quarta-feira, 3 de junho de 2015

Simpatia do brasileiro é um mito, diz Castells

Durante as Conferências da Presidência Portuguesa da União Europeia em 2000 conheci, na qualidade de membro da equipe de coordenação do evento, o professor Manuel Castells. O seu médico prognosticara-lhe três anos de vida em razão de um tumor disseminado, mesmo após realizar algumas intervenções cirúrgicas. Castells, de 58 anos de idade, dedicou-se a escrever a obra da sua vida, à época: The Information Age: Economy, Society and Culture.

Uma trilogia fantástica. Mas depois disso já publicou mais nove livros e diversos artigos.

Se o médico tivesse acertado no prognóstico a obra de Castells ficaria por concluir, porquanto a escrita demorou três anos e mais seis meses. Mas eis que 15 anos depois Manuel Castells ainda se encontra no vigor da sua vida intelectual e vencedor tenaz de um tumor que não conseguiu abatê-lo.

Homem absolutamente brilhante, alma perscrutadora dos caminhos que o mundo leva, possui uma obra notável. Sugeriu-me, à época, que fizesse o meu doutorado sob a sua orientação. Porém, o nosso intelectual espanhol lecionava na Califórnia e nessa época a minha vida profissional assoberbadíssima começava às 9:00 da manhã e terminava entre as 23 e as 24:00, impedindo-me de frequentes deslocações à Califórnia. E que me exigia escrever uma tese inteiramente em inglês e dominar absolutamente a língua inglesa.

Dominar a língua inglesa significa, nas palavras de um brilhantíssimo amigo angolano, não apenas perceber o que os ingleses / americanos dizem, mas, sobretudo, compreender o que… não dizem!

Pois bem, aí está Castells analisando o povo brasileiro.

Sylvia Colombo, enviada especial da Folha de S. Paulo a Salvador, entrevistou Manuel Castells, atualmente com 73 anos de idade, desconstruindo o mito do ‘brasileiro simpático’ através da agressiva polarização política que se assiste nas redes sociais.

Castells refere que o problema não é só brasileiro, mas na medida em que aos brasileiros interessará, sobretudo, o que lhes diz respeito, selecionei excertos sobre o pensamento de Manuel Castells sobre o Brasil.

Castells assistiu aos protestos de Junho de 2013 e acrescentou ao seu último livro (2012) Networks of Outrage and Hope – Social Movements in the Internet Age um posfácio no qual analisou os recentes acontecimentos no Brasil.

O Professor refere-se “a uma crise mundial dos sistemas tradicionais de democracia representativa, por conta da corrupção, agora mais exposta porque as pessoas têm mais acesso à informação e mais capacidade de organização por conta da internet.”

Deixo-vos com ele. Um país visto de fora por um intelectual brilhante pode acrescentar mais clareza a quem vive o concreto e dele tem mais dificuldade em se abstrair.

Há uma insatisfação com toda a classe política. E isso não significa que se acredite que todos os políticos sejam corruptos, mas sim que há uma classe política que está separada da cidadania, que é formada por profissionais que têm um interesse comum: o monopólio da política da corrupção.”

No Brasil está ocorrendo a tempestade perfeita. Junto a essa crise de representatividade, uma piora da economia. Houve um período de bom crescimento com redistribuição. Mas a desaceleração da China fez com que ficasse difícil manter o mesmo alto nível de gasto público. E então ressurgiu a inflação, que já sabemos que foi um câncer para a economia e a sociedade brasileira em outras épocas.”

Um protesto pela dignidade inclui a luta contra a pobreza, mas é algo mais. É a tradução dos direitos humanos na consciência individual. Seja na favela, seja como um profissional ou empresário, os indivíduos não sentem mais que as instituições os representam.”

Os protestos de 2013 e 2015 “em comum têm a denúncia da corrupção e o sentimento de que há demandas dos cidadãos que não podem se expressar nos atuais sistemas políticos.”

O movimento de 2013 era popular, jovem, e partiu de demandas concretas, mas imediatamente levantou o tema da dignidade.”

Já em 2015, é a classe média e média alta quem vai às ruas. E chegou-se a pedir a impugnação da presidente. O grupo que pede um golpe de Estado é pequeno e considero impossível que isso ocorra. Mas o que é significativo é a existência de cidadãos e políticos que o queiram.”

As instituições clássicas não são capazes de representar a diversidade da sociedade. Às vezes é pela esquerda, às vezes pela direita, às vezes são jovens, às vezes são de idade madura, mas o comum a todos é que não crêem na possibilidade de representação institucional, têm de conectar-se pela internet e sair às ruas.”

A comunicação social estava monopolizada até hoje ou pelo poder político, ou pelo poder econômico. Agora, a internet permite às pessoas comunicar-se diretamente sem passar por esses controles, e sem passar por qualquer censura. Ainda que se queira controlar a internet, não se pode.”

Eu não creio que no Brasil, com a internet, exista mais agressividade no debate. O Brasil sempre foi agressivo. Nos tempos da ditadura, no final dos anos 60, anos 70, o debate não só era agressivo como se torturavam pessoas diariamente com impunidade. A imagem mítica do brasileiro simpático existe só no samba. Na relação entre as pessoas, sempre foi violento. A sociedade brasileira não é simpática, é uma sociedade que se mata. Esse é o Brasil que vemos hoje na internet. Essa agressividade sempre existiu.”

A única coisa que a internet faz é expressar abertamente o que é a sociedade em sua diversidade. Trata-se de um espelho. Como hoje não precisam passar pelos meios tradicionais de comunicação, as pessoas aparecem como realmente são.”

A pergunta fundamental é: a liberdade é um bem em si? Se dizemos que sim, então a internet é uma tecnologia de liberdade, e portanto realiza uma mudança histórica. Mas é preciso aceitar que liberdade é também para coisas de que não gostamos. É para todos. Portanto, se ali se articulam formas de violência, racismo, sexismo, é porque isso existe na sociedade.”

Na internet, um racista ou um sexista pode facilmente encontrar outros racistas e sexistas que, em seu entorno social, não podem se declarar abertamente assim. Na rede, não há constrangimento e se abre a possibilidade de expressão espontânea da sociedade. E o que ocorre? Nos damos conta que a sociedade não é tão boa e angelical como gostaríamos que fosse. Vemos que, na verdade, a sociedade é bastante má. No Brasil e em todos os outros países.”

A internet é agnóstica, expressa o que somos. E o que somos depende da cultura.”

No Brasil, a desigualdade diminuiu, mas ainda é muito grande. Há uma imensa riqueza, controlada por 1% da população. Como é que a sociedade não vai estar com raiva? E há, também, um grupo de classe média que está descontente porque se tira deles alguns recursos para redistribuir. Trata-se de uma classe média profissional, que teme perder seus privilégios e que vive melhor que seus pares nos EUA e na Europa. Quem pode ter dois ou três empregados domésticos permanentes, vivendo em casa, ou constantemente indo e vindo? Nenhuma classe média do mundo! Pode-se ver famílias com empregados domésticos em outros países, mas em número pequeno. Empregados domésticos como massa importante, só no Brasil.”

No Brasil, não há Estado de Direito. No Brasil, há uma classe política corrupta que utiliza o Estado para seus próprios fins. Faz isso como classe, ainda que como governantes concretos às vezes não o sejam. No Brasil não há um Estado de Direito, há a manipulação do Estado de Direito para manter um Estado patrimonial.”

6 comentários:

Anónimo disse...

Grande RUI,um abraço.
Sobre o nosso BOTAFOGO,desde o início afirmei que seria uma "baba de quiabo" ganharmos a série B,não devido as nossas qualidades como time,mas graças a má categoria dos adversários.Jogando com garra e disposição,seremos campeões mole mole,embora o amigo e eu tenhamos preferência por outros títulos.
Sobre o CASTELLS,admiro muito o seu trabalho e a sua perseverança ao lidar com a vida e a sua doença.
Sobre os seus comentários a respeito do Brasil,concordo com alguns aspectos e discordo de outros.
Entretanto,o seu último parágrafo define magistralmente a atualidade brasileira.Foi perfeito,e,em poucas palavras,atingiu o cerne da questão que envolve os plenos poderes na pátria tupiniquim.
Saudações gloriosas.JOTA.

Ruy Moura disse...

JOTA, fora a razão maior e menor do MC sobre os assuntos que debate, o que mais me parece interessante na análise sobre a Internet - relativo ao Brasil mas também à internet em geral - é a capacidade de a internet revelar as pessoas, especialmente as que nunca se expõem em sociedade e que, sob a capa de qualquer nickname, ligadas a 'amigos' virtuais, dizem o que dizem mostrando o que são.

Quanto ao 'último' parágrafo, refere-se a qual?

Abraços Gloriosos.

Anónimo disse...

“No Brasil, não há Estado de Direito. No Brasil, há uma classe política corrupta que utiliza o Estado para seus próprios fins. Faz isso como classe, ainda que como governantes concretos às vezes não o sejam. No Brasil não há um Estado de Direito, há a manipulação do Estado de Direito para manter um Estado patrimonial.”

RUI,no texto que você colocou no blog,o último parágrafo a que me referi é o que está acima.
SA,JOTA.

Ruy Moura disse...

Pois... è um parágrafo um pouco assustador e... parece que verdadeiro.

No artigo original Castells considera que Dilma esteve muito próxima de apoiar as manifestações, mas que foi o PT que a travou... [não escrevi isso no texto para não parecer que queria publicá-lo defendendo a Dilma, já que eu penso que a Dilma é melhor [ou menos má] que o PT]

Abraços Gloriosos.

FLAVIO SILVEIRA disse...

o ultimo paragrafo do Castells é perfeito, assim como toda o seu pensamento.

Ruy Moura disse...

E lamento que o Castells tenha razão no último parágrafo, Flavio. Tenho poucas esperanças de em vida ver o Brasil liberto de tantas teias e Portugal regressar à qualidade de vida que tinha em 2000. Supondo que eu possa viver mais 30 anos, é muito pouco para se mudarem os vícios instalados.

Abraços Gloriosos.

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