por LUCAS FRÓES
Jornalista, sobrinho querido de Silvio Fróes, o botafoguense
de fato até dormindo
A voz emulando um tom infantil, para dizer os maiores
impropérios, transformava absurdos em comédia. O Rio de Janeiro é a extensão da
Bahia e vice-versa. O pior detrator é aquele que conhece bem sua terra, porque
é justamente o que mais gosta de falar mal.
– É tudo filho de puta!
O vocabulário bem particular não deixava dúvidas.
– Nem com banqueta e três-oitão!
O bordão era sobre alguém muito teimoso, que não larga o osso
de jeito nenhum. Desbocado desse jeito, vai gostar de ser apresentado a Hermes
& Renato.
“Realmente, é minha cara. Gostei muito, principalmente dos
diálogos”.
O negacionismo risonho lhe obliterava os cinco sentidos ante
a violência carioca. Ele nunca via porrérima nenhuma. Se algo aconteceu no
bairro, não é porrérima nenhuma. E se os disparos foram na sua própria rua,
também não foi porrérima nenhuma.
Pronto, Tio Silvinho virou o Tio Porrérima.
Mas não o confundam com as Tias. Ele parece até que viu todo
mundo sair do armário. Diverte-se explicando que Fulano é tia, que Beltrano também
é tia e que Sicrano, esse então, é tiésima. E ainda tem aquela bicha tão antiga
que já não é nem tia, nem avó. É Bisa.
Viva Clóvis Bornay! Viva Cauby Peixoto! Viva Padre Pinto!
Para fazer valer a longevidade da família é preciso alguma
parcimônia. Ele agradece, mas não quer que interfiram na plena posse dos seus
sentidos hedonísticos.
– O médico disse que pode tudo, só não pode respirar.
Respirar até pode, só não deve beber, fumar e torcer para o
Botafogo. Mas suas roupas e seu telefone celular exalam cheiro de fumaça, como
se também fumassem junto com ele.
É um amante da vida! Barravento, Modern Sound, Braseiro, Jobí
ou qualquer boteco em que se possa beber um chopp encostado no balcão. A
cerveja, insiste, não faz mal.
– É o meu hidratante.
Poucas pessoas cuidaram tão bem da hidratação! Seja qual for
a estação do ano, hidratar é preciso.
Tampinha da Guanabara, Filósofo de Bolso, Dustin Hoffman de
Copacabana.
Ninguém cresce nunca! Quase sete décadas de experiência não
amenizam a ansiedade de debutante. Não pode esperar um segundo, o que dirá até
amanhã. Fala pelos cotovelos, escreve pelas cartas e pelos bilhetes deixados de
madrugada.
“Maluf foi preso. Beijos.”
Pena que a novidade não é mais atual.
Piloto de carrinho de rolimã na Ladeira dos Aflitos, torcedor
de Fórmula 1 até o último domingo. Pior para Rubinho, que mereceu ter a
pronúncia do nome ironicamente alterada, por conta das pataquadas na pista.
Pena que a tevê não fazia a mesma tradução das conversas pelo rádio entre
piloto e equipe.
– Rubino, seu filho de puta, a Ferrari vai pagar o conserto
do carro com um cheque de seu pai!
Pelouro, apelido de craque requisitado na época da Cidade da
Bahia em preto-e-branco. Branco e preto como o seu Alvinegro da estrela
solitária.
Há certas coisas que só acontecem ao Botafogo, diz a antiga
máxima de Carlito Rocha, o mítico ex-presidente do clube, que não desgrudava do
cachorro Biriba. O Botafogo é um time que já entra em campo vestido de zebra. É
fácil ganhar uma aposta dos botafoguenses, eles quase nunca riem por último.
Nessa hora, estão mais acostumados ao chororô. Pelo telefone, atirando para
todos os lados, é melhor mudar de assunto.
– Lula quer levar o Pão de Açúcar pra São Bernardo do Campo!
O exagero cômico e a blague contra os paulistas são muito
anteriores ao nouveau antipetismo.
Em 1968, a trincheira era outra e o perigo iminente. Era
preciso estar atento e forte. A banqueta e o três-oitão não eram só metáfora.
Se safou pulando o muro da UFRJ, antiga Universidade do Brasil, enquanto os
estudantes que não tiveram a mesma sorte foram levados ao campo do Botafogo e
espancados pela escória dos belenguins, em um conhecido episódio dos Anos de
Chumbo, estopim para a Sexta-Feira Sangrenta do dia seguinte.
Justo no campo do Botafogo! Há coisas que só aconteciam em
1968.
– Andar com esses livros naquela época era pior do que ser
pego com cocaína hoje em dia.
Livros escritos por um grande, e hoje lamentavelmente
esquecido, “comunista” baiano.
De lá para cá, muita farsa e tragédia. Seis a zero pra um
lado, seis a zero pro outro, além de um 6x1 de lambuja; Maurício tirando o
Botafogo da fila, com um empurrãozinho em Leonardo; Túlio, o artilheiro
comediante, marcando gol impedido. E ainda Loco Abreu fazendo a camisa
alvinegra virar celeste, além de Seedorf jogando a saideira.
Sepultado com a bandeira do Botafogo, no dia em que o time
voltou para a 1a. divisão, os três dias de luto que o clube decretou, em
homenagem a Sandra Moreyra, coincidiram de também lhe servirem. Há coisas que
só acontecem aos botafoguenses.
Morrer dormindo é a melhor morte, quem vai não sofre nada.
Quem fica tem a tarefa e o alento de lembrar. Mas para fazer jus ao que ele
sempre foi, o ideal seria que morresse falando. Se bem que, pra quem falava até
enquanto dormia, sonhando em alto e bom som, talvez esse tenha sido o desfecho
ideal.
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