por SANDRO
MOREYRA | Jornalista desportivo
Na galeria
dos heróis do futebol brasileiro, Heleno de Freitas talvez mereça um lugar tão
importante quanto os de Pelé e Garrincha, embora seja menos lembrado do que
eles – por ser mais antigo e por ter brilhado numa época em que os meios de
comunicação eram mais limitados e não tinham, como hoje, o poder de levar a
imagem dos ídolos a milhões de espectadores.
Mas, assim
como Pelé foi o Gênio do Futebol e Garrincha a Alegria do Povo, Heleno – pinta
e temperamento de galã, dentro e fora dos estádios – foi o Herói Romântico.
Tanto no seu jeito de jogar (a bola e ele foram namorados apaixonados, bem ao
estilo da década de 40: ela obediente, avisando sempre aonde ia e aceitando docilmente
suas vontades) como no jeito de viver, ardente e dissipado.
A
fulgurante e temperamental aventura de Heleno começou por volta de 1936, quando
ele tinha 16 anos e começou a se destacar nas peladas da praia, nas areias de
Copacabana. Foi nessa época que o conheci. Chegara de São João Nepomuceno,
interior de Minas, pouco tempo antes, com a mãe viúva e os irmãos, e se
preparava para entrar na Faculdade de Direito. Seu talento logo foi percebido
pelos olheiros dos grandes clubes do Rio. Um deles levou-o para fazer um teste
entre os juvenis do Fluminense, mas ele não se adaptou: o clube de sua paixão
era o Botafogo.
Um técnico de basquete, Togo Renan Soares, o Kanela, foi quem levou Heleno para o Botafogo. apresentou-o ao técnico Ademar Pimenta, garantindo que o garoto era um futuro titular da Seleção Brasileira. Mas só algum tempo depois, numa tarde de agosto de 1940, Heleno de Freitas teve o seu primeiro encontro com a fama, no estádio de São Januário, o maior do Rio naquela época. Marcou os dois gols da vitória do Botafogo sobre o São Cristóvão, que era então um adversário forte. No domingo seguinte, mais dois gols e uma nova vitória, dessa vez contra o América. Seu nome conquistava as manchetes desportivas, que exaltavam o seu perfeito domínio de bola, as fulminantes cabeçadas, o chute preciso com os dois pés, o drible fácil, tudo o que compunha o seu notável repertório de craque.
Em pouco
tempo tornou-se o ídolo da torcida alvinegra. Era notável como o seu estilo
clássico e elegante combinava com o espírito guerreiro, a garra com que se
atirava à luta. Heleno não sabia perder. E para conseguir a vitória brigava com
os adversários, com o juiz e até com os companheiros de time. Mas não era por
vedetismo e sim por seu temperamento explosivo e inconformado. Frequentemente,
porém, cabeça fria depois do jogo, procurava os companheiros para se desculpar.
A verdade é que ele tinha a volúpia de ganhar, de ver na frente o seu Botafogo.
As
torcidas dos outros clubes, obviamente, não o perdoavam. Naquele tempo, o
grande rival do Botafogo no campeonato carioca era o Fluminense, e foi a
torcida do tricolor que o apelidou de “Gilda”, numa alusão à personagem
temperamental interpretada por Rita Hayworth num filme de grande sucesso na
época. Mas Heleno, ferido com os gritos de Gilda, Gilda, crescia
em campo, cheio de raiva, buscando a todo custo a vitória.
De 1940 a
1947, Heleno reinou absoluto no Botafogo. O seu apogeu, porém, foi em 1945/46,
quando comandou o ataque da Seleção Brasileira, barrando o grande Leônidas da
Silva. No Sul-Americano de 1945, no Chile, formou, num dos ataques mais
poderosos da história do nosso futebol. Tesourinha, Zizinho, Heleno, Jair e
Ademir (este foi deslocado para a ponta-esquerda para dar lugar a Heleno). Ele
foi o artilheiro desse Sul-Americano e voltou consagrado como o melhor
centro-avante do continente.
Heleno vivia a grande fase da sua carreira. Tinha tudo: fama, prestígio, dinheiro, lindas mulheres a suspirar por ele. Era tratado com deferência pelos maîtres e garçons dos restaurantes e boates de luxo, onde, ao contrário da quase totalidade de seus colegas de profissão, ele se sentia inteiramente à vontade. Na verdade, Heleno era – e seria ainda hoje – uma excepção entre os jogadores de futebol, quase todos de origem humilde e inculta. Formado em direito, anel no dedo, vestia-se no alfaiate mais caro do Rio e frequentava as rodas boêmias de elite.
Naqueles
tempos não existia o controle que existe hoje sobre o comportamento dos
jogadores fora de campo e nem eles tinham a consciência profissional que têm
atualmente. Assim, era comum encontrá-los nas noitadas dos cabarés e dancings
do centro da cidade. A diferença entre eles e Heleno é que o craque-galã
preferia [expressão inelegível] nas boates e festas ricas da Zona Sul. E seus
companheiros habituais de boêmia eram os rapazes do lendário Clube dos
Cafajestes – Mariozinho de Oliveira, Sérgio Porto, Carlinhos, Niemeyer,
Paulinho Soledade e outros. Era considerada grave infração aos “estatutos” do
clube sair mais de duas vezes com a mesma garota e não há lembrança de que
Heleno tenha cometido muitas vezes a infração.
Em janeiro
de 1948, o Boca Juniors ofereceu ao Botafogo uma fortuna irrecusável pelo passe
de Heleno. Ele relutou em deixar o seu amado Botafogo, mas terminou cedendo. E
foi reviver na Argentina os seus dias de maior glória no Botafogo. Teve uma
estreia retumbante, marcando dois golos e deixando o campo já transformado em
ídolo da torcida do Boca. O seu charme de galã, o seu penteado lustroso a la
Carlos Gardel, logo conquistaram Buenos Aires. Era saudado e cortejado em toda
parte. Virou letra de tango, suprema homenagem dos portenhos. E diziam que até
Evita Perón, todo-poderosa primeira dama da Argentina, sentia-se envolvida por
sua sedução.
A
lua-de-mel com o Boca durou poucos meses. [Expressão inelegível], má vontade do
treinador e os rompentes cada vez mais explosivos de Heleno o levaram a pedir a
rescisão de contrato e voltar para o Brasil. Na verdade, estavam ficando cada
vez mais visíveis os sinais da doença mental que terminaria por consumi-lo
poucos anos depois.
Heleno
ainda vivera momentos de triunfo jogando pelo Vasco, que ajudou a vencer o
Campeonato Carioca de 1949, e, nos dois anos seguintes, no futebol colombiano.
Seu último clube foi o América, do Rio, pelo qual jogou uma única vez: a
primeira em que pisou o gramado do Maracanã.
Morreu
obscuramente no sanatório de Barbacena. Mas não foi esquecido por sua cidade,
São João Nepomuceno, onde virou nome de rua. Nem pelos amigos que ainda vivem e
que tiveram a sorte de testemunhar a sua dramática e apaixonada carreira. Fui
um deles. E prefiro lembrá-lo em seus dias mais felizes, empolgando a torcida
nos estádios ou enfrentando bravamente o ciúme das namoradas. Posso até vê-lo
ainda na praia, queimado do sol, a cabeça deitada no colo de uma loura
magnífica, a Úrsula, que toda a rapaziada paquerava, mas que só dava atenção ao
Heleno. Uma manhã estava ele lá, com o colo dela como travesseiro, quando
apareceu outra transa sua, Diamantina, que era cantora do Cassino Atlântico e
tinha o temperamento de uma leoa. Armou uma confusão tremenda e foi a única vez
em que vi Heleno fugir a uma marcação cerrada (à noite, os amigos o gozaram,
dizendo que Heleno havia sido vítima de “Úrsula no estômago”).
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