Debaixo de uma chuva de papéis brancos e azuis os
jogadores argentinos abraçaram-se no relvado mesmo ao lado dos cabisbaixos
holandeses. Depois de quarenta e oito anos a Argentina sagrava-se finalmente
campeã mundial. Mas nem todos celebraram. À distância, Jorge Carrascosa, olhava
silencioso para um momento histórico que ele tinha decidido seguir à distância.
Ele, o capitão da albiceleste que tinha preferido ser fiel aos seus ideais
antes de ser campeão do Mundo. (…)
Em 1978 Johan Cruyff não marcou presença no Mundial.
Muitos associaram á época a decisão do holandês com um protesto formal à
ditadura militar que governava a Argentina. Não foi. Cruyff podia ser um homem
de ideais mas nunca abandonaria um torneio por política. Já o dinheiro e a
pressão familiar, era outra coisa. Foram esses os motivos que fizeram Cruyff
manter a renúncia à seleção Oranje do mesmo modo que nenhum outro país sofreu
com renúncias de jogadores para entrar na competição. (…)
O mundo preferiu olhar para outro lado, seguindo a
canção de embalar entoada pela FIFA que era agora presidida por um homem, João
Havelange, que tinha igualmente ascendido politicamente num país governado por
uma ditadura militar. O apoio do brasileiro aos generais argentinos – e aos
espanhóis, que garantiram a organização do Mundial de 1982 antes de se
formalizar o fim do Franquismo – foi determinante, mas estes fizeram o seu
próprio trabalho de casa. Silenciaram toda a oposição e [nomearam] um
reconhecido militante de esquerda, César Menotti, como seleccionador nacional.
No entanto nem todos estavam dispostos a alinhar com o branqueamento político
do regime. Muitos jogadores argentinos indicaram, anos depois da queda da Junta
Militar, que na altura não entendiam que estavam a ser utilizados e que jogavam
apenas pelos adeptos. Nem todos pensavam do mesmo modo. Jorge Carrascosa foi um
deles. (…)
Carrascosa era um lateral fabuloso e um líder de
balneário. O seu carácter era de tal forma impactante que rapidamente foi
nomeado como capitão da seleção à frente de outros pesos pesados como Daniel
Passarella. Era um homem da rua, com uma profunda convicção política, e um dos
mais acérrimos defensores do espírito igualitário no balneário. (…)
Até que os militares chegaram ao poder e começaram a
contactar directamente com Menotti e os jogadores, relembrando-lhes da
importância de um triunfo no Campeonato do Mundo. Para o capitão albiceleste
essa pressão vinda de quem vinha era insuportável. Para ele o futebol não era
uma questão de “vida ou morte” e não podia ser cúmplice de algo assim. (…)
Menotti passou semanas a tentar convencer Carrascosa a
mudar de ideias. Foi até sua casa em várias ocasiões ficando a discutir com ele
até altas horas da madrugada. Mas sempre que o seleccionador tentava desviar o
foco da Ditadura para os adeptos anónimos, Carrascosa coçava a barba e abanava
a cabeça, desiludido por ver como um homem que comungava dos seus ideais
políticos se deixava persuadir pelo sonho da glória desportiva. (…)
Ele era incapaz de participar no que ele entendia ser
uma farsa política por muito que se tentasse desviar a atenção. (…)
Na véspera do dia em que foram conhecidos os 22
convocados finais. (…) Minutos antes de divulgar os nomes [Menotti] voltou a
ligar ao lateral. Do outro lado da linha ouviu pela última vez um não. “Não
posso César”. (…)
O triunfo nos anos oitenta dos regimes democráticos na
América do Sul procurou também as suas referências no desporto mas se o Chile
tinha Caszely e o Brasil a Sócrates e a Democracia Corinthiana, parecia que na
Argentina não havia um só herói que louvar. Carrascosa ocupou, silenciosamente,
o lugar e converteu-se num ídolo emocional para os que queriam esquecer que
todo um país se tinha alinhado com a ditadura para ser, finalmente, campeão
mundial. Um prémio histórico mas que para o veterano lateral era um preço
demasiado caro a pagar pela tranquilidade da sua própria consciência.
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