por PAULO MARCELO SAMPAIO
Arquiba Botafogo, 06.03.2015
Com tão pouco tempo, ela já tinha uma legião de amigos. Como nas tardes no
Engenhão ou no Maracanã, estava de olho no pai. Mais no pai do que no campo.
Porque, para enxergar o jogo, gostava de escutar o que o pai dizia, sempre
otimista. Impossível não notar a sua presença. O primeiro que reparou nela –
faro afiado de jornalista sempre de prontidão – foi Oldemário Touguinhó. A moça
tinha um jeito simples, espontâneo, tão comum dos subúrbios cariocas. E isso
atraía aquele repórter de olho enviesado. Era simples como Laís. Não perdeu
tempo. Antes que um aventureiro chegasse, logo se apressou. “É muito nova pra
estar aqui”, pensou em voz alta, fitando a negra, elegante e de sorriso fácil.
Laís escutou o comentário. “20 anos!”, ela respondeu, sem o menor sinal de
tristeza. E se aproximou de Oldemário. Aquilo o constrangeu.
Logo, logo, o velho repórter se recompôs. Pediu um trago do cigarro de João
Saldanha, que pigarreava a seu lado. Sim, Saldanha ignorava o enfisema e
voltara a fumar. “Não vou morrer de novo. Pra que me poupar então?”, brincava,
para desespero do velho Nova Monteiro, médico das antigas do Botafogo. “Esse é
o Saldanha de quem meu pai fala tanto?”, perguntou Laís. “Já vi tudo. O céu
ganhou mais uma botafoguense. Acertei?”, perguntou Oldemário. A moça sacou uma
camisa da mochila. E tirava no bolso da frente da jaqueta um bloquinho. Queria
um autógrafo do inventor das feras da seleção. Oldemário achou graça. E lembrou
de uma das raras entrevistas que fez longe da editoria de esportes. Com Chico
Xavier. Daquela estada em Uberaba aprendera que há pessoas que não precisam de
muito tempo na terra para fazer o bem. Quando isso acontece, resumiu
rapidamente, as pessoas – muito especiais – são chamadas para outras paragens.
“Você está nesse time, na paragem de cá”, avisou o repórter. Laís fechou os
olhos. Suspirou. E sorriu. “Se eles souberem disso, ficarão bem”, observou
Laís, lembrando do pai, da mãe, do irmão, dos avós, das tias, dos primos e de
seus amigos.
O nono dia de Laís no céu estava agitado. Porque sabiam que lá em baixo era
dia de clássico: Botafogo x flamengo. No café da manhã, Nilton Santos e Zizinho
ignoravam a rivalidade e dividiam um pão na chapa. Queriam manter a forma
esbelta. Na mesa do lado, Berg e Figueiredo, que travavam batalhes memoráveis,
preferiam vitaminas de banana com aveia. Em frente, Maurício Torres peruava,
tietando Oscarito, Max Nunes e Dercy Gonçalves. Mas estava mesmo de olho em
ex-jogadores. Queria acender uma polêmica para colocar na resenha “Meio-Dia no
céu”, programa vespertino na ZYJ 850 Rádio Divina. Roberto Porto preferia a
conversa dos antigos. Papeava com Pampolini e Almir Pernambuquinho. A
recém-chegada não sabia pra onde olhar. Se virasse para um lado, via Rocha, com
a indefectível cabeleira sarará; se virasse para outro, via João Saldanha
trocando insultos – na maior amizade – com Sandro Moreyra. Quem botava panos
quentes era Armando Nogueira, que conhecia bem o temperamento dos dois. Luís
Mendes e Garrincha riam da situação.
Dali em instantes chega Oswaldo Sargentelli, todo simpatia. “Nem vem que
não tem, Sargento. A menina é moça séria”, advertiu Oldemário. “Longe de mim
pensar num negócio desses”, se defendeu o dono do Oba Oba. “É que eu soube que
acabava de chegar por aqui uma poliglota. Ela pode ser minha intérprete nos
contratos que fecho para shows em céus estrangeiros”. Laís sorriu aquele
sorriso que encantava todo mundo. “Pois é! Participei da Jornada Mundial da
Juventude, na visita do Papa Francisco ao Rio”. Laís continuou a explicar. Com
as amigas Stefania e Gabriela, da Comunidade de Santo Egídio, ajudava a fazer a
alegria para meninos e meninas de rua, sem eira nem beira. “Na minha missa de
sétimo dia, a Stefania disse que eu ofereci meu tempo, meu sorriso, meu canto,
meus conselhos engraçados. Mas se ofereci algo especial como tantos dizem,
recebi carinho em dobro.”
Assim como não quer nada, uma senhora de cabelos grisalhos, rosto um pouco
inchado, se aproximou, atraída pela camisa do Botafogo que Lais vestia. “Meu
filho também é Botafogo. E por minha causa”, explicou Elena. E sacou da
carteira uma foto Sirota 3×4. “Ih, esse aí é amigo do meu pai”. Em silêncio, se
abraçaram. A menina então se deu conta que o jogo ia começar. Era difícil; e
ela logo lembrou de um verso que escrevera cinco anos antes. “Nessuna strada è
troppo/longa e nessuna montagna troppo alta/per cli ha la voglia de fare.”
Lembrou de um acampamento que fizera em Roma. “Minha mãe me disse que um dos
coordenadores me chamara de ‘tosta’, valente. Por mais que eu precisasse, não
pedia ajuda”. Laís sorriu com a própria declaração. “Imagina, Paulinho
Valentim, nosso time com a disposição dessa menina”, observou Quarentinha.
Ia começar o jogo. Antes disso, um minuto de silêncio em homenagem à Laís.
Com direito a nome no placar eletrônico. “Por essa eu não esperava”, pensou a
menina. “Lá em baixo um pai chora”, informa Maurício Torres. Jogo truncado,
amarrado, nada de grandes emoções. De graça mesmo só o show da torcida nas
arquibancadas. Laís, tão nova e já com tanto tempo de arquibancada, nota uma
vibração diferente. “Em muito menor número, nosso canto é mais forte”. Tarzan e
Russão concordam. “1 a 0! Vamos segurar pelo amor de Nossa Senhora da
Conceição”, pede Carlito Rocha. “Juiz, acaba com isso”, suplica Macaé, o dono
do Biriba, que abana o rabo, agitado. O apito do juiz coincide com as lágrimas
que correm do rosto do pai. Laís cutuca Maurício. “Olha lá, Maurição, eu que nunca
vi meu pai chorar, hoje vi duas vezes. Queria que ele soubesse que estou bem”.
Embaixador olha pro céu com algumas nuvens cinzas. “Essa vitória é pra minha
Tutuca”.
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