por VICTOR FERREIRA MARTINS
Excertos de Trabalho Monográfico para
obtenção do título de bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal
Fluminense; Niterói, 2014
Introdução
Este
trabalho tem o intuito de mostrar, como o Fluminense Football Club e o Botafogo
de Futebol e Regatas, dois clubes cariocas surgidos em um mesmo cenário
histórico, durante a belle époque
carioca, cujos participantes eram oriundos de “boas famílias” distando apenas 2
km um do outro, acabaram por criar concepções, estilos de jogo e simbologias
diferentes, e como isto se relaciona aos ídolos que cultuam e com o estilo de
jogo que apreciam.
Se o
esporte, é uma “guerra sem tiros”, como afirmara Orwell (GIULIANOTTI, 2010, p.
179), o “clássico vovô”, nome dado ao clássico jogo entre Fluminense e
Botafogo, representa não apenas uma rivalidade esportiva, mas também a
rivalidade estética e social existente desde a gênese do dérbi. […]
Representações e simbolismos em torno do
Botafogo de Futebol e Regatas
[…] O
Botafogo Football Club surgiu em um momento em que já existia um clube
localizado na região, dedicado ao remo, o Clube de Regatas Botafogo, o que
causaria incidentes entre as duas agremiações até 1942.
O
Botafogo […] surge como um clube formado por garotos, em comparação com o
Fluminense, como relata Mário Filho na sua crônica “O Clube da Capa e Espada”
(1956):
“O
único clube rapaz é o Botafogo. Explica-se: foi o único clube que nasceu rapaz.
Os outros, pelo menos, procuraram nascer homens. Já o Botafogo teve a
preocupação de ser o oposto do Fluminense, que era o homem-feito. […] O
Botafogo, pelo contrário, só precisou de uma apresentação ao Fluminense para
virar clube. […] Diante do Fluminense, eles se sentiram, logo e logo, Botafogo”
(p. 74).
Podem
ser observadas na citação, a belicosidade e a rivalidade presentes já na gênese
do Botafogo, em relação ao Fluminense. Ainda que fosse um clube surgido em um
bairro rico da Zona Sul, com participantes da elite carioca, se diferenciou do
Fluminense principalmente por ter sido formado como uma brincadeira de adolescentes
que queriam praticar aquele esporte peculiar trazido da Europa. Mattos (1997)
destaca o traço juvenil que se observava igualmente na postura de seus
jogadores. Em comparação ao trato aristocrático dos clubes naquela época, de
resolver as coisas cordialmente, o Botafogo apresentava um comportamento mais
transgressor e indisciplinado. Foi um dos últimos clubes a aceitar o
profissionalismo crescente no futebol carioca, abandonou um campeonato por uma
punição feita a um jogador de seu time, além das brigas em campo e
obscenidades, para o padrão da época, cometidos por Heleno de Freitas,
conhecido como “bad boy”.
A
decadência do bairro de Botafogo, deixando de ser aristocrático para ser um
bairro de passagem, também impactou o clube. Cláudia Mattos ao comentar sobre
essa elite decadente que formou o Botafogo usa o termo “elite irresponsável”,
de Umberto Eco, que define como:
“No
termo irresponsável não há um tom pejorativo. Usado aqui apenas como uma
apropriação de uma definição dada por Eco, por elite irresponsável está se
entendendo uma parcela da população com poder formador de opinião. Esta elite,
obviamente, não se constituiu somente dos moradores de um Botafogo classe alta
do início do século. Constituiu-se também por aqueles que se identificaram com
a trajetória errante do Botafogo, que viveu o esplendor da zona sul, mas que
conheceu também a vida de subúrbio e que, com isso, teria tido mais do que
qualquer outro clube uma visão da realidade da vida no Rio de Janeiro”.
(MATTOS, 1997, p.109).
Para
a autora, este contexto fez com que o Botafogo, clube de um bairro em um
momento de transição e mudança de seu padrão social, assumisse para si essa
imagem de rebeldia e com mais “street smart”:
“[...]
A elite irresponsável do Botafogo adquire, assim, seu lado bobo da corte,
bufão, ao mesmo tempo parceira do poder e perturbadora da ordem, fruto de uma
intelectualidade criada muito mais com o ponto de vista das ruas que o das
instituições. Estes formadores de opinião cariocas não nasceram das teorias da
academia, mas de um ponto de observação empírico das ruas, portanto, de certa
forma, livres da esfera de dominação institucional da elite política e
econômica e, ao mesmo tempo, fascinados por uma rebeldia popular” (MATTOS,
op.cit., p. 112).
Além
desse “street smart” atribuído ao botafoguense, resultado de uma
intelectualidade formada mais “pela observação empírica das ruas” do que pelas
teorias acadêmicas, associa-se o caráter supersticioso como um comportamento
típico. As superstições acabam por surgir das experiências cotidianas,
fornecendo um conhecimento daquilo que causaria sorte ou azar ao clube. Uma
imagem recorrente que circula nos meios futebolísticos o define como um
torcedor cheio de manias, vestindo a sua camisa da sorte, não fazendo certos
rituais, como entrar no estádio com o pé esquerdo, e assim por diante.
A
superstição é marca histórica daquilo que se denomina como “rebeldia alvinegra”
em relação ao establishment e
interessada nos conhecimentos advindos da experiência individual. Uma espécie
de mito de origem é o caso de Carlito Rocha, apegado às suas superstições,
associou a fuga do cachorro de um dos jogadores do Botafogo, Macaé, à vitória,
de virada, sobre o adversário. Naquele momento, o fato do cachorro correr pelo
gramado é traduzido, lido, interpretado como a capacidade da equipe para virar
o jogo, fazendo surgir, assim, o mito fundante da superstição botafoguense: o
do cachorro Biriba, que assistia aos jogos com Carlito Rocha, presidente do
Botafogo à época, por crer que a presença deste trazia sorte à equipe.
Em
termos típico-ideais, o alvinegro, aparece como […] descrente da ciência e
afeito ao culto da sua personalidade em que, ele próprio, tem o poder de ganhar
ou perder o jogo (MATTOS, 1997, p. 116).
Mas
que categorias os botafoguenses utilizam para expressar sua identidade
clubística? Que valores e representações nutrem sobre seus ídolos e sobre o
modo como o futebol deve ser praticado? Os torcedores entrevistados fornecem
algumas pistas. […]
[Em Nilton
Santos] se observa uma característica presente no imaginário a respeito do
Botafogo e valorizada pelos torcedores, a do “espírito rebelde”, expresso pela
desobediência às ordens superiores, assinalando a autoconfiança de que o que
fará vai dar certo, como destacou Mattos (1997). O temperamento forte,
intempestivo do jogador, botafoguense assumido, acabou sendo visto como um
reflexo do comportamento da torcida em campo. Outro exemplo da sua atitude contestadora
que recusa aceitar ordens ocorreu no triangular final do Campeonato Brasileiro
de 1971, em jogo contra o Atlético Mineiro, quando Nilton Santos, então
dirigente do clube, desferiu um soco no juiz Armando Marques, derrubando-o das
escadarias do Maracanã. Não foi a primeira vez que Nilton se desentendeu em
campo indo “às vias de fato” já que, na chamada “Batalha de Berna”, episódio
violento da partida entre Brasil e Hungria pelas quartas-de-final da Copa do
Mundo de 1954, na Suíça, quando a Hungria de Puskás venceu o Brasil pelo placar
de 4-2. A briga entre Nilton Santos e Bozsik fez com que ambos fossem expulsos
de campo, transformando a partida em uma praça de guerra, em que confrontaram
comissões técnicas, jogadores e todos que estavam no local.
Portanto,
é possível ver que Nilton Santos, além de simbolizar a técnica, o virtuosismo,
revela o comportamento intempestivo, de certo modo inconseqüente, representado
pela briga que chega às “vias de fato” para defender o clube. Manifesta,
também, uma postura valorizada e associada à história de constituição do
Botafogo como um clube de comportamento rebelde.
Outro
ídolo admirado é Garrincha, talvez o jogador mais citado como símbolo-
referência da “identidade botafoguense”, que congregaria tanto as qualidades da
habilidade técnica quanto as conquistas que obteve. Jogador de origem humilde,
com físico que poucos considerariam apto a jogar futebol graças às pernas
tortas, que posteriormente viriam a consagrá-lo, se notabilizou principalmente
pelo estilo de jogo driblador e, muitas vezes, jocoso. Comumente é lembrado
como o jogador que driblava o oponente, esperava-o levantar-se e o driblava
novamente. Pode se comparar este estilo de jogo, e especialmente o significado
do drible, com a ideia de Simmel (2006) do momento em que o valor, se
automatiza transformando-se em valor para si mesmo. […]
Isto
é, para Garrincha, o drible não era um recurso técnico utilizado com vistas ao
gol ou a uma assistência. Ele não possuía valor de utilidade direta para o
jogo, configurando-se muito mais como o drible pelo drible. Nesta estratégia,
outros elementos pareciam centrais: a diversão de ver o oponente cair no chão,
o desespero do adversário, as risadas dos torcedores e o próprio prazer.
Este
caráter dionisíaco, do jogo instintivo, caótico, emocional que Garrincha
manifesta com sua habilidade técnica, se relaciona diretamente com os ideais de
uma conduta rebelde e quase anárquica presentes no imaginário sobre o clube
alvinegro desde sua formação. Tal estilo acabou repercutindo sobre o Botafogo
popularizando-o e chamando a atenção do mundo. Na categoria “conquistas”
atribuídas à Garrincha está presente o reconhecimento de que ele retirou o
clube de uma espécie de desconhecimento/anonimato alçando-o ao posto de
mundialmente conhecido. Não apenas pelo êxito no Botafogo, mas particularmente
pelo êxito na Seleção Brasileira, participando da conquista dos títulos de 1958
na Suécia, e de 1962 no Chile, projetando o Botafogo como um time de jogadores
de extrema técnica. Como atestam algumas das respostas:
“Garrincha
representa uma era de vitórias e de futebol-arte. […] Foi importante não só
para o clube como também para o Brasil. […] Muita gente que o viu jogar, o
considera melhor até mesmo que Pelé. Internacionalmente, a marca Botafogo é
muito associada à ele”.
“Garrincha,
porque mudou a história do Botafogo e o colocou no mapa do mundo”.
Além
disso, a irreverência é algo que também marca o culto a Mané, presente em
muitas frases atribuídas a ele, geralmente desmerecendo um campeonato ou não
levando o mesmo a sério, com uma argumentação até certo ponto inocente. […]
Os
torcedores alvinegros também destacaram a importância dos ídolos na relação de
amor clubístico incondicional que manifestam, porém diferindo dos tricolores
justamente na concepção sobre a técnica.
A
técnica, para o Botafogo, possui um caráter mais dionisíaco, emotivo, livre, em
oposição ao primado da forma e profissionalismo, que aparecem no Fluminense sob
uma dimensão apolínea, da objetividade e do controle. Também foi possível notar
a diferença no estilo de jogo preferido. Para o tricolor, é mais valorizado um
time que se esforce, e dê seu sangue em busca do objetivo da vitória. Isto
parece relacionar-se às concepções de auto-sacrifício muito arraigadas nas
narrativas sobre seus ídolos. Os alvinegros, em contrapartida, mostraram
preferir um jogo mais solto, ofensivo, com mais liberdade técnica, marcada
pelos dribles.
Fonte:
https://www.academia.edu/43208383/PERTENCIMENTO_CLUB%C3%8DSTICO_ESTILO_DE_JOGO_E_IDOLATRIA_Representa%C3%A7%C3%B5es_e_Simbolismos_em_torno_do_Fluminense_Football_Club_e_do_Botafogo_de_Futebol_e_Regatas