Fonte e autoria desconhecida / Reprodução Internet.
«O pavilhão alvi-negro não tremulou a
meio-pau. Com os jogadores de férias e o Maracanã fechado, a torcida não pôde
render-lhe um minuto de silêncio. Os companheiros de todas as horas, os
dirigentes e o Grande Benemérito Carlito Rocha (ainda vivo na ocasião) velaram
o seu corpo no salão nobre do Botafogo, naquela tarde quente de 16 de janeiro
de 1976. Morreu de velho, disseram alguns. Que nada, foi de coração, acentuaram
outros. Mas os amigos chegados diagnosticaram a morte com uma só palavra:
tristeza. Por ver o estádio do clube, sua casa, ruir ante a força das
picaretas. Deixou no quartinho úmido, embaixo da arquibancada, umas mudas de
roupas, um caderno com recortes de jornais e fotos amareladas. Mas o seu legado
maior, herança de todos, ficou na memória de muitos que consideravam Neném
Prancha um filósofo:
“O futebol é simples: quem tem a bola, ataca;
quem não tem, defende. “Pelo nome completo – Antônio Franco de Oliveira –,
pouquíssimas pessoas o conheceram. Com certeza, só mesmo os funcionários do
Departamento de Futebol e Regatas, ao qual dedicou 34 ano. Pelo apelido, muito
o identificavam como frasista do futebol. No entanto, duvidavam da sua
existência, classificando-o como um personagem criado por um cronista esportivo
ou simplesmente uma lenda do folclore do futebol. Era um desconhecido. Mas quem
desejasse vê-lo, bastava ir até à praia de Copacabana. Com certeza o
encontraria nas tardes de sábado, em frente à rua Constante Ramos.
Estaria sentado num banco. Os cotovelos
apoiados nas pernas e o rosto envolvido pelas enormes mãos – “23 centímetros de
comprimento”, orgulhava-se em revelar. Seguramente teria na cabeça uma boina
ou, dependendo do tempo, um chapéu de naylon, ocultando a carapinha
acinzentada. O rosto mulato, crestado pelo sol e vincado pelos anos, revelava
pelos olhos escuros uma paciência infinita. Para sustentar o corpo alto e
forte, pés largos e compridos calçados com sapatos baratos número 43. E a vista
estaria perdida no acompanhamento de uma bola correndo pela areia. Caso isso
não bastasse para identificá-lo, prestasse atenção. A qualquer instante alguém
lhe dirigiria um cumprimento.
– Boa tarde, “Seu” Neném.
Esse apelo trouxe do berço, de Resende, onde
nasceu a 16 de junho de 1906. Lá, chutou as primeiras bolas quando o trabalho
deixava. A família cultivava a terra, e o pai sempre solicitava os filhos
homens (sete) para ajudá-lo na lavoura. Se folgava na roça, a mãe o convocava
para as tarefas domésticas, auxiliando as duas irmãs. A escola, poucas visitas
– “cadê que tinha tempo”. Mas a memória do velho guardava imagens fixadas pelo
menino. “Morava num lugar coberto de verde, cheio de Árvores. Muito bonito tudo
aquilo.”
O pouco dinheiro colhido da terra, obrigou a
família a se mudar para o Rio de Janeiro. A Capital Federal atraía migrantes,
na esperança de emprego. “Era o fim da I Grande Guerra”, lembrava-se sem muita
convicção. Instalaram-se em Copacabana, “com poucas casas e pouca gente e um
mundo de areia na frente do mar”. O Pai logo “se arrumou” numa casa. Os filhos
tiveram a mesma sorte. Neném passou a morar na Rua Bolívar, 90. “Ali viviam uns
parentes do dotô Edmundo Bittencourt, dono do jornal Correio da Manhã”.
Afazeres leves para o menino forte – ajeitar o jardim, carregar isso pra lá e
trazer aquilo pra cá. Quando folgava, se largava na praia. Perseguia a bola sem
correria, com maestria.
“Quem tem de correr é a bola. Do contrário,
era só fazer um time com 11 batedores de carteira.”
O tempo passou. O garoto virou homem. Mudou
de emprego. Trabalhou na construção de casas e dos primeiros prédios de
apartamentos do bairro. O serviço ficou pesado: virar concreto. Lembrava com
carinho e orgulho de ter participado da edificação do Copacabana Palace Hotel.
“Só se mexia com material de primeira. Tudo feito direitinho. Levou tempo, mas
tá aí até hoje. Não é bonito?”
Ma ele se realizava mesmo era jogando futebol
na praia. O talento lhe deu fama e dirigentes dos clubes tentaram convencê-lo a
calçar chuteiras. Só jogou uniformizado completamente pelo Carioca, um time da
Gávea. Isso em 1932. Formou zaga com Domingos da Guia – “como sabia de bola” –
que aguardava transferência do Bangu para o Vasco. Terminou e começou aí a
experiência como “jogador de campo”. Não queria sujeitar-se a compromisso.
“Futebol era diversão, jamais obrigação.” Preferia divertimento na areia.
Vencer Liverpool, Atlântico, Guarani e Dínamo em vez de derrotar Fluminense,
Flamengo e América, jamais o Botafogo. De quando em vez botava chuteira para
jogar nos campinhos da Zona Sul – “tinha um muito bom lá no final do Leblon, na
subida da Avenida Niemeyer”.
O que gostava mesmo era dos “rachas” com a
turma do Posto 6, mais tarde nome de time. Nele jogavam Pirica, Jaime,
Aristide, João Saldanha, Sérgio Porto, Gildo Borges, Haroldo e Heleno, o Heleno
de Freitas, “bom de bola, meu grande amigo”. Mostrava uma foto para garantir a
verdade. Nela, estão todos. Neném, o mais velho, cercado pelos amigos. Os
mesmos que, ao verem seus pés e mãos enormes, passaram a chamá-lo de “Prancha”,
contra a sua vontade. “Eu só calço 43”, dizia “um tamanho normal. O Manga,
aquele goleiro do Botafogo, calçava 45 e ninguém achava o pé dele grande”.
Jogava de beque central e, às vezes, de
centroavante, “marcando gol de tudo que era jeito”. Nas peladas, contava sem
modéstia, o vencedor do par-ou-ímpar o escolhia. “Eu fui cobra”, alardeava.
Macaé, um amigo antigo, confirmava a história para acrescentar em seguida: “Mas
como era mascarado”. “Tinha a mania de prender a bola no pé”, prossegue, “e ria
dizendo pros outros que aquilo era coisa de craque”. Ninguém concordava e
acrescentava mais uma vantagem: “E quando diziam que eu ia jogar, alguns
adversários faltavam, dizendo que estavam machucados. Mentira, era medo de
levar um drible meu”, Macaé sorria.
“Para o cobra, a bola é redonda e dócil; mas
é escorregadia e traiçoeira para o perna-de-pau.”
Do futebol não gostava apenas de jogar. Ias
aos campos ver as modas e os craques. Encantava-se com a categoria de Genaro,
Abelardo, do paulista Nece, Fausto, Feitiço, Palomoni, Martim Silveira. “Aquilo
parecia uma festa. Todo mundo se vestia direitinho para assistir um match”. Neném
estava no meio do povaréu. Olhos atentos na bola e na maestria dos ídolos.
Torcia pelo Botafogo, “meu time desde nascença, porque sou preto por fora e
branco por dentro”. A essa paixão ele retribuía encaminhando para a rua General
Severiano os meninos da praia. Heleno foi um deles, a quem convenceu trocar o
tricolor pelo alvi-negro.
(CONTINUA)
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