terça-feira, 26 de maio de 2015

Os conselhos de Otto


por OTTO LARA RESENDE

Ri. Em silêncio, é claro. Aquela cena, embora patética, não deixava de ser engraçada. Parado ali, inerte naquela esquina, eu já vira muita coisa. Desde que meia dúzia de amigos decidiram me homenagear – logo eu, avesso a isso – não me dão sossego. Eu, que em vida nunca busquei a fama, virei nome de largo. Dia desses, cruzei aqui por cima com Max Nunes. O humorista, um das mais doces criaturas que conheci na TV Globo, sabendo que batizo um largo no Jardim Botânico lembrou de uma piada do show que escreveu com Haroldo Barbosa e Agildo Ribeiro. Agildinho, que está entre os três maiores comediantes de nossa história, pegava no pé do Flávio Cavalcanti. “O coitado virou largo. A mulher dele não pode sair na rua que gritam; – olha a mulher do largo, olha a dona larga. Tasca ela”. Max, que chegou aqui há pouco, garante que minha Helena nunca passou por essa constrangimento.

Pois bem! Virei nome de largo. Minha estátua tem direito à mesa, com máquina de escrever. Vivo de pé, com um livro na mão. Há também uma cadeira, refúgio para bêbados, aposentados e vagabundos. A posição não me favorece. Estou de lado, observando carros, ônibus e caminhões. E recebendo poeira por isso. Só noto mesmo quem se aproxima de mim. A única exceção foi o Eduardo Coutinho, por conta da fumaça. Conheci-o ainda no Globo Repórter, sempre criativo, remando contra a mesmice. Vi ali que teria futuro. Mesmo longe da emissora do doutor Roberto. Depois que o pé-sujo – ao lado de um boteco de uma porta só onde a Leila Diniz batia ponto – fechou para dar lugar a um misto de mercado e restaurante – Coutinho não saía de lá. Era ao ar livre, passaporte para seus amados cigarros e sua inseparável Folha de S. Paulo. Tragicamente ele está aqui conosco. Está bem.

Ao escurecer de uma noite de verão, um rapaz se aproximou de mim. Estava com roupas boas, porém sujas, que indicavam uma mendicância de apenas três dias. Segurava uma garrafa pequena de vidro verde, com cerveja pela metade. Pela bafo, devia estar lá pela sexta dose. Não posso precisar porque sempre fui dos destilados. Aparentava uns 30 anos, a mesma idade do braço direito do padre no Asilo da Misericórdia, protagonista que batiza um romance que escrevi. “Estou triste, tristíssimo”, me confidenciou, dando toda ênfase ao superlativo. Voltei a lembrar do meu livro, escrito em forma de diário, que até morrer nunca me contentou. “Neste imenso mundo, todos têm a sua missão. Eu sou apenas um verme na terra, que não vê a luz do sol”, postulava meu personagem.

Ali, inerte, não me senti um verme. Mas era um inútil inanimado, sem voz, incapaz de um ato de bondade. Quanto mais eu me crucificava, mais o rapaz me exigia. “Quero um conselho. Você parece sábio”, observou. Minha estátua – não sei se os amigos mais próximos repararam – guarda uma humildade. Estou encurvado, como se fizesse reverência a tudo. Nunca fui humilde. Fui mineiro. E o jeito pacato e discreto do mineiro se confunde com humildade. Reverência eu pratiquei. Reverenciava meus amigos. Eles estão aqui comigo. Dois deles, o Rubem e o Paulinho, poderiam estar escrevendo essa crônica. Não quis alugá-los, porém. Ia dar um trabalho danado explicar toda a história. Devo confessar que fariam melhor do que eu. Explorariam com lirismo toda a singeleza daquele homem só.

“Não sei por que você está com esse livro nas mãos, se não pode dar conselhos”, me criticou o mais recente amigo. Amigo? Não há mais tempo para novos amigos. E o bêbado pode ter se dado conta de que eu era apenas um escultura esculpida em bronze sabe se lá por quem. Passados mais de 22 anos, difícil me conformar na eternidade, encravada numa praça que é tão passagem que nem as mesas de damas e de xadrez são usadas. Antes de ir embora, o rapaz que implorava por meus conselhos, coitado! deixou cair um chaveiro. Tinha o escudo do Botafogo. “Sou Botafogo desativado. Suspeito que estou assim antes de se desativar o próprio Botafogo”, falei, sem perceber que os placares das últimas notícias não eram bons para o clube. Felizmente ele não ouviu. E fiquei em paz, pedindo a Deus que me guardasse de todo o temor.

PS: Esse texto não é de Otto. É ficção, inspirada em fatos reais e da autoria de Paulo Marcelo Sampaio, in Arquiba Botafogo, 16.02.2015.

Bibliografia: Resende, Otto Lara (2011). O Braço Direito. Editora do Autor, 1963
Resende, Otto Lara. Bom dia para nascer. Companhia das Letras.

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