Durante as Conferências da Presidência Portuguesa da União Europeia em 2000
conheci, na qualidade de membro da equipe de coordenação do evento, o professor
Manuel Castells. O seu médico prognosticara-lhe três anos de vida em razão de
um tumor disseminado, mesmo após realizar algumas intervenções cirúrgicas.
Castells, de 58 anos de idade, dedicou-se a escrever a obra da sua vida, à
época: The Information Age: Economy,
Society and Culture.
Uma trilogia fantástica. Mas depois disso já publicou mais nove livros e
diversos artigos.
Se o médico tivesse acertado no prognóstico a obra de Castells ficaria por
concluir, porquanto a escrita demorou três anos e mais seis meses. Mas eis que
15 anos depois Manuel Castells ainda se encontra no vigor da sua vida
intelectual e vencedor tenaz de um tumor que não conseguiu abatê-lo.
Homem absolutamente brilhante, alma perscrutadora dos caminhos que o mundo
leva, possui uma obra notável. Sugeriu-me, à época, que fizesse o meu doutorado
sob a sua orientação. Porém, o nosso intelectual espanhol lecionava na
Califórnia e nessa época a minha vida profissional assoberbadíssima começava às
9:00 da manhã e terminava entre as 23 e as 24:00, impedindo-me de frequentes
deslocações à Califórnia. E que me exigia escrever uma tese inteiramente em
inglês e dominar absolutamente a língua inglesa.
Dominar a língua inglesa significa, nas palavras de um brilhantíssimo amigo
angolano, não apenas perceber o que os ingleses / americanos dizem, mas,
sobretudo, compreender o que… não dizem!
Pois bem, aí está Castells analisando o povo brasileiro.
Sylvia Colombo, enviada especial da Folha de S. Paulo a Salvador,
entrevistou Manuel Castells, atualmente com 73 anos de idade, desconstruindo o
mito do ‘brasileiro simpático’ através da agressiva polarização política que se
assiste nas redes sociais.
Castells refere que o problema não é só brasileiro, mas na medida em que aos
brasileiros interessará, sobretudo, o que lhes diz respeito, selecionei
excertos sobre o pensamento de Manuel Castells sobre o Brasil.
Castells assistiu aos protestos de Junho de 2013 e acrescentou ao seu último
livro (2012) Networks of Outrage and Hope
– Social Movements in the Internet Age um posfácio no qual
analisou os recentes acontecimentos no Brasil.
O Professor refere-se
“a uma crise mundial dos sistemas
tradicionais de democracia representativa, por conta da corrupção, agora mais
exposta porque as pessoas têm mais acesso à informação e mais capacidade de
organização por conta da internet.”
Deixo-vos com ele. Um
país visto de fora por um intelectual brilhante pode acrescentar mais clareza a
quem vive o concreto e dele tem mais dificuldade em se abstrair.
“Há uma insatisfação com toda a classe política. E isso não significa
que se acredite que todos os políticos sejam corruptos, mas sim que há uma
classe política que está separada da cidadania, que é formada por profissionais
que têm um interesse comum: o monopólio da política da corrupção.”
“No Brasil está ocorrendo a tempestade perfeita. Junto a essa crise de
representatividade, uma piora da economia. Houve um período de bom crescimento
com redistribuição. Mas a desaceleração da China fez com que ficasse difícil
manter o mesmo alto nível de gasto público. E então ressurgiu a inflação, que
já sabemos que foi um câncer para a economia e a sociedade brasileira em outras
épocas.”
“Um protesto pela
dignidade inclui a luta contra a pobreza, mas é algo mais. É a tradução dos
direitos humanos na consciência individual. Seja na favela, seja como um
profissional ou empresário, os indivíduos não sentem mais que as instituições
os representam.”
Os protestos de 2013
e 2015 “em comum têm a denúncia da
corrupção e o sentimento de que há demandas dos cidadãos que não podem se
expressar nos atuais sistemas políticos.”
“O movimento de 2013 era popular, jovem, e partiu de demandas concretas,
mas imediatamente levantou o tema da dignidade.”
“Já em 2015, é a classe média e média alta quem vai às ruas. E chegou-se
a pedir a impugnação da presidente. O grupo que pede um golpe de Estado é
pequeno e considero impossível que isso ocorra. Mas o que é significativo é a
existência de cidadãos e políticos que o queiram.”
“As instituições clássicas não são capazes de representar a diversidade
da sociedade. Às vezes é pela esquerda, às vezes pela direita, às vezes são
jovens, às vezes são de idade madura, mas o comum a todos é que não crêem na possibilidade
de representação institucional, têm de conectar-se pela internet e sair às ruas.”
“A comunicação social estava monopolizada até hoje ou pelo poder
político, ou pelo poder econômico. Agora, a internet permite às pessoas
comunicar-se diretamente sem passar por esses controles, e sem passar por
qualquer censura. Ainda que se queira controlar a internet, não se pode.”
“Eu não creio que no Brasil, com a internet, exista mais agressividade
no debate. O Brasil sempre foi agressivo. Nos tempos da ditadura, no final dos
anos 60, anos 70, o debate não só era agressivo como se torturavam pessoas
diariamente com impunidade. A imagem mítica do brasileiro simpático existe só
no samba. Na relação entre as pessoas, sempre foi violento. A sociedade brasileira
não é simpática, é uma sociedade que se mata. Esse é o Brasil que vemos hoje na
internet. Essa agressividade sempre existiu.”
“A única coisa que a internet faz é expressar abertamente o que é a
sociedade em sua diversidade. Trata-se de um espelho. Como hoje não precisam
passar pelos meios tradicionais de comunicação, as pessoas aparecem como
realmente são.”
“A pergunta fundamental é: a liberdade é um bem em si? Se dizemos que
sim, então a internet é uma tecnologia de liberdade, e portanto realiza uma
mudança histórica. Mas é preciso aceitar que liberdade é também para coisas de
que não gostamos. É para todos. Portanto, se ali se articulam formas de
violência, racismo, sexismo, é porque isso existe na sociedade.”
“Na internet, um racista ou um sexista pode facilmente encontrar outros
racistas e sexistas que, em seu entorno social, não podem se declarar
abertamente assim. Na rede, não há constrangimento e se abre a possibilidade de
expressão espontânea da sociedade. E o que ocorre? Nos damos conta que a
sociedade não é tão boa e angelical como gostaríamos que fosse. Vemos que, na
verdade, a sociedade é bastante má. No Brasil e em todos os outros países.”
“A internet é
agnóstica, expressa o que somos. E o que somos depende da cultura.”
“No Brasil, a desigualdade diminuiu, mas ainda é muito grande. Há uma
imensa riqueza, controlada por 1% da população. Como é que a sociedade não vai
estar com raiva? E há, também, um grupo de classe média que está descontente
porque se tira deles alguns recursos para redistribuir. Trata-se de uma classe
média profissional, que teme perder seus privilégios e que vive melhor que seus
pares nos EUA e na Europa. Quem pode ter dois ou três empregados domésticos
permanentes, vivendo em casa, ou constantemente indo e vindo? Nenhuma classe
média do mundo! Pode-se ver famílias com empregados domésticos em outros
países, mas em número pequeno. Empregados domésticos como massa importante, só
no Brasil.”
“No Brasil, não há Estado de Direito. No Brasil, há uma classe política corrupta
que utiliza o Estado para seus próprios fins. Faz isso como classe, ainda que
como governantes concretos às vezes não o sejam. No Brasil não há um Estado de
Direito, há a manipulação do Estado de Direito para manter um Estado
patrimonial.”
6 comentários:
Grande RUI,um abraço.
Sobre o nosso BOTAFOGO,desde o início afirmei que seria uma "baba de quiabo" ganharmos a série B,não devido as nossas qualidades como time,mas graças a má categoria dos adversários.Jogando com garra e disposição,seremos campeões mole mole,embora o amigo e eu tenhamos preferência por outros títulos.
Sobre o CASTELLS,admiro muito o seu trabalho e a sua perseverança ao lidar com a vida e a sua doença.
Sobre os seus comentários a respeito do Brasil,concordo com alguns aspectos e discordo de outros.
Entretanto,o seu último parágrafo define magistralmente a atualidade brasileira.Foi perfeito,e,em poucas palavras,atingiu o cerne da questão que envolve os plenos poderes na pátria tupiniquim.
Saudações gloriosas.JOTA.
JOTA, fora a razão maior e menor do MC sobre os assuntos que debate, o que mais me parece interessante na análise sobre a Internet - relativo ao Brasil mas também à internet em geral - é a capacidade de a internet revelar as pessoas, especialmente as que nunca se expõem em sociedade e que, sob a capa de qualquer nickname, ligadas a 'amigos' virtuais, dizem o que dizem mostrando o que são.
Quanto ao 'último' parágrafo, refere-se a qual?
Abraços Gloriosos.
“No Brasil, não há Estado de Direito. No Brasil, há uma classe política corrupta que utiliza o Estado para seus próprios fins. Faz isso como classe, ainda que como governantes concretos às vezes não o sejam. No Brasil não há um Estado de Direito, há a manipulação do Estado de Direito para manter um Estado patrimonial.”
RUI,no texto que você colocou no blog,o último parágrafo a que me referi é o que está acima.
SA,JOTA.
Pois... è um parágrafo um pouco assustador e... parece que verdadeiro.
No artigo original Castells considera que Dilma esteve muito próxima de apoiar as manifestações, mas que foi o PT que a travou... [não escrevi isso no texto para não parecer que queria publicá-lo defendendo a Dilma, já que eu penso que a Dilma é melhor [ou menos má] que o PT]
Abraços Gloriosos.
o ultimo paragrafo do Castells é perfeito, assim como toda o seu pensamento.
E lamento que o Castells tenha razão no último parágrafo, Flavio. Tenho poucas esperanças de em vida ver o Brasil liberto de tantas teias e Portugal regressar à qualidade de vida que tinha em 2000. Supondo que eu possa viver mais 30 anos, é muito pouco para se mudarem os vícios instalados.
Abraços Gloriosos.
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