[Pré-nota de Mundo Botafogo:
Escrevi este texto no dia em que Josep Guardiola anunciou a sua decisão de
abandonar a liderança da equipa do Barcelona, mas duas razões fizeram-me
adiá-lo: (1) o assunto era ainda muito ‘quente’ e eventualmente o artigo
despertaria emoções excessivas que não seria o meu objetivo; (2) as publicações
ilustrativas da conquista da Taça Rio pelo Botafogo tornaram-se mais
importantes. Publico o artigo sem alterar sequer uma vírgula, o que significa
que os acontecimentos seguintes no futebol espanhol não mudaram o meu
entendimento, e até o reforçaram após assistir a alguns programas nas TV do
Real Madrid e do Barcelona que anunciam implicitamente o declínio da ‘era
catalã’.]
Josep
Guardiola (‘Pep’) e José Mourinho (‘Mou’) são indiscutivelmente os dois maiores
treinadores de futebol do século XXI, tendo ganho ‘simplesmente’ mais de 30
títulos enquanto treinadores nos últimos dez anos.
Quando
José Mourinho foi campeão europeu pela segunda vez em seis anos, comandando a
Internazionale, em Espanha encontravam-se CR7, Messi e Pep. Estes três e
Mourinho são apenas os dois melhores treinadores do mundo e os dois melhores
futebolistas do mundo – ganhando as premiações internacionais individuais dos
últimos anos destinadas aos melhores do mundo.
Mou
foi muito instado a continuar na Internazionale, mas fez o mesmo que no FC
Porto: as finais da Liga dos Campeões Europeus foram os seus últimos jogos pelo
clube italiano e pelo clube português.
Mou
preferiu ir para o Real Madrid, apesar de saber que o Barcelona jogava um
futebol de arte e eficácia, e que teria pela frente Pep e Messi, além de
Iniesta, Xavi e mais uma quantidade de craques. Preferiu ir para o Real Madrid
apesar de saber que Jorge Valdano dominava o futebol do clube e que Raúl
dominava o balneário e já despedira muitos treinadores antes.
Pois
bem, Mou gosta do que é mais difícil e desconhece limites. Ele sabe que é
fazendo o mais difícil que nos conseguimos impor seja em que atividade social
for; apostou que relançaria o melhor clube de futebol do século XX na senda dos
triunfos que há uns anos perseguia e que se tornaria o treinador mais ganhador
de todos os tempos.
Mou
entrou no Real Madrid tecendo grandes loas ao atleta Raul e respeitando muito Jorge
Valdano, porque sabia que o poder estava com eles e não consigo próprio. Mas
desde logo Mou tratou de jogar em todos os tabuleiros como é seu costume,
porque as vitórias e os títulos terminam conquistados em campo, mas começam
sempre a tomar forma longe do campo.
Em
menos de quase nada Mou conseguiu que o Real dispensasse o seu ídolo máximo e uns
meses depois também logrou afastar Jorge Valdano e fechar o ano com a 1ª taça
(Copa do Rei), reforçando o seu poder no departamento de futebol e preparando a
equipa para no segundo ano quebrar a hegemonia do Barcelona e ganhar o
campeonato espanhol.
Para
obter tudo isso era necessário, também, desgastar o clube Barcelona e o seu
treinador Pep. Na verdade, Mou tinha como orientação central arrumar a casa merengue
a partir de dentro e desarrumar a casa do principal adversário a partir de
fora. Era uma tarefa muito difícil, mas para Mou não há tarefas inalcançáveis.
É, aliás, a dificuldade das coisas que o estimula, porque ele poderia ser
tranquilamente o treinador da seleção de Portugal ou de Inglaterra, mas não
quis, argumentando que necessita de remexer a sua adrenalina domingo a domingo.
Uma
das novidades que trouxe ao futebol mundial foi mudar o estilo das conferências
de imprensa após os jogos; na verdade, ao falar do jogo que terminara há uns
minutos, Mou preparava imediatamente o jogo seguinte através de argumentos
inesperados e ‘alfinetadas’ aos adversários.
E
durante dois anos foi isso que Mou fez: domingo a domingo alfinetava o
Barcelona e em especial o seu treinador Pep, de quem conhece bem os pontos
frágeis a ‘alfinetar’ – porque os jogos de futebol começam a ser ganhos antes de
começarem. Mentalmente e lucidamente fortíssimo, Mou conhece bem o pugilismo e
sabe que quando não se consegue vencer por nocaute tem que se vencer pelo continuado
desgaste do adversário.
Mou
vai ganhar o campeonato espanhol [quando escrevi o artigo o Real Madrid ainda
não era campeão espanhol, concretizando anteontem o seu 32º título nacional],
quebrando a hegemonia do Barcelona e vai reforçar todo o seu poder no Real
Madrid, que já garantiu um novo contrato por dois anos com o treinador,
melhoria dos vencimentos da equipa técnica de Mou e mais poder, ficando
provavelmente com a acumulação do cargo de diretor do futebol.
Esta
foi uma nova vitória de Mou, que muitos davam como certo transferir-se para o
futebol inglês devido às suas insinuações, mas que não eram mais do que uma
nova jogada política do brilhante técnico dentro e fora de campo. E o Real
Madrid jogou também politicamente, porque ao anunciar que apostava todas as
fichas no ‘projeto Mourinho’ para mais dois anos, abalou o Barcelona e o seu
comando técnico, que há três anos não tinham nenhuma oposição às constantes
vitórias em solo espanhol.
Em
suma, as múltiplas jogadas políticas, os desgastes mentais e a falta de
vitórias – que se adivinha serem cada vez mais difíceis de obter – levaram Pep
a sair, sem ganhar quer o campeonato espanhol quer a Liga dos Campeões
Europeus, que constituíam os dois grandes objetivos fixados para a temporada
2011-2012.
E
o anúncio da sua saída foi acompanhado pela perplexidade causada pelas suas
declarações: “Não
sei o que dizer ao grupo. (…) Tenho muitas emoções e pouca clareza para
analisar algumas coisas.”
Em
vez de assumir a força dos títulos que conquistou e do futebol que construiu no
Barcelona, herdando uma linha de arte futebolística que vinha dos tempos de
Cruijff, Pep mostrou-se, nas suas próprias palavras, emocionalmente baralhado –
como se perder uma semifinal representasse o apocalipse – e incapaz de mostrar
um rumo à equipa que liderava.
A
demissão surpreendeu muita gente, e Muricy Ramalho expressou-se surpreendido
pela demissão de um homem que “montou uma equipe que joga um futebol bonito,
para a frente, de gols e variações táticas.” E sublinhou a sua perplexidade: “Ele
conquistou um número de títulos muito grande. É difícil demais alcançar isso. É
de se estranhar quando um treinador na Europa decide sair do clube assim.”
Concordo
com Muricy: que treinador na Europa se demite sendo um vencedor e considerado
um mito no seu clube de sempre? Porque ganhou títulos demais?! Porque esteve lá
muito tempo?!
Esse
é um argumento de Pep: “Quatro anos como treinador do Barcelona é uma
eternidade, um enorme desgaste.”
Se
quatro anos são “uma eternidade”, o que terá sido para o grande responsável das
mudanças revolucionárias ocorridas em Barcelona, Johan Cruijff, os oito anos em
que treinou o clube entre 1988 e 1996? E como se designará essa “eternidade”
para Arsène Wenger, que é treinador do Arsenal desde 1996?! E que dizer da
“eternidade” de Alex Ferguson, que treina o Manchester United desde 1986?!
Não,
não foi uma eternidade – foi desgaste! E que desgaste terá sido esse se Pep foi
somando vitórias e títulos uns a seguir aos outros?
Há
uns dias Scolari disse que “a única coisa má na vida do Cristiano é o Messi. Se
não fosse ele, era o melhor do mundo por cinco anos seguidos.” Scolari poderia
agora acrescentar que “a única coisa má na vida do Pep é o Mou.”
Enquanto
Mourinho atacou e desgastou Pep fazendo crescer o Real Madrid em dois anos
apenas (taça 2011, campeonato espanhol 2012 e semifinal da Liga dos Campeões
2012), Pep fugiu ao combate direto com Mou, foi desgastado e viu o Barcelona a
decrescer, não conquistando os títulos esperados na temporada e mostrando um
futebol sem outras soluções criativas do que as que mostrara antes.
Foi
por isso que Pep acrescentou, ao demitir-se que “já não posso dar à equipa o
que ela precisa.”
Na
verdade, Pep mostrou que o desgaste mental da guerra de palavras protagonizadas
por Mou – mind games que fazem parte
da estratégia do técnico português fora de campo – o afetou, esquivando-se
sempre a enfrentá-lo por palavras e nunca argumentou à altura do adversário. Quem
ataca marca gols, quem defende toma gols.
A
imprensa espanhola fala em ‘viragem de ciclo’ e há quem defenda que Pep não
digeriu o último desaire para os merengues, tendo a eliminação da Liga dos
Campeões reforçado essa ‘indigestão’ e Pep ‘atirou a toalha ao chão’, temendo
que Mou ganhe os títulos mais importantes na próxima temporada e ofusque o
brilho destes quatro anos gloriosos dos blaugranas. Lembremo-nos que foi Mou
que bateu o campeão europeu Barcelona nas semifinais da Liga dos Campeões em
2010, na final da Taça do Rei em 2011 e em Camp Nou no Campeonato Espanhol em
2012 – e Mou sagrou-se vencedor dessas três competições (prevê-se vencer o
campeonato espanhol deste ano).
O
Pep lutador em campo quando era futebolista não corresponde à mesma capacidade
mental para suportar a pressão constante do adversário domingo após domingo.
Esse desgaste é que levou Pep às cordas, porque não fora esse desgaste não há
nenhuma razão para que Pep tenha afirmado, para espanto de todos nós, que “sinto
um vazio. Está na hora de sair. Não tenho qualquer vontade em trabalhar.”
As
características de cada homem devem ser respeitadas, e em Pep ainda mais,
porque é uma pessoa de bom trato, mas as atitudes e as suas consequências são o
que são. Quando a ‘poeira assentar’ e as emoções estiverem mais relaxadas,
surgirá à frente de todos nós o Pep que renunciou ao combate no momento mais
alto das dificuldades – a renúncia de um campeão desgastado.
Antes
de Pep assumir o comando do Barcelona foi debatido no clube se o ex-jogador
deveria assumir primeiro a função de treinador adjunto, preparando-se melhor
para o futuro, ou se estaria já à altura do cargo de treinador principal.
Ganhou esta opção, contrária ao caminho seguido por Mou, que foi inicialmente
adjunto de Bobby Robson e Van Gaal e só então assumiu o cargo de treinador com
experiência acumulada.
Ademais,
Pep beneficou da opção do Barcelona em construir uma equipa em torno de Messi –
atleta organizado e de vida pessoal irrepreensível – e dispensando, para o
efeito, Deco e Ronaldinho Gaúcho, cujas práticas pouco disciplinadas
dificultariam a vida a Pep. Feito isto, Pep tinha tudo para vencer: era o
menino bonito do Barcelona, herdava uma equipa com um futebol vistoso,
livrara-se dos atletas que lhe dificultariam a vida e tinha como símbolo para
vencer. Ninguém esperava Mou na vida de Pep.
Por
tudo isso, o búlgaro Stoichov, antigo companheiro do famoso dream team, disse que o anúncio da
demissão de Pep “é um dia muito triste. Vai-se embora o mito do Barcelona e o último
moicano da era Cruijff”.
Do
combate travado entre os dois ‘monstros sagrados’ de Madrid e de Barcelona um
novo rumo evidencia uma ‘viragem de ciclo’: vai-se o ‘mito’ Pep, fica ‘El
Especial’ Mou.
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