quinta-feira, 24 de abril de 2014

Ulf Lindberg Henrik, o filho perdido de Garrincha (3)

Nunca viu o pai, foi deixado num orfanato e sofre de uma grave doença; esta é a história de Ulf Lindberg, o filho que Garrincha teve na Suécia e que estava sumido há 22 anos.

por Ronaldo Soares, da Placar, em Halmstad (Suécia) – 27.06.2008

O franzino Jonas Lindberg, 12 anos, domina a bola pela direita do ataque, próximo à lateral. Tem a marcá-lo um moleque da mesma idade, mas de porte físico bem mais avantajado. Jonas recua um ou dois passos com a bola em direção ao seu próprio campo, mas faz um giro rápido de 180 graus e parte novamente em direção ao gol adversário, deixando o marcador batido. Jonas chuta forte. A bola passa rente à trave. Nenhum dos meninos que jogam com ele numa fria manhã de outono europeu, no ginásio poliesportivo de Halmstad, litoral da Suécia, sabe que o lance que Jonas acaba de produzir havia sido repetido milhares de vezes pelo seu avô. Um homem famoso chamado Manuel Francisco dos Santos, mais conhecido no mundo inteiro como Garrincha.

O único ali a identificar a genealogia do drible de Jonas é seu pai, Ulf Lindberg Henrik, o filho sueco de Mané Garrincha. Em pé à beira da quadra, Ulf abre um largo sorriso e comenta, orgulhoso, a jogada do menino:

— Meu pai cansou de fazer isso em campo...

Ulf tem a convicção de que, apesar de o seu filho não ter pernas tortas nem nenhum outro traço fisionômico que o faça lembrar Garrincha, o menino herdou a principal característica que celebrizou o avô: a intimidade com a bola. “Quando ele corre, os mais antigos dizem que o jeito é muito parecido com o de Garrincha”, conta Ulf.

Para ele, a perpetuação dos dribles de Garrincha nos pés de Jonas não é só motivo de orgulho. Serve também de conforto para uma frustração que Ulf amargou ainda na infância: ele não pôde realizar o maior sonho da sua vida, que era seguir a carreira do pai, em virtude de uma doença óssea que o impede de exercer qualquer atividade física intensa por mais de 15 minutos consecutivos. A doença obrigou Ulf a parar de jogar aos 14 anos de idade, mas não o impediu de continuar ligado ao esporte, que ele define como “a coisa mais importante” da sua vida.

Não é exagero da parte de Ulf, hoje com 39 anos. Ele simplesmente respira futebol. Além de dirigir uma escolinha para meninos da cidade, Ulf Lindberg trabalha como administrador de um clube de Halmstad, o Frennarp. E, para completar, é casado com a presidente de outro clube de futebol, Anette Johansson. “Ela é presidente e eu sou treinador. Em casa não falamos de outra coisa. O futebol é a minha vida”, define.

É justamente ao futebol que Ulf deve sua existência. Ele é fruto de uma escapulida de Garrincha durante a excursão do Botafogo, em 1959, pela Europa, cujo ponto inicial era a Suécia — onde, um ano antes, o Brasil conquistara sua primeira Copa do Mundo. Ele acredita que foi em Umea, no norte do país, que seus pais vieram a se encontrar. “Numa noite Garrincha saiu, conheceu uma garota e...”, conta Ulf, completando a frase com gestos.

Há quarenta anos, Umea era uma pequena cidade litorânea de 50 000 habitantes, cujos moradores gostavam de banhos nos lagos da região, pescaria, passeios pelas florestas, hóquei sobre patins e, como todos naquele país vice-campeão mundial, futebol. A chegada do grande Botafogo, base da Seleção Brasileira, foi um grande acontecimento e muita gente correu para assistir ao treino dos visitantes. Para os jogadores, porém, ali era apenas a segunda etapa da excursão de 55 dias. Apesar do frio de 2 ºC em Umea, que deixou vários botafoguenses no hotel, Garrincha não abandonou sua rotina de viagem. Sempre que chegava a uma cidade diferente, ele colhia algumas informações com gestos e, de largo sorriso no rosto, anunciava aos companheiros que havia descoberto o endereço do bordel: “Pessoal, já sei onde é a casa das Marocas”.

A escapada de Garrincha

Naquele dia 21 de maio, Garrincha deixou o hotel e só voltou alta madrugada, para a ira do técnico João Saldanha. “Ele era liberal, não ligava que a gente fosse passear”, conta o ex-meia Pampolini, 66 anos, participante da excursão e hoje administrador do Maracanãzinho. “Só exigia que todo mundo voltasse até as 22 horas.”

Desta vez, porém, Garrincha não tinha ido à “casa das Marocas”. Na biografia do craque, Estrela Solitária, o autor Ruy Castro conta que Garrincha conheceu uma garota que o levou para casa. Enquanto os pais dela assistiam à televisão, o novo casal se divertia debaixo dos lençóis. Outro jogador botafoguense, o hoje técnico Zagallo, não confirma, mas acha a hipótese plausível. “Já naquela época qualquer mocinha na Suécia era dona de si”, lembra. “Fazer amor lá era como almoçar e jantar. Era fisiológico, não tinha sacanagem.”

O amor podia ser livre, mas tinha suas regras, como os brasileiros descobriram na manhã seguinte, quando duas policiais femininas foram ao hotel procurar Garrincha. “Pronto, vão prender o Mané”, pensou o ex-lateral-esquerdo Nílton Santos. Nada disso. A pedido dos pais da moça, elas apenas queriam colher amostras do sangue de Garrincha, o que foi feito sem problemas. “Depois ficamos sabendo que o governo sueco só paga pensão a filhos de mãe solteira desde que se conheça, por nome e sobrenome, o pai da criança”, diz Zagallo, que comete uma indiscrição: “Tem outro campeão do mundo que deixou filho na Suécia também”. E quem eram os preferidos das mulheres? “Elas adoravam os escurinhos como o Didi”, lembra Zagallo, citando o grande meia, eleito craque da Copa de 1958, lá mesmo, na Suécia.

No dia 23 de maio, o Botafogo seguiu na excursão. Garrincha deixou para trás uma amostra de sangue e, sem saber, um filho. Assim, em 10 de fevereiro de 1960, quando o ponta se metia em outra excursão, desta vez pela América Latina, nascia o menino Ulf, que nunca viria a conhecer pessoalmente o pai famoso. Nem a mãe, que permanece anônima até hoje. Apesar de ser considerada uma sociedade de costumes liberais, a Suécia daquela época não via com bons olhos o fato de uma mulher solteira engravidar. Além disso, praticamente não havia creches onde as mães solteiras pudessem deixar os seus filhos enquanto estivessem trabalhando. Não é de estranhar, portanto, que Ulf tenha sido entregue aos cuidados de um orfanato da cidade.

Até hoje, Ulf pouco sabe sobre sua mãe biológica. “Dizem que ela era muito jovem quando eu nasci e se chamava Bloon, que significa flor em sueco”, diz Ulf. Ele jamais procurou saber mais detalhes sobre sua mãe em respeito à decisão que ela tomou na época. “Ela deve ter tido os motivos dela para não ficar comigo”, justifica.

Aos nove meses, Ulf foi adotado por uma família de classe média de uma cidade perto de Umea, Skelleftea, onde viveu parte da infância. O bebê foi batizado com o nome do pai adotivo, mas também não chegou a ficar muito tempo em contato com ele: ainda na infância, seus pais se separaram, e o filho de Garrincha se mudou com a mãe, Margareta Lindberg, para Halmstad.

Situada no oeste do país, Halmstad é um dos balneários mais procurados pelos suecos durante as férias do verão. A cidade, de 85 000 habitantes, também é famosa por ser o berço do grupo pop Roxette. Foi em Halmstad, quando ainda era criança, que Ulf soube, pela mãe adotiva, quem era seu verdadeiro pai. A revelação deixou o menino orgulhoso. A ponto de ele começar a enxergar semelhanças entre os dois até mesmo no futebol.

Cartas para o pai

“Eu não tinha perna torta nem nada, mas meu jeito de driblar e de correr era parecido”, jura Ulf. “Eu era bom. Jogava de ponta-direita, claro, mas também sabia atuar pelo meio. Tudo, menos ser zagueiro. Fui o melhor do time da escola até os 14 anos, mas tive de parar por causa da doença.” Embora se sentisse honrado por ser filho de um dos maiores jogadores do mundo, Ulf manteve tudo em segredo. Até que, em 1977, pouco depois de completar 17 anos, o fato veio a público por iniciativa do próprio Garrincha, que contou a um jornalista inglês sobre um filho que tinha na Suécia.

Foi também nessa época que Ulf e Garrincha mantiveram um curto contato, por correspondência. O conteúdo das cartas do pai — escritas em inglês por um amigo da Legião Brasileira de Assistência (LBA), onde Garrincha trabalhava — se restringia a alguns conselhos. “Ele dizia que, se eu fosse bom, poderia virar jogador profissional”, lembra Ulf, que não sabe “onde foram parar as cartas”. 
Garrincha até fez planos para o futuro do garoto. Queria transferi-lo para o Brasil e colocá-lo no futebol carioca, sob sua orientação. “Parece ser um bom rapaz. Tem sentimento. Pelo menos me escreve dando notícias e mandando retratos”, disse em uma entrevista na década de 70. Apesar de só conhecer Ulf por fotos, Garrincha dizia o contrário para a sua última mulher, Vanderléia Vieira, com quem vivia na época que chegaram as cartas. “Ele falava que tinha feito esse filho na Copa de 1958, quando a Seleção passou três meses lá”, conta Vanderléia. “Ele contava que morou com uma cabeleireira e que ela era a mãe do garoto.” Mais uma das inocentes mentiras de Mané. Nem sequer o nome de Ulf ele lembrava. Referia-se ao filho sueco do mesmo modo que chamava seus marcadores: João. Mas com sotaque estrangeiro, é claro. Cansou de dar entrevistas chamando Ulf de “meu filho Johnny, da Suécia”.

Apesar de a troca de correspondência entre pai e filho não ter durado mais do que “duas ou três cartas”, Ulf sempre acompanhou, pela imprensa, a trajetória do pai. Foi também por intermédio da imprensa, e da forma mais desagradável possível, que ele ficou sabendo da morte de Garrincha, há dezesseis anos. “Os jornalistas cercaram a minha casa e permaneceram de vigília a noite inteira. No dia seguinte, tive de sair correndo, com os paparazzi atrás”, recorda.

Embora não tenha guardado as cartas do pai, Ulf possui documentos valiosos que registram a passagem do Botafogo pela Suécia em 1959, como uma foto autografada por todo o time (que, além de Garrincha, tinha estrelas como Didi, Amarildo, Nílton Santos e Zagallo). Mesmo sem entender português, ele trata como peça mais valiosa da sua estante o livro Estrela Solitária, presente que ganhou de um time brasileiro que disputou um torneio infantil na Suécia no ano passado. Ele guarda também matérias de jornais que estampavam escândalos da vida pessoal do seu pai.

As outras referências sobre Garrincha, Ulf carrega em seu código genético. Com 1,75 m de altura, tez morena, cabelo escuro crespo e olhos castanhos, Ulf Lindberg destoa na paisagem sueca, em meio a um mar de gente alta, loura e de olhos azuis. Porém, o contraste, que evidencia uma ascendência que nada tem a ver com os escandinavos, jamais foi citado nas rodas de conversa com os amigos. Em Halmstad, toda a vizinhança sabe que aquele homem de fala mansa, que anda sempre com passos decididos e de peito estufado, é o filho de Garrincha, mas dificilmente alguém toca no assunto com ele. “Aqui na Suécia é aquela história: todo mundo sabe, mas ninguém comenta”, explica Ulf.

As “coincidências

Além disso, ao contrário do pai, o comportamento de Ulf não é motivo para comentários na vizinhança. Ele leva uma vida confortável, mas sem grandes luxos, ao lado de Anette, os dois filhos do primeiro matrimônio (Jonas, de 12 anos, e Martin, de 10), seu enteado, Karl, de 10 anos, e o casal de gêmeos Henrik e Linnea, de onze meses, frutos do seu atual casamento. A família mora numa casa de cinco cômodos na região central de Halmstad.

A rotina de Ulf é a de um típico pai de família sueco. Pela manhã, ele sai para trabalhar no Frennarp (clube da Segunda Divisão sueca, onde é administrador). À tarde, volta para casa e ainda ajuda a mulher (que divide seu tempo entre os afazeres domésticos e as tarefas como presidente do Leikin, clube recreativo da cidade) a cuidar da casa. Nos finais de semana, Ulf coordena os trabalhos da escolinha para meninos de até 12 anos no Leikin, da qual participam 34 jogadores-mirins.

Se tivesse tido a oportunidade de estar com Garrincha, Ulf contaria para ele a série de “coincidências” entre os dois. A exemplo do pai famoso, Ulf gostava de fumar. “Eu também sofri um acidente com um carro americano, sendo que a parte mais atingida na colisão foi o lado direito”, conta. Em 1969, Garrincha teve um acidente grave. O carro era brasileiro, mas de nome estrangeiro, um Galaxie. Sem falar que os outros dois filhos homens do ponta (Neném e Garrinchinha) morreram em acidentes automobilísticos. “Além do mais, ele gostava de mulher”, completa Ulf. “Quem não gosta?”

Na série de coincidências, só faltou incluir um “esporte” em que Garrincha era especialista e no qual Ulf também tem se saído muito bem: fazer filhos. Ao ser lembrado que havia esquecido um item na lista, Ulf recua, com a convicção de quem sabe de quem está falando.

— Ah, mas aí não dá para competir com ele. Nisso ele era imbatível.

*Fonte: revista “Placar”, publicada originalmente na edição 1148, de 01/02/1999, páginas 30-37.

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