[Nota
preliminar do Mundo Botafogo: 8 de novembro de 1959. Falecimento de um dos mais
completos jogadores de futebol do Brasil e do Mundo na década de 1940: Heleno
de Freitas. Do futebolista que frequentava a alta sociedade, que encomendava os
seus ternos diretamente de Londres, que era elegante, vaidoso, mulherengo e
intratável, que falava português, espanhol, francês e inglês. Que apontou uma
arma descarregada a Flávio Costa e por isso não foi convocado para a Copa do Mundo de 1950 e, quiçá, privou o Brasil de se sagrar campeão do mundo com Heleno
a comandar o ataque canarinho. Que morreu louco amando desesperadamente o
Botafogo. Reveja Heleno de Freitas pela pena de Milton Ribeiro a propósito do
filme ‘Heleno – o príncipe maldito’.]
por MILTON RIBEIRO
a 27 de julho de 2012
Uma tragédia fica caracterizada onde não há apenas seriedade e dignidade,
mas também conflitos com instâncias superiores, sejam elas metafísicas, como
com deuses ou o destino, ou tangíveis, como com as leis e a sociedade. No caso
de Heleno de Freitas o algoz foi o destino, o qual, como nas tragédia grega,
não se deixou dobrar em nenhum momento. Pode-se dizer que Heleno cumpriu
minuciosamente todo o papel trágico que lhe cabia, saindo da glória para a
loucura e a morte em linha reta, com a convicção demonstrada sobejamente
em Heleno, filme de José Henrique Fonseca, em cartaz nas principais
cidades brasileiras.
A obra, rodada em gloriosa fotografia em preto a branco, deixa-nos por duas
horas livres de quaisquer vestígios de ciúmes sobre a qualidade do cinema
argentino, apesar da presença do hermano Fernando Castets
dentre os roteiristas. Mais: não é necessário gostar de futebol para gostar
de Heleno. Advogado, jogador de futebol dos bons, galã, boa vida,
viciado em éter e lança-perfume, intratável, inteligente e vítima da sífilis,
Heleno de Freitas traz todos os ingredientes de um grande personagem de
tragédia. Vitimado pelos vícios e pela sífilis diagnosticada tardiamente — e
que ele se negava a admitir ou tratar —, Heleno também foi vitimado pela
celebridade e arrogância. É uma história triste, claro.
Heleno foi o primeiro grande encrenqueiro do futebol brasileiro e talvez
mantenha-se no topo até hoje. A Adriano Imperador falta não apenas classe. O
comportamento de nosso contemporâneo é uma brincadeira boba e monotemática
frente a alguém que foi o principal jogador do Botafogo por oito anos — que fez
209 gols em 235 jogos no Bota, além de 19 em 24 jogos pelo Vasco e 15 em 18
jogos pela Seleção —, que desprezava seus companheiros pelo fato de serem um
bando de pernas-de-pau (e que dizia e repetia isso para quem quisesse ouvir, a
imprensa deliciava-se), que conquistava as mulheres que bem entendia, que se
irritava por nada, que deu um nada metafórico tiro no pé ao tentar acender um
fósforo enfiado na unha (John Wayne foi sua inspiração), que tinha amigos
empresários, juristas e diplomatas e que acabou louco. Como definiu seu
biógrafo Marcos Eduardo Neves:
Ele era temperamental como Edmundo, bonito como Raí, mulherengo como Renato
Gaúcho, artilheiro como Romário, boêmio como Ronaldinho Gaúcho, inteligente
como Tostão, de boa família como Kaká, elegante como Falcão e problemático como
Adriano.
(Faltou dizer que ele torrava dinheiro e era explorado pelos amigos como
Garrincha).
Seu gênio irascível e predador de mulheres rendeu-lhe o apelido de Gilda,
analogia com a célebre personagem de Rita Hayworth, também bela e
incontrolável. O apelido foi criado pela torcida do Fluminense. As noites de
Heleno eram no Copacabana Palace, no Cassino da Urca ou na boate Vogue, tudo o
que de melhor que a noite do Rio oferecia. Porém, assim como Rita Hayworth
dizia que “todos os homens que já tive foram para a cama com Gilda e acordaram
comigo”, Heleno dormia no Copacabana Palace e acordava no Botafogo. E o
Botafogo era ruim demais, só Heleno se salvava. O time era tão ruim que Heleno
nunca foi campeão carioca pelo time.
Em 1948, a contragosto, foi vendido ao Boca Juniors na maior transação do
futebol brasileiro até então. Deixou a mulher grávida no Rio e seguiu fazendo
seus gols até dar o tal tiro no pé. Voltou para conquistar seu único título
carioca pelo Vasco, no ano de 1949. O técnico do Vasco era o exigente Flávio
Costa, que também comandava a Seleção Brasileira. Aliás, a Seleção tinha por
base o Vasco. Assim, era quase inevitável que Heleno jogasse e fosse Campeão do
Mundo em 1950. Mas não gostava dos treinos, coisas chatas e cansativas após as
noitadas. Um dia, irritado, ameaçou Flávio Costa com uma arma descarregada e
acabou apanhando. Ficou fora da Copa, claro. E acabou partindo para a Colômbia,
que pagava os mais altos salários do continente. Com a camisa do Atlético
Barranquilla, “El jugador”, com era conhecido, encantou um jovem jornalista
chamado Gabriel García Márquez.
Durante a Copa do Mundo, Heleno esteve na Colômbia. Quando soube da
derrota, numa das melhores cenas do filme, Heleno comemorou a perda do título,
finalizando a festa como sempre: com bebedeira e mulheres.
Fora de forma e falido, viciado em éter e lança-perfume, mas com os
sintomas da sífilis já absolutamente presentes, teve uma passagem pelo Santos —
nunca entrou em campo — e voltou ao Rio em 1953 para jogar em seu novo clube, o
América-RJ. Jogou apenas alguns minutos. Foi expulso no primeiro tempo e nunca
mais entrou em campo. Foi internado em 1954 na Casa de Saúde São Sebastião.
Emagreceu, perdeu dentes e cabelo e o que lhe restava de sanidade. Ouvia vozes
e agia de forma violenta.
O cuidadoso mosaico que o filme vai montando é formado por cenas alternadas
da ascensão, glória, decadência e fim do craque, sem respeito à linha de tempo.
É perfeito ao mostrar como que sua vida fora do campo foi lentamente matando o
craque. Rodrigo Santoro, no papel de Heleno, voltou a demonstrar que não é
apenas mais uma carinha bonita. Poucas vezes se viu no cinema nacional uma
imersão tão radical num personagem. Basta dizer que o ator perdeu 12 quilos
para viver as cenas finais do filme, já louco num sanatório. Santoro começou as
filmagens pesando entre 80 e 82 quilos e chegou a 68, 69, fruto de uma dieta
rigorosa ou, segundo declarou, da fome. Também tomou aulas com o bailarino
Marcelo Misailidis para ganhar leveza e agilidade, características do jogador.
O treinamento com bola foi feito com o ex-jogador Cláudio Adão.
O trio principal de atores é completado por Alinne Moraes, como Sílvia,
esposa do jogador, pela colombiana Angie Cepeda, uma de suas amantes, e por
Erom Cordeiro, que faz Alberto, o melhor amigo de Heleno e que acaba ficando
com sua mulher… Heleno foi a mais solitária das estrelas.
Heleno é um filme rigoroso, não é moralista e muito menos
piegas. Mesmo a música que acompanha a degenerescência mental do craque não
busca lágrimas. É um movimento da 5ª Sinfonia de Mahler. O diretor Fonseca diz
que gostaria que os espectadores soubessem da biografia de Heleno antes de
verem o filme, pois considera que as cenas mostradas sejam insuficientes.
Pedimos licença para discordar. O que é mostrado nos deixa tão fascinados que é
impossível não sair do cinema e dar uma olhadinha no Google.
[Nota final: se pretender ler mais sobre Heleno de Freitas, veja a coluna do lado direito do blogue Mundo Botafogo, entre em 'etiquetas' e avance para 'memorial heleno', onde encontrará tudo sobre Heleno de Freitas.]
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