Garrincha como jogador e como personagem
por EDÔNIO ALVES
12.08.2015
Um tal de Manoel Francisco dos
Santos, brasileiro autêntico, original e marcado pela genialidade no que fazia
nada mais era (e sempre será) do que Garrincha, um dos maiores jogadores de
futebol de todos os tempos. Um cara singular até na descendência, pois que era
neto de índios Fulniô, que habitavam as regiões das Alagoas em tempos agora
remotos. Como se sabe, índio é ingovernável por brancos, os quais mesmo tendo
invadido seus espaços, tentando tomar suas terras, se expandiram na empreitada
‘civilizatória’, ousando atentar também sobre suas brincadeiras de vida, na
tentativa de roubar suas bolas, que isso Garrincha não permitiu. Em reação,
chamou todos de Manés e impôs ao mundo uma maneira lúdica de jogar com os pés e
umas bolas de futebol. Fez desse mister sua vida e sua obra, tornando-se um dos
brasileiros mais amados pelo seu povo.
Claro que não poderia deixar de se
tornar, também, assim, personagem da literatura brasileira, essa arte que junto
com o futebol, tece o amálgama mais profundo do jeito de ser e de operar da
alma nacional. Literatura e futebol, pois, é o tema dessa nossa coluna no blog,
e é com imenso orgulho que trago aos nossos leitores internautas uma análise
que fiz de uma conto literário em que Garrincha é ao mesmo tempo mote, vida, morte
e saudade. Acompanhem, portanto…
A última pelada de Mané
Conto de DOMINGOS PELLEGRINI
Pois bem! Essa história é uma excelente
narrativa ficcional que destaca, em tom rapsódico, a figura de um personagem ao
mesmo tempo histórico e mítico do futebol brasileiro: Manoel Francisco dos
Santos, Garrincha, o jogador bicampeão do mundo pelo Brasil em 1962 e estrela
maior do Botafogo do Rio de Janeiro pelo anos seguidos da década de 1960. Com
uma prosa brincalhona (risonha até), mas extremamente segura e adequada aos
seus propósitos, que é contar os últimos ditos e feitos de um emblemático herói
nacional – aquele a quem o povo consagrou país afora pela sua magnanimidade
artística com a bola nos pés -, o inventivo narrador criado por Domingos
Pellegrini brinda aqui o leitor com uma estória curta cujo apelo estético é seu
próprio personagem central.
Isso fica patente desde o início da
história quando esse ídolo do povo brasileiro – misto de herói e anti-herói – é
apresentado ao leitor assim meio que humanizado por baixo, a despeito de sua
permanência por cima, no panteão honorífico dos gigantes do futebol brasileiro:
“Ele já estava no finzinho, inchado de pinga e um olhar assim abobado, não
tinha mais aquele olhar moleque do Mané Garrincha, era só mais um mané da vida;
quem não conhecesse, podia até pensar que era um pintor de paredes, desses que
mamam um litro de mé por lata de tinta, ou podia ser mais uma vagabundo desses
que aposentam cedo, criando barriga antes de cabelo branco – mas quem não
conhecia Mané, principalmente de bermudas?”.
Como a proposta geral do conto, como já
foi dito, é narrar os últimos ditos e feitos desse herói – e como se trata de
um personagem cuja face heróica está sempre presente no imaginário afetivo
nacional, por isso ser necessário uma constante revivicação desse mito* -, o
narrador continua sua história apresentando as circunstâncias de sua inesperada
reaparição no espaço público. Esse fato serve de mote para a condução de uma
comovente história em que a memória ainda presente (viva na figura atuante do
próprio Mané Garrincha, pelo menos do ponto de vista diegético da narrativa)
aos poucos vai se transformando, através do vigor crescentemente forte da
transfiguração literária, em uma lembrança dolorosa, ironicamente melancólica,
confusa mesmo no seu misto de alegria e tristeza constituintes.
“Quando ele apareceu na rua, alguém
olhou a cara, viu as pernas e apontou, olha o Mané, e pronto, ele foi andando
cercado de gente dando abraço e tapa nas costas, criançada pulando em volta
depois de pegar, beliscar ou cutucar as pernas que entortaram tanto gringo e
muito fizeram pelo futebol e pela alegria do Brasil, como ia repetindo atrás
dele um bebum”.
Depois de circunstanciados o personagem
e seu espaço, a narrativa segue acompanhando Mané Garrincha pelas ruas, sutil e
sorrateiramente impregnando nele os efeitos deste espaço e, principalmente, os
efeitos do tempo, porque uma de suas metas, hábil e repetidamente sugerida ao
longo do texto, é lembrar que o tempo passa, inexorável, mesmo para os heróis
de forja imortal. Pois é esse paradoxo da trajetória existencial humana que o
seu autor que mostrar servindo-se literariamente da figura paradigmática de
Garrincha.
“Mané sorria, e piscava, em zigue-zague,
empurrado para lá e para cá pela meninada, mães ralhando, homens lhe esfregando
mão calosa na nuca, moças beijando e depois soprando para as outras que, nossa,
ele parecia dopado! Estava era entupido até a tampa de remédio para o fígado,
remédio contra o álcool, remédio para isso, remédio para aquilo, era um tanque
de drogas ambulante e naquela horinha solto feito passarinho em Pau Grande,
queria mais era tomar umas e rumou para a esquina onde sempre existiu um bar.
(…)
– Ué, cadê o boteco daqui?!
O tempo comeu, Mané, brincou alguém, e
ele disse é, o tempo come mesmo, continuou andando empurrado, chacoalhado,
apertado, beijado, de vez em quando alguém até lhe beijava a mão, e ele dizia
como sempre ih, deixa disso:
– Futebol eu joguei foi com o pé…”
É dessa sua habilidade com os pés, com
efeito, que o escritor Domingos Pellegrini constrói o motivo estrutural da sua
narrativa, pois é com os pés que seu personagem entra para a história (com “h”
maiúsculo ou minúsculo) e dela se retira, como se verá no final. Antes, porém,
enquanto essa história do Mané avança em seu andamento de típica rapsódia
futebolística, se é permitido o uso do termo aqui, onde não falta ao herói o
culto quase religioso, como o de um tal Professor Pó, (“chamado assim só por
gostar de velharia, livro velho, tralha velha” etc, que conhecia tudo da vida
dele, “Tintim por tintim, Mané, desde cada gol até o teu cocô!”); a admiração
quase sagrada (“os meninos olhavam as pernas de Mané, os pés em chinelos, os
dedos, quantos dribles teriam dado aqueles pés, quantos passes de trivela com o
efeito daqueles dedos, como podiam ter varizes assim pernas bicampeãs do
mundo?); o elogio por seus feitos em campo (“o drible de entortar, os
cruzamentos na cabeça do centro-avante, os gols decisivos nas copas do mundo, a
maior estrela do Botafogo, o maior ponta-direita de todos os tempos, o homem
que ganhou a copa depois que os portugueses quebraram o Pelé, o único jogador
do mundo que fazia o povo rir enquanto fazia ou armava gol”), por exemplo.
Antes, porém, dessa história terminar, se dizia aqui, é preciso salientar as
suas qualidades de composição literária voltada ao futebol.
Ressaltemos, a título de exemplo – e não
o faremos mais por falta de espaço – a exploração sintática que o narrador faz
do uso dos diálogos, o que dá efeito coloquial à frase. Aliás, o coloquialismo
é neste conto um recurso matreiro e bastante eficaz do narrador para mimetizar
em palavras a figura muito popular de Garrincha; para captar-lhe, por exemplo,
a sua ginga e malandragem de jogador formado nas peladas de rua. Exemplos dos
dois recursos:
“(…) os capitães gritavam instrução,
marca lá, lança aqui, olha o ladrão, todos de repente encantados pelo futebol,
olhando tão parados que o fotógrafo podia ter tirado grandes fotos…”;
“Ih, falou Mané, homem fungando no meu
gangote, e agachou-se como se fosse amarrar a chuteira, descalço porém, só para
pedir a bola com o dedo, indicando onde deviam lançar o passe. Levantou-se já
se jogando ligeiro para a frente, o molecão vacilou, mas correu pulando num
carrinho quando a bola chegava ao pé de Mané que só tocou a bola e tirou o pé,
o molecão se ralou no pó da rua. Mané deu outro toque, ameaçou levantar a bola
e chutou rasteiro com o lado do pé, gol, aplausos e risos, era Mané Garrincha”.
Os diálogos intercalados dentro das
frases sem que se suspenda as funções precípuas dos termos da oração no uso
requerido, figuram perfeitamente, em nível formal, a conversa de rua e
transfiguram, no seu registro literário, a sua dimensão lúdica e humana,
demasiado humana. Além de servir de pretexto, agora em nível de conteúdo, para
a representação competente de dois dos traços característicos do jogo de
futebol praticado em terras brasileiras: o ethos da
malandragem, usado como recurso legítimo das estratégias de jogo (exemplo
acima) e, paralela a isso, a seriedade* (huizinga) com que é encarada a
expressão lúdica na condução do nosso futebol (exemplo abaixo):
“O primeiro gol saiu duma jogada bonita,
no bar aplaudiram, aí cada moleque passou a jogar como se estivesse de
chuteira, sérios como pequenos homens disputando cada lance, os cabelos
respingando, dividindo bola, esquecidos de que estavam descalços, às vezes
algum gemia de dor”.
Dito isto, vamos ao final da história. E
não apenas porque precisamos terminar este resumo de leitura. É porque o final
desta história encerra estrutural e teleologicamente o seu fim. Assim mesmo, no
duplo sentido da finalidade das coisas. Pois que é aí onde textualmente
encontra-se concentrado todo o sentido último desta narrativa: o propriamente
literário, revelado pelo correto domínio por parte do seu autor dos elementos
de significação, intensidade e tensão*, necessário a boa confecção de uma
estória curta, e o significado humano daí resultante, que serve para nos
enriquecer de uma maior compreensão da realidade objetiva ou imaginária que
neste mundo nos torna homens.
“– Entra aqui, Mané, no ataque!”
Ao fim, o narrador nos conta que Mané
Garrincha não resistiu e entrou nessa pelada dos meninos em Pau Grande, sua
cidade natal. Conta-nos também de “quando Mané recebeu a terceira bola e um
carrinho que pegou os dois pés e o derrubou, o quadril batendo forte com o peso
da barriga”. Conta que “o professor viu então que Mané envelheceu de repente,
se contorcendo e segurando os pés, as mesmas rugas do riso, virando as rugas da
dor”.
E conta ainda que um homem qualquer,
presente ali, deu um pescoção no moleque, que tinha diminuído encolhido ali;
mas Mané abriu os olhos e disse “não, não, é criança, é criança”.
Conta por fim, fim mesmo, que Mané saiu
do jogo…
“Tudo é Deus, disse Mané. Vai para onde,
perguntou o professor; e Mané só disse vou, vou, vou indo. Machucou? –
perguntou uma mulher, e ele disse é, mas o time venceu, né, e continuou
sorrindo e mancando pela rua. O professor foi atrás, insistiu, estava indo para
onde? Chega, disse Mané, estou indo, e continuou sorrindo; e só bem depois,
quando de repente Mané voltou a aparecer nos noticiários, todos dizendo como
ele era bom, era o melhor, só então o professor soube para onde ele estava
indo.”
PARA SABER MAIS:
Domingos Pellegrini nasceu
Londrina (PR), em 23 de julho de 1949 e é jornalista e escritor. Entre as suas
obras destacam-se Terra Vermelha, que conta a história da
colonização do Paraná; O Caso da Chácara Chão e O
Homem Vermelho, sendo que por estas duas últimas obras – um romance e um
livro de contos, pela ordem – o autor foi premiado com o prêmio Jabuti de
literatura, oferecido pela Câmara Brasileira do Livro nos anos de 2001 e 1977,
respectivamente. Atualmente vive na sua cidade natal, Londrina, onde estudou
Letras. Trabalha com jornalismo e publicidade. É autor de contos, poesias, e
romances, entre os quais devem ser registrados, além dos títulos já
citados: Questão de Honra (1999) e O Mestre e o Herói (2006).
O conto de futebol, A última pelada de Mané, está publicado na
coletânea 11 Histórias de futebol, reunião de contos
integrante da Coleção Prosa Presente, da Editora Nova Alexandria, de São Paulo,
que saiu em 2006.
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