paga pensão a filhos de mãe solteira
desde que se conheça, por nome e sobrenome, o pai da criança”, diz Zagallo, que
comete uma indiscrição: “Tem outro campeão do mundo que deixou filho na Suécia
também”. E quem eram os preferidos das mulheres? “Elas adoravam os escurinhos
como o Didi”, lembra Zagallo, citando o grande meia, eleito craque da Copa de
1958, lá mesmo, na Suécia.
No dia 23 de maio, o Botafogo seguiu na excursão. Garrincha deixou para trás
uma amostra de sangue e, sem saber, um filho. Assim, em 10 de fevereiro de
1960, quando o ponta se metia em outra excursão, desta vez pela América Latina,
nascia o menino Ulf, que nunca viria a conhecer pessoalmente o pai famoso. Nem
a mãe, que permanece anônima até hoje. Apesar de ser considerada uma sociedade
de costumes liberais, a Suécia daquela época não via com bons olhos o fato de
uma mulher solteira engravidar. Além disso, praticamente não havia creches onde
as mães solteiras pudessem deixar os seus filhos enquanto estivessem
trabalhando. Não é de estranhar, portanto, que Ulf tenha sido entregue aos
cuidados de um orfanato da cidade.
Até hoje, Ulf pouco sabe sobre sua mãe biológica. “Dizem que ela era muito
jovem quando eu nasci e se chamava Bloon, que significa flor em sueco”, diz
Ulf. Ele jamais procurou saber mais detalhes sobre sua mãe em respeito à
decisão que ela tomou na época. “Ela deve ter tido os motivos dela para não
ficar comigo”, justifica.
Aos nove meses, Ulf foi adotado por uma família de classe média de uma
cidade perto de Umea, Skelleftea, onde viveu parte da infância. O bebê foi
batizado com o nome do pai adotivo, mas também não chegou a ficar muito tempo
em contato com ele: ainda na infância, seus pais se separaram, e o filho de
Garrincha se mudou com a mãe, Margareta Lindberg, para Halmstad.
Situada no oeste do país, Halmstad é um dos balneários mais procurados
pelos suecos durante as férias do verão. A cidade, de 85 000 habitantes, também
é famosa por ser o berço do grupo pop Roxette. Foi em Halmstad, quando ainda
era criança, que Ulf soube, pela mãe adotiva, quem era seu verdadeiro pai. A
revelação deixou o menino orgulhoso. A ponto de ele começar a enxergar
semelhanças entre os dois até mesmo no futebol.
Cartas para o pai
“Eu não tinha perna torta nem nada, mas meu jeito de driblar e de correr
era parecido”, jura Ulf. “Eu era bom. Jogava de ponta-direita, claro, mas
também sabia atuar pelo meio. Tudo, menos ser zagueiro. Fui o melhor do time da
escola até os 14 anos, mas tive de parar por causa da doença.” Embora se
sentisse honrado por ser filho de um dos maiores jogadores do mundo, Ulf
manteve tudo em segredo. Até que, em 1977, pouco depois de completar 17 anos, o
fato veio a público por iniciativa do próprio Garrincha, que contou a um
jornalista inglês sobre um filho que tinha na Suécia.
Foi também nessa época que Ulf e Garrincha mantiveram um curto contato, por
correspondência. O conteúdo das cartas do pai — escritas em inglês por um amigo
da Legião Brasileira de Assistência (LBA), onde Garrincha trabalhava — se
restringia a alguns conselhos. “Ele dizia que, se eu fosse bom, poderia virar
jogador profissional”, lembra Ulf, que não sabe “onde foram parar as cartas”.
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Garrincha até fez planos para o futuro do garoto. Queria transferi-lo para
o Brasil e colocá-lo no futebol carioca, sob sua orientação. “Parece ser um bom
rapaz. Tem sentimento. Pelo menos me escreve dando notícias e mandando
retratos”, disse em uma entrevista na década de 70. Apesar de só conhecer Ulf
por fotos, Garrincha dizia o contrário para a sua última mulher, Vanderléia
Vieira, com quem vivia na época que chegaram as cartas. “Ele falava que tinha
feito esse filho na Copa de 1958, quando a Seleção passou três meses lá”, conta
Vanderléia. “Ele contava que morou com uma cabeleireira e que ela era a mãe do
garoto.” Mais uma das inocentes mentiras de Mané. Nem sequer o nome de Ulf ele
lembrava. Referia-se ao filho sueco do mesmo modo que chamava seus marcadores:
João. Mas com sotaque estrangeiro, é claro. Cansou de dar entrevistas chamando
Ulf de “meu filho Johnny, da Suécia”.
Apesar de a troca de correspondência entre pai e filho não ter durado mais
do que “duas ou três cartas”, Ulf sempre acompanhou, pela imprensa, a
trajetória do pai. Foi também por intermédio da imprensa, e da forma mais
desagradável possível, que ele ficou sabendo da morte de Garrincha, há
dezesseis anos. “Os jornalistas cercaram a minha casa e permaneceram de vigília
a noite inteira. No dia seguinte, tive de sair correndo, com os paparazzi atrás”,
recorda.
Embora não tenha guardado as cartas do pai, Ulf possui documentos valiosos
que registram a passagem do Botafogo pela Suécia em 1959, como uma foto
autografada por todo o time (que, além de Garrincha, tinha estrelas como Didi,
Amarildo, Nílton Santos e Zagallo). Mesmo sem entender português, ele trata
como peça mais valiosa da sua estante o livro Estrela Solitária, presente que
ganhou de um time brasileiro que disputou um torneio infantil na Suécia no ano
passado. Ele guarda também matérias de jornais que estampavam escândalos da
vida pessoal do seu pai.
As outras referências sobre Garrincha, Ulf carrega em seu código genético.
Com 1,75 m de altura, tez morena, cabelo escuro crespo e olhos castanhos, Ulf
Lindberg destoa na paisagem sueca, em meio a um mar de gente alta, loura e de
olhos azuis. Porém, o contraste, que evidencia uma ascendência que nada tem a
ver com os escandinavos, jamais foi citado nas rodas de conversa com os amigos.
Em Halmstad, toda a vizinhança sabe que aquele homem de fala mansa, que anda
sempre com passos decididos e de peito estufado, é o filho de Garrincha, mas
dificilmente alguém toca no assunto com ele. “Aqui na Suécia é aquela história:
todo mundo sabe, mas ninguém comenta”, explica Ulf.
As “coincidências
Além disso, ao contrário do pai, o comportamento de Ulf não é motivo para
comentários na vizinhança. Ele leva uma vida confortável, mas sem grandes
luxos, ao lado de Anette, os dois filhos do primeiro matrimônio (Jonas, de 12
anos, e Martin, de 10), seu enteado, Karl, de 10 anos, e o casal de gêmeos
Henrik e Linnea, de onze meses, frutos do seu atual casamento. A família mora
numa casa de cinco cômodos na região central de Halmstad.
A rotina de Ulf é a de um típico pai de família sueco. Pela manhã, ele sai
para trabalhar no Frennarp (clube da Segunda Divisão sueca, onde é
administrador). À tarde, volta para casa e ainda ajuda a mulher (que divide seu
tempo entre os afazeres domésticos e as tarefas como presidente do Leikin,
clube recreativo da cidade) a cuidar da casa. Nos finais de semana, Ulf
coordena os trabalhos da escolinha para meninos de até 12 anos no Leikin, da
qual participam 34 jogadores-mirins.
Se tivesse tido a oportunidade de estar com Garrincha, Ulf contaria para
ele a série de “coincidências” entre os dois. A exemplo do pai famoso, Ulf
gostava de fumar. “Eu também sofri um acidente com um carro americano, sendo
que a parte mais atingida na colisão foi o lado direito”, conta. Em 1969, Garrincha
teve um acidente grave. O carro era brasileiro, mas de nome estrangeiro, um
Galaxie. Sem falar que os outros dois filhos homens do ponta (Neném e
Garrinchinha) morreram em acidentes automobilísticos. “Além do mais, ele
gostava de mulher”, completa Ulf. “Quem não gosta?”
Na série de coincidências, só faltou incluir um “esporte” em que Garrincha
era especialista e no qual Ulf também tem se saído muito bem: fazer filhos. Ao
ser lembrado que havia esquecido um item na lista, Ulf recua, com a convicção
de quem sabe de quem está falando.
— Ah, mas aí não dá para competir com ele. Nisso ele era imbatível.
*Fonte: revista “Placar”, publicada originalmente na edição 1148, de
01/02/1999, páginas 30-37.
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