sexta-feira, 6 de abril de 2012

Meu personagem da semana

por Nélson Rodrigues
O Globo, março de 1962

1 – Amigos, o meu personagem é Garrincha. E podia ser Pelé. Garrincha ou Pelé, tanto faz. Um ou outro, mesmo sem fazer nada, é fato, é notícia, é retrato, é manchete. Para o “Paris-Match”, mais valia um sorriso de Pelé do que o decote mais nítido, mais vilento de Elizabeth Taylor. Mas eu escolhi Garrincha e explico. Dos seus pés (ou de Pelé) pode nascer a flor do Bi.

2 – Ora, dizem que, nesta terra, qualquer um é neurótico, inclusive os passarinhos matinais. A gente anda esbarrando, anda tropeçando em melancolias, em depressões hediondas. Pois bem. Garrincha, não. Eu próprio já escrevi, a propósito de “seu” Mané: “A única sanidade mental do Brasil”. E, com efeito, a saúde interior de Garrincha é de humilhar êsses bebês de anúncio. Sim, de anúncio de talco.

3 – No fundo, cada brasileiro é uma macaca no auditório de Garrincha. Notem: quando êle apanha a bola, o Maracanã, todo, arreganha um riso unânime e alvar. Não se sabe o que Garrincha vai fazer, qual a jogada que êle vai tirar do seu repertório tremendo. É um riso prévio, um riso que se antecipa à piada. Mas o que eu queria dizer é que pouco conhecemos de Garrincha ou, por outras palavras, que somos analfabetos em Garrincha.

4 – Alguém dirá que eu exagero, talvez e daí? Mas nem tanto, amigos, nem tanto. Há em Garrincha uma série de coisas óbvias e que ninguém percebe. Por isso, eu vivo a dizer que só o gênio, só o Miguel Ângelo, só o Shakespeare enxerga o óbvio. Por exemplo: Garrincha não usa chuteiras como um simples craque mortal. Não. Êle joga de duras e franciscanas sandálias.

5 – Outra evidência ululante, e que ninguém descobriu: o nítido e taxativo parentesco de Garrincha com São Francisco de Assis. Eu disse “sandálias” para definir a relação entre os dois sapatos. Sei, perfeitamente, que qualquer um, inclusive um “gangster” de filme, tem um momento em que é um São Francisco de Assis, da cabeça aos sapatos.

6 – Sim, de vez em quando, uma vez na vida e outra na morte, qualquer de nós é atravessado de luz como um vitral de igreja. Mas é um instante que passa para nunca mais. Em Garrincha, não. São Francisco de Assis não passa, está sentado na alma do craque. Eu diria, se me relevarem a expressão meio torpe, que o santo é para Garrincha um desses chatos que não largam o sujeito.

7 – A qualquer hora do dia e da noite, em Pau Grande ou no Maracanã, Garrincha é franciscano. É o único brasileiro, vivo ou morto, que não conhece o ódio e, digo mais, que não conhece uma vaga irritação. Nós somos um povo de ira fácil. Aqui, todo o mundo gostaria de quebrar a cara de todo o mundo (e, finalmente, ninguém quebra a cara de ninguém). Vocês se lembram daquele chefe de família que entrava em casa avisando: “Não falem comigo que, hoje, eu estou brigando automàticamente”.

8 – Garrincha, não. Garrincha, nunca. Faz um futebol sem “foul”, vejam vocês: um futebol imaculado de “foul”. É caçado em campo, a cacetadas, como uma ratazana o era nos tempos de Osvaldo Cruz. É ceifado, dizimado. E só uma coisa admira: é que, no fim de cada jôgo, êle não saia de maca ou não saia de rabecão. Pois bem: e jamais ocorreu a Garrincha enfiar o pé na cara de ninguém. É quebrado e, depois, cata no chão os próprios cacos.

9 – Mas onde Garrincha é mais franciscano, onde? Com as baianas. Sim, com as baianas turísticas, folclóricas, que vendem cuscuz, pés de moleques, o diabo. E Garrincha prefere as cocadas brancas, nupciais e insiste: virginais. Mas não pensem que êle as come com uma simplicidade animal. Nada disso. Há uma ternura, há um amor. E êle poderia dizer como um santo: “Nossa irmã, a cocada”.

10 – Hoje, está em Campos do Jordão e eu repito: Campos do Jordão é um cimo lívido, varado de ventos tristíssimos, de ventos inconsoláveis. Faço então a pergunta: por que meter Garrincha e o “scratch” na geladeira, por quê? Alguém dirá que é uma preparação para o frio dos Andes. Mas pelo contrário! O brasileiro é canicular. Há, nêle, uma feroz e eterna nostalgia da canícula. Devíamos entupir, devíamos abarrotar Garrincha e o “scratch” de sol, de muito sol. Para derrotar o abominável frio chileno.

11 – Algum Drummond podia ir, de porta em porta, pedindo: “Sejamos docemente Garrincha!” Ser Garrincha é uma solução para milhares, para milhões”.

4 comentários:

Anónimo disse...

Graaaande Rui!!

Coloque esta prenda no facebook, amigão!

Forte e alvinegro abraço!

Cid

Ruy Moura disse...

Caro Cid, já fiz menção à publicação no facebook. Obrigado pela sua atenção.

Abraços Gloriosos!

hangman disse...

Com textos belíssimos como esse, que dignifica nosso ídolo, e temos sempre que aturar o clichê do garrincha bêbado, como se o livro "definitivo" fosse a cópia fiel e única da vida de Garrincha.
É dose pra mamute!

Ruy Moura disse...

É DOSE PRA MAMUTE, Hangman!

E há botafoguenses que elogiam, divulgam e disseminam o Garrincha do livro da Estrela Solitária. É DOSE PRA MAMUTE!

Abraços Gloriosos!

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