quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Caio Martins: tradições esportivas e usos políticos

Caio Vianna Martins. Reprodução / Internet.

[Nota do Mundo Botafogo: Estádio Caio Martins é atualmente um estádio de futebol localizado na cidade de Niterói, no estado do Rio de Janeiro. O estádio pertence ao Governo do Estado e encontra-se cedido ao Botafogo através de um termo de concessão, desde 1988, com prazo de término em 2027, ou até à conclusão da construção do novo Centro de Treinamento. O estádio faz parte do Complexo Esportivo Caio Martins, que possui ginásios para vários esportes e atualmente é utilizado pelas categorias de base do Botafogo de Futebol e Regatas.].

por HENRIQUE SENA

Graduado em História

O Estádio Caio Martins, equipamento que integra o complexo esportivo de mesmo nome, foi inaugurado em 20 de julho de 1941. Seu nome homenageia o escoteiro mineiro Caio Vianna Martins, da Associação de Escoteiros de Affonso Arinos, que morreu aos 15 anos durante um dos maiores acidentes ferroviários brasileiros, ocorrido em 1938, na região de João Alves, em Minas Gerais.

Sua biografia ficou conhecida pelo fato de ter morrido depois de gravemente ferido no contexto do acidente, dispensando ajuda para oferecer socorro a outros feridos. Publicada nas páginas dos jornais da época, como o Correio da Manhã de 12 de setembro de 1940, sua declaração de que “Há muitos feridos; o escoteiro caminha com as próprias pernas” tornou-se o emblema de sua bravura. Saiu caminhando e caiu a uns cem passos adiante. Morreu horas mais tarde, em consequência do rompimento de vísceras e um grave derrame interno.

O caso ficou conhecido em todo o país e até hoje inspira o escotismo. A homenagem, certamente, se relacionava também com o fato de Niterói ser um dos maiores centros do escotismo no Brasil. […]

O Estádio Caio Martins, durante os seus longos anos de vida, foi palco de dois campeonatos mundiais de basquetebol (um feminino e um masculino); de uma das subsedes da Copa do Mundo de Futebol de 1950; de uma Chave do Campeonato Mundial de Voleibol; do Sul-Americano de Natação e de inúmeros Certames Nacionais de Atletismo, Voleibol, Basquetebol e Ginástica. Além disso, constituiu sempre um dos mais importantes Centros de Iniciação Desportiva para crianças e adolescentes com aulas de natação, judô, basquetebol, futebol, voleibol, ginástica estética e olímpica e jazz. […]

Não sem razão, durante a inauguração solene do estádio, em 7 de setembro de 1941, órgãos da imprensa – como o Jornal do Brasil, da cidade do Rio de Janeiro, no dia 9 de setembro – deram destaque às palavras do general Augusto Borges, presidente da União dos Escoteiros do Brasil, ao interventor Amaral Peixoto, em que dizia que seu ato de nominar o estádio se revestia de “uma coragem cívica”. […] Uma estátua, de autoria do escultor Honório Peçanha, representando o escoteiro que dava nome ao estádio, foi inaugurada pelo prefeito Francisco de Almeida Brandão Júnior, tal como noticia o jornal O Fluminense em 5 de julho de 1941. (Knauss & Maia, 2014, p. 118). […]

O estádio foi alvo, no início de 2003, de uma grande reforma. Chegou a ter capacidade de 15.000 pessoas, divididas entre arquibancadas de concreto e tubulares, cadeiras VIP e camarotes, e foi apelidado de "Caldeirão" [pelos torcedores botafoguenses]. Porém, em 2005, as obras foram desfeitas porque a diretoria do clube considerava o estádio pequeno e acanhado para a grandeza do Botafogo. Atualmente o estádio recebe escolinhas e as categorias de base do clube. […]

Contudo, o espaço carrega em sua história uma ferida que não cicatriza, foi o primeiro estádio de futebol da América Latina a ser utilizado como prisão. […]

Estádio Caio Martins, 1964. Crédito: Manoel Fonseca.

Documentos da polícia estadual, hoje de posse do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), atestam o uso do espaço esportivo como um cárcere instituído na ordem regular do Estado durante a ditadura civil-militar, posta a própria nominação utilizada pelo aparato repressivo, a saber, Presídio Caio Martins (Knauss & Maia, 2014, p. 115). Sob o comando das Forças Armadas, em especial o I Exército, o presídio esteve também intimamente vinculado ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e à Secretaria Estadual de Segurança Pública. Na verdade, o uso político do estádio já não era novidade. Sua inauguração foi um dos símbolos da época do governo da interventoria de Ernani do Amaral Peixoto, durante o período do Estado Novo. Foi palco de inúmeros atos cívicos no contexto da Segunda Guerra Mundial, de comemorações do Dia do Trabalhador, repetindo o ritual que era marcado pelos discursos do presidente Getúlio Vargas no estádio de São Januário, na cidade do Rio de Janeiro. Os usos políticos e não esportivos do complexo foram constantes ao longo da história, segundo Knauss & Maia (2014). […]

O ginásio do complexo Caio Martins surge como primeiro estádio prisão da América Latina e também como centro de uma política repressiva aplicada no estado do Rio de Janeiro em consequência do golpe de estado de primeiro de abril de 1964. Com todas as galerias e celas do DOPS do Rio de Janeiro e da Guanabara lotadas, bem como as centenas de presos políticos que ocupavam as dependências da PMERJ espalhadas pelo estado, a solução encontrada para suprir a demanda de prisões preventivas de subversivos em abril de 1964 foi a ocupação do Ginásio do Caio Martins, em Niterói. […]

Por volta do vigésimo dia após o golpe, efetivamente o ginásio do estádio se abriu não para o público de uma partida esportiva, mas para o alojamento da primeira leva de presos que chegava a cem pessoas. […]

Nos dias que se seguiram, vieram presos dos diversos municípios fluminenses, como Cabo Frio, Magé, Cachoeiras de Macacu, entre muitos outros, sempre sob a mesma acusação de subversão. Segundo pesquisa documental realizada pela Comissão da Verdade de Niterói (CVN), pelo menos 339 pessoas foram presas no local, sendo estas oriundas de todo o estado do Rio de Janeiro.

De acordo com o jornal da época, O Fluminense, em 21 de abril, alguns respondiam aos inquéritos no próprio ginásio e caso comprovada as acusações imputadas, eram processados de acordo com a Lei de Segurança Nacional. […]

A ditadura brasileira foi a mais longa do continente sul-americano [e] não podemos esquecer que, para uma ajuda mútua entre os regimes baseados na Doutrina de Segurança Nacional na América do Sul, foi criada no final da década de 1970 a formulação e aplicação da Operação Condor. Esta operação foi caracterizada como uma aliança entre as ditaduras instaladas nos países do Cone Sul— Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai — para a realização de atividades coordenadas, de forma clandestina e à margem da lei, com o objetivo de vigiar, sequestrar, torturar, assassinar e fazer desaparecer militantes políticos que faziam oposição, armada ou não, aos regimes militares da região. […]

O estádio foi alvo, no início de 2003, de uma grande reforma. Chegou a ter capacidade de 15.000 pessoas, divididas entre arquibancadas de concreto e tubulares, cadeiras VIP e camarotes, e foi apelidado de "Caldeirão". Porém, em 2005, as obras foram desfeitas porque a diretoria do clube considerava o estádio pequeno e acanhado para a grandeza do Botafogo. Atualmente o estádio recebe escolinhas e as categorias de base do clube.

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Excertos retirados do artigo: SENA, H. (2016). Caio Martins: o Primeiro Complexo Estádio-Prisão da América Latina. Anais do II Simpósio Internacional Futebol, Linguagem, Artes, Cultura e Lazer [recurso eletrônico] / organizador Silvio Ricardo da Silva [et al.]. Belo Horizonte: EEFFTO/UFMG. ISBN: 978-85-61537-25-8.

O excerto do texto do autor ainda inclui citações do artigo KNAUSS, P. & MAIA, E. (2014). Niterói, 1964 – Memórias da Prisão Esquecida. A Operação Limpeza e o cárcere político do Caio Martins. Revista Acervo, Rio de Janeiro, v. 27, n º 1, p. 99 – 120, jan./jun.

O artigo completo encontra-se acessível em https://www.academia.edu.

4 comentários:

jornal da grande natal disse...

Me tire uma dúvida. E não tinham mudado o nome para homenagear Zizinho?

Ruy Moura disse...

Sim, os vereadores do Rio mudaram o nome, mas como ele fora o maior ídolo do Flamengo antes de Zico, o Botafogo não gostou e continuou sendo chamado Caio Martins. Talvez passe a ser Zizinho quando o Botafogo perder a concessão do estádio, porque Zizinho nasceu em Niterói.

Abraços Gloriosos.

leymir disse...

Adoro matérias como essa,parabéns Ruy e Henrique.

Grande abraço!

Ruy Moura disse...

Procuro a diversidade, Leymir. Pesquiso bastante com esse fim. Também gosto muito de matérias dessa natureza pelo seu embasamento científico. Não são meras opiniões, são reflexões sérias e sustentadas por protocolos científicos de análise.

Grande abraço, querido amigo.

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