Tatuagem, linguagem da alma

por LÚCIA SENNA

Escritora e Cantora

Estou na fila do banco e, na minha frente, vejo uma mulher de idade incerta com uma tatuagem enorme cobrindo todo o braço esquerdo, além de algumas citações espalhadas pelas pernas e tornozelos. Tento decifrar alguns daqueles símbolos enigmáticos, mas a criatura recebe uma ligação e sai em disparada deixando-me com a curiosidade à flor da pele. A vontade que tenho é a de segui-la pelas ruas de Botafogo, pois é duro pensar que jamais saberei o significado de todos aqueles hieróglifos.

Não tiro a tua razão se, a essa altura, já estiveres pensando que eu não regulo muito bem. Concordo contigo, mas vamos combinar que não é muito sensato viver sem uma pequena dose de loucura. Seria demasiadamente louco!

Diante de todo esse cenário – um tanto ou quanto hilário – percebo que refletir um pouco mais sobre essa forma de linguagem estética e simbólica pode ser bastante interessante. E já me questiono que tipo de tatuagem eu faria, caso decidisse ter uma. Em princípio, acho que não faria nenhuma. Eu disse EM PRINCÍPIO, porque conheço-me o suficiente para saber que posso mudar de ideia a qualquer momento. Desprezo a noção de não ser de bom tom trocar de opinião. Sendo assim, amanhã – quem sabe? – talvez eu apareça com uma bela tattoo, exibindo-a feliz e faceira.

Já vai longe o tempo em que os tatuados eram vistos com olhos preconceituosos pela nossa sociedade. Hoje em dia virou tendência. Com a chegada do verão, a mulherada está se desnudando para poder vestir-se de todo tipo de tatuagem.  Outro dia, esbarrei na rua com uma moça crivada de tatuagens imitando folhagens. Um gaiato, tipicamente carioca, que por ela passava, não segurou a onda e mandou essa: - “uauuuu, tu tá que é um xaxim!”. Tive que controlar o riso para não soltar uma sonora gargalhada, pois o cara foi muito espirituoso.  A moça / xaxim  saiu espumando de raiva.

Gravar algo no nosso corpo não é uma decisão banal. Tatuagens são definitivas e nos acompanham pelo resto da vida. Nesse nosso mundo onde tudo é fugaz e descartável, a tatuagem nos oferece sua fidelidade na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza, e desde a mocidade até à velhice.

Uma colega de trabalho, quando ainda era bem jovem, tatuou uma fada imensa em uma das pernas. À medida que envelhecia e a pele tornava-se flácida e enrugada, a fada ia passando de tamanho GG para PP.  Ela vaidosa que só, e buscando a todo custo a juventude eterna, entrou em depressão ao constatar o que o safado do tempo havia feito com a sua fada.

Só de pensar que, ao escolher uma tatuagem, terei que conviver com ela ad eternum, a pele já fica arrepiada. Acordar com ela, dormir com ela, viajar com ela, viver com ela e morrer com ela, benza Deus! Deve ser por isso que muita gente opta por escondê-la do próprio olhar: parte de trás dos ombros, nuca, costas, glúteos, etc... Considero uma boa maneira de preservar a relação, pois o contato cara a cara, vinte e quatro horas por dia, não há Cristo que suporte.

De um jeito ou de outro, exibindo-as ou escondendo-as, o certo é que a cada dia mais e mais pessoas se rendem aos encantos das tattoos. E, para não dizer que nunca vivi a experiência de ser tatuada, decidi-me, há alguns anos, por uma de henna que, na melhor das hipóteses, teria a curta duração de duas semanas.

Estava de férias em Canoa Quebrada, uma das praias mais paradisíacas do Nordeste brasileiro. Esculpido numa falésia, o ícone do local: uma meia lua e estrela. Quis saber mais sobre tal simbologia e fiquei fascinada com o que ouvi de uma pessoa da região. Contou-me, com riqueza de detalhes, que em um determinado dia de outubro a lua – em sua fase quarto crescente – e a estrela D’Alva se encontram para ‘namorar’. Quem olhar para o céu na noite desse exato dia há de vê-los aconchegados em um apaixonado abraço. Nada poderia ser mais lúdico. Trouxe os amantes para o meu tornozelo. Apesar do meu carinho e zelo, dias depois deram no pé. Lugar de astro, afinal, é no espaço sideral e não perto do chão.

Minhas tatuagens não são visíveis a olho nu. Além disso, são grafadas com uma técnica de pigmentação especial que não há nada que as remova, nem mesmo o laser.  Não preciso escolher imagens, cores, textura, local ou tamanho. Tudo terceirizado por uma entidade chamada VIDA que, atrevida e ousadamente, sem  pedir permissão, vem tatuando minha alma, deixando marcas indeléveis.