[Nota Preliminar:
O Mundo Botafogo publicou, em 4 de fevereiro de 2021, uma pesquisa acadêmica de
Henrique Sena, Graduado em História, sobre as tradições esportivas e os usos
políticos do estádio Caio Martins, que viria a ser palco privilegiado do
futebol botafoguense durante um largo período de tempo. Na mesma esteira de pesquisa
apresenta-se hoje uma pesquisa jornalística de Gabriel Andrezo sobre a célebre
invasão militar do estádio de General Severiano (1968) e a inglória firmeza de
Althemar Dutra de Castilho, presidente em exercício do Glorioso à época. Acaso também
queira ler o artigo sobre o estádio Caio Martins basta clicar em Caio Martins: tradições esportivas e usos políticos.]
por GABRIEL ANDREZO | Jornalista e Locutor esportivo.
Passagens por Lance!, FutRio e rádios Transamérica, Roquette-Pinto e Super
Torcida. @gabrielandrezo.
É comum achar histórias de como estádios foram palco
de prisões e torturas nas ditaduras da América Latina. O Brasil não fugiu à
regra. Aqui também aconteceu, meio que por acaso, mais precisamente em General
Severiano, o campo do Botafogo. Segue fio:
Vamos a um pouco de contexto. O ano era 1968, um dos
mais duros do período militar. No Rio, a polícia matou o estudante Édson Luís
após a invasão do Calabouço, um restaurante que era um reduto de jovens
universitários. Este fato gerou grande comoção da opinião pública.
O assassinato de Édson representou um ponto de virada
na reação popular à ditadura. Milhares foram às ruas e houve manifestações,
conflitos e greves pelo país. Os protestos de maio, na França, inspiraram o
movimento estudantil a se aglutinar junto ao povo e contra a ditadura.
Em 18 de junho, houve uma manifestação de estudantes
secundaristas e universitários no Centro do Rio contra a política educacional
da ditadura e a "desmoralização do ensino estatal". O líder
estudantil Jean Marc von der Weid, presidente do diretório acadêmico da UFRJ,
foi preso.
O acontecimento esquentou o clima. Um funeral
simbólico do ministro da educação, Tarso Dutra, chegou a ser feito pelos
manifestantes. Marcou-se para o dia seguinte uma reunião entre os estudantes e
Dutra, que aceitou receber apenas um pequeno grupo para "evitar
baderna".
Já de manhã, vários estudantes se concentravam ao redor do prédio do ministério. Ao meio-dia, os primeiros manifestantes chegaram, gritando: "abaixo a ditadura". Foram recebidos pela PM com golpes de cassetetes e bombas de gás. Alguns revidaram atirando pedras e dispersaram.
Começava um dia de caos no Rio: a polícia batia
indiscriminadamente no que visse pela frente, manifestantes quebravam vidraças
e destruíam viaturas, nuvens de gás lacrimogêneo turvavam a vista de cidadãos
comuns em plena hora do rush de uma quarta-feira.
As cenas de abuso e desespero seguiram até o fim
daquele dia. Era só uma prévia do que viria pela frente na quinta-feira, 20 de
junho. Cerca de 2 mil estudantes tomaram a UFRJ, em Botafogo, para uma
assembleia geral que seria realizada no teatro de arena da Faculdade de
Economia.
À tarde, a reitoria foi tomada e os estudantes
exigiram falar com o reitor, Clementino Fraga, que os atendeu. Queriam
investimentos para melhoria das condições de estudo e o fim das prisões. Com o
passar das horas, começam a temer serem presos ao saírem de uma UFRJ já
cercada.
O reitor pediu ao governador e à Secretaria de
Segurança que o cerco fosse desfeito, o que foi prometido mas não cumprido. No
começo da noite, saíram o reitor à frente, os estudantes atrás. Chegando aos
portões, vieram as primeiras bombas da polícia, gerando conflito e correria.
Os estudantes se espalharam pelas ruas. Muitos foram presos e espancados. Cerca de 200
deles encontraram abrigo na sede do Botafogo, que ficava a poucos metros do
portão lateral da faculdade, por onde saíram. Correram para dentro do clube,
perseguidos pelos policiais.
O presidente do Botafogo,
Altemar Dutra de Castilho, permitiu que os jovens se abrigassem no clube e
proibiu a entrada da polícia. Mas a PM e os agentes do DOPS tomaram General
Severiano de assalto, mesmo com os pedidos desesperados dos dirigentes para
que não entrassem.
Altemar foi um dos primeiros a passar mal com o gás lacrimogêneo lançado pelos policiais e precisou refugiar-se em sua sala, assim como o diretor financeiro Guilherme Arino, que relatou ter sido agredido. O diretor de futebol Djalma Nogueira teve uma arma apontada contra si.
A polícia invadiu o clube em duas frentes: pelas
entradas da Rua General Severiano e da Rua Venceslau Brás. O porteiro, que recebeu ordens de não deixar
ninguém entrar após os estudantes, foi agredido na invasão policial e passou
mal com as bombas que se lançaram.
Quem jantava no restaurante
do clube também foi agredido e ameaçado. Cinco crianças que ensaiavam para uma
festa junina passaram mal com o gás lacrimogêneo e tiveram que ser
hospitalizadas. Os estudantes refugiados foram levados ao campo
de futebol pelos funcionários do Botafogo.
A PM seguiu invadindo as dependências da sede e chegou
ao campo. Lá, os estudantes foram postos em fila, com as mãos na cabeça. Alguns
eram colocados no chão e agredidos, mesmo rendidos e desarmados. Outros eram
submetidos a situações humilhantes. Em seguida, todos foram presos.
Além disso, cinco atletas e quase dez funcionários do
Botafogo ficaram feridos. O presidente Altemar exigiu que o clube fosse
indenizado pelos danos causados. O governador Negrão de Lima prometeu que uma
autoridade policial iria ao clube no fim da noite, mas isso não aconteceu.
Altemar ligou depois para o
general João Dutra de Castilho, seu irmão, querendo explicações. Aos gritos,
mostrava indignação: "isto tem que acabar neste país". Ao todo, foram
presas mais de 500 pessoas só naquela noite. O Botafogo teve que arcar com seus
prejuízos sozinho.
O dia seguinte, a "Sexta-Feira Sangrenta",
foi ainda pior. Morreram pelo menos 28 pessoas e centenas ficaram feridas. A
repercussão negativa do episódio levou o governo a permitir uma manifestação no
dia 26, a Passeata dos Cem Mil, que foi a maior até então contra a ditadura.
Como sabemos, a frequência dos protestos também fez
aumentar a repressão da ditadura. No fim daquele 1968, o AI-5 fechou o
Congresso Nacional, revogou direitos básicos dos cidadãos e institucionalizou a
perseguição e a tortura. A ditadura militar do Brasil só acabaria em 1985.
Já no período democrático, na noite de 21 de junho de
1989, o Botafogo vencia o Flamengo
e se sagrava campeão carioca pela primeira vez justamente desde aquele fatídico
ano de 1968. E exatamente 21 anos após a "Sexta-Feira Sangrenta".
E foi campeão em 89 com o
mesmo Altemar Dutra de Castilho na presidência.
Fonte: https://twitter.com/gabrielandrezo/status/1484211796080746498
8 comentários:
Tempos de triste memória, um período tenebroso e por incrível que parece as consequências desse período ainda no momento atual, como a truculência sem sentido das polícias militares, mas o mais assustador são os defensores da ditadura, gente néscia e sem um conhecimento bds história do nosso país.
Creio que muito das perseguições ao Botafogo vem dessa resistência que o clube sempre teve em relação a nefasta ditadura militar, principalmente porque o Botafogo sempre foi um clube democrático e em seus quadros existiam muitos políticos e cidadãos de esquerda, sendo um dos mais famosos o João Saldanha, comunista declarado. Enfim, parece que ao contrário de alguns clubes cujos dirigentes se alinharam com a ditadura ficaram isentos de perseguição, mas o Botafogo sofreu consequências muito ruins e, a venda de GS até hoje me parece um castigo imposto ao clube, além da incompetência dos dirigentes de tentar negociar a dívida do clube. Dos 25 anos da ditadura militar o Botafogo sofreu 21 anos sem títulos estaduais, e como disse um jornalista, se não me engano foi o saudoso Roberto Porto:"o Botafogo não consegue conviver com a ditadura, por isso só voltou a ser campeão quando ela acabou". Abs e SB!
Sim, Sergio, todas a ditaduras são contrárias à cidadania e à liberdade. Tanto as extremas-direitas como as extremas-esquerdas têm uma história tenebrosa, desde o nazismo ao sovietismo (e antes das repúblicas, também as monarquias prepotentes e absolutistas).
No entanto, no caso do Botafogo, apesar de claramente ter sido ‘persona non grata’ durante a ditadura, por tomar atitudes de defesa da cidadania (já desde Luiz Caldas no remo, na última década do século XIX, e dos jovens fundadores do futebol, na primeira década do século XX), em minha opinião a coisa estava também muito atrelada à estratégia de beneficiar os clubes mais populares (porque têm maiores torcidas) de modo a que o regime usufruísse dos benefícios de popularidade do futebol – e portanto os dois “monstros sagrados” do futebol brasileiro, que tinham torcidas menores (Botafogo e Santos) caíram a pique, além de erros de gestão do Botafogo depois de o brilhante Paulo Azeredo deixar a presidência do Clube.
Entre 1969 e o fim da ditadura, nem o Botafogo nem o Santos ganharam um único título nacional, ambos com os últimos títulos nacionais ocorridos justamente em 1968, ano crucial para a consolidação da ditadura.
Nada de novo.
Normalmente, as ditaduras procuram aproveitar-se dos eventos desportivos para disfarçarem os seus condenáveis atos. Dois exemplos de ditaduras ‘ditas’ de direita e de esquerda (digo ‘ditas’ porque na verdade as ditaduras parecem-me ser somente ditaduras, todas iguais na sua concepção estrutural antidemocrática): o nazismo, apostando nos Jogos Olímpicos de Berlim em 1936 (que correu mal para as pretensões supremacistas arianas quando o negro americano Jesse Owens ganhou 4 medalhas de ouro); o sovietismo, desenvolvendo fortemente os desportos olímpicos com o intuito último de projetar uma imagem ‘bonita’ e de suposta hegemonia no mundo.
Que o nosso Botafogo esteja sempre longe desses extremismos!
Abraços Gloriosos.
Duas belíssimas aulas, obrigado!
É História, Leymir. E a História pode ser um instrumento poderoso para moldar o futuro sem os erros do passado. Assim queira a Humanidade!
Grande Abraço.
Um dos meus temas prediletos, eu olho o futebol por essa prisma e por isso me interesso muito pelas belezas dos Clubes , mais pelas suas semelhanças que suas diferenças.
Óbvio que tenho uma predileção, mas acho também linda as histórias de Vasco e Botafogo por exemplo.
Esse blog é o trabalho apaixonado e apaixonante de um historiador , é assim que vejo o Ruy.
E quando venho aqui humildemente dar meus pitacos, é quase uma tabelinha singela e nunca um carrinho estabanado.
Um grande abraço e viga a democracia!
Estimado Leymir, em geral, olho todo o desporto pelo mesmo prisma histórico, porque muitas vezes a história acontecida é muito mais interessante do que meramente os resultados.
Em garoto fazia estatísticas do futebol e do turfe, depois estendi os meus gostos ao remo, pólo aquático, ciclismo, hóquei patinado, etc. Tenho uma natureza mais Olímpica do que exclusivamente Futebolista e gosto da história de todas as modalidades.
Competi, enquanto jovem, apenas em modalidades de futebol e futsal, mas pratiquei por mim mesmo diversas outras modalidades ao longo da vida - de campo, ginásio, piscina, mesa, etc. Adoro particularmente os Jogos Olímpicos e os Campeonatos Mundiais de Atletismo.
Lembro-me de um amigo flamenguista que, no nosso 1º encontro, durante um jantar, lhe perguntei que desportos ele gostava. Respondeu-me assim: Mas quer os meus preferidos como praticante, espectador ao vivo ou televisivo? Resposta inesperada e muito interessante, porque ele tem preferências segundo a situação em que se encontra fisicamente.
Pode afirmar que os seus 'pitacos' são de postura humilde. Que sejam - e consta que a humildade significa o respeito pelos Outros -, mas são conhecedores, cheios de entusiasmo, profundamente éticos e brilhantes.
Sobre a democracia, sem dúvida: que um dia possa ser o regime de todos os cidadãos do mundo!
Grande Abraço.
Todavia, não foi o "sovietismo" que deixou que retirou alimentos da Índia, causando a morte de 3,5 milhões de cidadãos de Bengala (da índia) morrer de FOME. Foi a democracia de Churchill (Inglaterra). Aliás, se não fosse o "sovietismo"... "“Quando Stalin disse em 1931: ‘Se não produzirmos 10 milhões de toneladas de aço por ano, em menos de 10 anos seremos esmagados’, ele estava certo. Dez anos, ou seja, 1941. Se ele não tivesse feito aquele esforço incrível naquela época, que, de fato, do ponto de vista humano foi muito custoso, ainda estaríamos vivendo na era de Auschwitz.”
Roger Garaudy (França)
Caro Vitor Biolchi
Todavia, também relembro que o ‘sovietismo’ e o ‘nazismo’ assinaram a 23 de agosto de 1939 o Pacto Germano-Soviético, também conhecido como Pacto Ribbentrop-Molotov, que incluía um protocolo secreto que estabelecia a divisão da Polônia entre a Alemanha e a União Soviética. Portanto, à beira da guerra, sovietes e nazistas definiram o ‘bolo’ maior que queriam comer e dividiram as fatias. A 1 de setembro, 9 dias depois do Pacto, Stalin tornou-se corresponsável pelo início da guerra, esperando beneficiar com a expansão alemã, expandindo também a União Soviética à custa da supressão de uma cultura e de uma nação. Mas como Hitler era ditador e louco e Stalin apenas um ditador expansionista, o louco traiu o Pacto. E é claro que a guerra dos alemães estaria sempre perdida a partir do momento em que Pearl Harbour foi bombardeada pelos japoneses e os americanos entraram na guerra. E é claro que não viveríamos hoje Auschwitz porque antes do Japão levar com a 2ª bomba atômica seriam os alemães a levar com a 1ª bomba e a perder a guerra. De resto, faço lembrar que não se deve confundir a democracia inglesa com a mente colonialista de Churchill. Os colonialismos e as ditaduras são hoje totalmente condenáveis, venham da extrema-direita hitleriana, venham da extrema-esquerda stalinista. Diz o povo que “os extremos se tocam”.
Abraços Gloriosos.
Enviar um comentário