terça-feira, 4 de junho de 2024

A SOMBRA

por SOL DE ANLAREC | Colunista do Mundo Botafogo

Faz algum tempo que passei a me interessar por uma atividade pela qual nunca antes – nem na infância – havia manifestado a mínima afinidade: Desenhar.

Como todas as garotinhas da minha época, tive uma caixa de lápis de cor, mas limitava-me a usá-los nos trabalhos escolares. Meus poucos rabiscos naquela fase pareciam saídos de uma caverna pré-histórica.

Já na adolescência, durante aulas entediantes, lembro-me de ficar desenhando olhos. Fazia-os bem grandes e com longos e espessos cílios cobertos por bastante grafite ou tinta de caneta, à semelhança de diversas camadas de rímel, provavelmente influenciada pelas fotos das modelos de então, com suas maquiagens carregadas.

Décadas fluíram sem nenhum contato com o assunto. Desenhar, realmente, não era minha praia.

Eis que, superado o auge da pandemia, busquei novas ocupações. Fui atraída pela proposta de uma Oficina: exercitar a criatividade de uma forma livre. Não tinha ideia sobre a técnica nela empregada. Assim, por precaução, logo no primeiro encontro avisei a orientadora que não me viesse com nada que envolvesse desenhos!

Não adiantou... De cara, ela me deu uma cartolina e mandou-me reproduzir a natureza morta que montara sobre a mesa: uma garrafa e uma taça. Resignada, fiz lá o que me parecia uma cópia da cena. Ao mesmo tempo, tal como no filme de animação Divertida Mente, ouvia a autocrítica urrar: “ Isso aí está um horror!”.

Os treinamentos se seguiram na Oficina, ao longo dos quais fui impulsionada para além das órbitas dos mundinhos insossos dos lápis HB – do colégio – e dos papéis A4 – do escritório!

Conheci os elegantes “primos” – os lápis aquarelados, os sanguíneos e os de carvão. Descobri os papéis com gramatura. E comecei a manusear pincéis. Sofri ao tentar usá-los com a desafiante aquarela, dona de uma fluidez indomada. Por outro lado, apreciei as tintas acrílicas, de trato bem mais  amigável”.

Destaco que a prática com pincéis começou há pouco tempo. Antes, eu recusara por diversas vezes os pedidos da orientadora para trabalhar em tela, por conta de minha limitação com o desenho.

Esse assunto, como se vê, seguia me constrangendo.

O ponto de mutação ocorreu na Oficina, quando fui apresentada a uma novidade – o giz pastel seco!

Deveria aplicá-lo sobre uma abstração que eu rabiscara (justamente para me livrar do desenho). Lá fiquei misturando cores ao meu bel-prazer para esfumá-las posteriormente com o dedo. Sentia-me uma garotinha de 5 anos, divertindo-me a valer! Foi então que, ao retocar uma área, sem que percebesse, produzi um movimento diferente. Surgiu uma sombra. Fiquei encantada! Ela trouxe movimento e profundidade ao desenho. Meu olho não despregou dali! Saí da Oficina pensando nisso. Cheguei em casa e continuei pensando nisso.

Despontou o embrião da vontade de desenhar...

Ao mesmo tempo, a furiosa autocrítica persistia me sabotando: “Tá maluca? Onde já se viu? Você não sabe desenhar nada! Vai gastar dinheiro à toa!”.

Resolvi arriscar e comprei um bloco grande! Minhas toscas tentativas iniciais foram sobre figuras de revistas. Um dia, vendo a foto de um quadro de Portinari com um perfil feminino, quis experimentar reproduzi-lo. Minha versão – ainda na vibe  “garotinha de 5 anos” – é risível: não há uma proporção correta, o olho está de frente, e a pobre dama ficou reduzida a um perfil minoico. Menos mal para ela! Escapou de ficar paleolítica...

Pois é... Apesar disso, gostei da coisa! Daí em diante, as papelarias ganharam importância na minha vida, atraindo-me para as prateleiras de lápis coloridos e outros materiais de desenho. Passei também a vasculhar canais no Youtube.

Estava surpresa comigo mesma – a pesquisa não me era tediosa! Ao contrário, ficava fascinada vendo os artistas que, partindo de  simples traços sobre um plano, concluíam o trabalho com uma imagem tão realista quanto à de uma fotografia!

Em consequência, fui levada a pesquisar assuntos mais complexos: perspectiva; construção com figuras geométricas; uso de sombras e texturas para simular volumes;  criação de tonalidades; e até – vejam só – anatomia!

Interessei-me por retratos. Aprendi que a construção do rosto se inicia com uma circunferência – para representar o crânio. Sobre o círculo formado serão aplicados os olhos, o nariz e as orelhas. Em seguida, faz-se um traçado complementar para definir a mandíbula – onde será posta a boca. As linhas  do pescoço encerram o processo.                                                                                             

Constatar que todos esses elementos seguem proporções harmoniosas que “conversam” umas com as outras – tal qual um quebra-cabeças, em que cada peça depende do posicionamento das demais para que haja o encaixe perfeito – gera um sentimento fascinante de que existe uma lei inteligente por trás de tudo!

O passo seguinte, ainda mais incrível, é o de esculpir dentro do esboço original o volume das complicadas estruturas – óssea e muscular –, responsáveis pela sustentação da face. Trata-se de um processo demorado, mas a sensação final –  após horas colorindo – é de total deleite.

Partilhar com o leitor o processo que venho seguindo na Oficina foi divertido!

Permita-me acrescentar só mais uma coisinha: parei de ter medo de crânios, essa parte tão associada a conceitos macabros. Não é que agora acho qualquer caveira engraçadinha?

Engraçadinha? Tá louca? ” – O leitor me pergunta perplexo.

Respondo afirmativamente e lhe faço uma pergunta: já pensou na gama de fisionomias variadas que ele expressa ao longo do dia, de acordo com seu temperamento? Pense bem: cada uma é uma máscara! E olha que temos máscaras para tudo! Da tristeza à alegria; da amargura à fúria; da preocupação ao medo, e por aí vai.

Mas... porém... contudo... todavia, preste atenção, leitor: inobstante as máscaras usadas, debaixo delas, ironicamente – estamos sempre sorrindo – não importando se somos homem ou mulher, velho ou criança, rico ou pobre, branco ou preto, gordo ou magro, etc.!

Acaso não teria sido esse um recado deixado pela Natureza, do tipo “Don’t worry – Be happy”?

Ih, o leitor deve estar achando esse papo sinistro à beça, né? Por favor, releve!  Veja só por quais caminhos enveredei, desde aquele início com lápis e cartolina. Acabei tomando outros mais filosóficos e metafísicos!

E tudo culpa de uma sombra que decidiu aparecer   uma manhã no meio do meu caminho criativo!!

15 comentários:

Sergio disse...

Que texto maravilhoso, me identifiquei com essa estória que se parece muito com o que foi em relação as artes plásticas, que desde jovem me atraía e na adolescência estudei desenho e pintura. Mesmo sendo a minha principal paixão a música, nunca deixei de desenhar, pintar, coisa que faço até hoje. Eu diria que a paixão por essas duas expressões artísticas são quase que no mesmo nível.
Mas o que me fez na adolescência explorar o desenho e a pintura foi a minha paixão por paisagens, talvez por esta razão eu ame os impressionistas, mas a paixão maior e van Gogh, embora um pós impressionistas, mas não só suas paisagens, mas suas obras parecem me falam e me emocionam em cada pincelada. A arte ( todas elas)é em minha opinião uma das maiores ferramentas para expressar a emoção. Abs e SB !

Ruy Moura disse...

E eu tenho prova da sua paixão através da bela pintura que o Sergio gentilmente me ofereceu. E guardei a sua preciosa mensagem (20.05.2022). Muito grato.
Abraços Gloriosos.

Lúcia Costa disse...

Otima crônica! Interessante todo o teu trajeto começado na infância, atraída pelos estojos de lápis coloridos e, depois de tantas idas e vindas, acabou por te levar a um aprofundamento da técnica do desenho, culminando com a descoberta de uma fascinante SOMBRA que, inesperadamente, jogou muita LUZ no teu caminho, mexendo positivamente com a tua autoestima. Pensando bem, SOMBRA e LUZ , me traz a memória as geniais pinturas de CARAVAGGIO.´Será que essa bendita SOMBRA que te surgiu de repente, não teria vindo de uma influência inconsciente daquele que foi considerado o mestre do BARROCO???? KKKKK Sei lá, vai que.... kkkk.
Parabéns pelo belo texto! Beijão!

Sergio disse...

Foi de coração, inclusive para você matar a saudade de Petrópolis, embora Secretaria seja um distrito de Pedro do Rio que pertence ao município de Petrópolis, achei que você gostaria da paisagem. Grande abraço e Saudações botafoguenses!

Ruy Moura disse...

Eu conheço Secretário. Lugar de botafoguenses!
Havemos de nos encontrar por lá.
Abraços Gloriosos.

Anónimo disse...

Eu como sua admiradora sempre percebi uma crescente evolução independente da técnica aplicada. Gosto muito cada vez mais de admirar seu trabalho.
Parabéns!!!!

Anónimo disse...

Fico feliz com seu comentario e por partilhar seu amor pela Arte!

Sol de Anlarec

Anónimo disse...

Ruy, agradeço sua generosidade em fazer a publicação nesse Espaço GLORIOSO!!
Grande abraço!
Sol de Anlarec

Anónimo disse...

Querida, vc sempre generosa em seus comentários! Vamos continuar procurando sentido nas "sombras" q aparecem vez ou outra e q nos levam para caminhos interessantíssimos! Bjks
Sol de Anlarec

Anónimo disse...

Excelente texto. Identifico-me com as Máscaras.

Ruy Moura disse...

Sol, é uma honra dispor das suas artes literárias no Mundo Botafogo, as quais conseguem, além das suas virtudes per si, envolver conexões com outras artes e ciências que se comunicam entre si.
Grande abraço!

Anónimo disse...

🥰😘

morada do sol bloco E disse...

Uma preciosidade de texto! Super orgulhosa dessa amiga talentosa e que muito se dedica a tudo que faz, tendo como resultado a excelência! Parabéns, Sol! Vc brilha todo o tempo! 👏👏👏👏💝

Anónimo disse...

Que lindo texto! Foi como nascer de novo! Parabéns pelo seu dom e a sua perseverança, da ludicidade à perfeição!

Anónimo disse...

Querida Sol,
me emocionei com sua maravilhosa crônica!!!
Fico muuuuuito feliz com as barreiras que foram ultrapassadas, para que você pudesse desfrutar do enorme prazer que as Artes Plásticas tem a oferecer a TODOS!
PARABÉNS!!!!

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