por AFONSO DE MELO
ionline, 10.07.2018
Paulo Mendes Campos, escritor e
jornalista mineiro, entrou nesta curiosa comparação: “Miguel Ângelo é botafogo,
Leonardo é flamengo, Rafael é fluminense; Stendhal é botafogo, Balzac é
flamengo, Flaubert é fluminense; Bach é botafogo, Beethoven é flamengo, Mozart
é fluminense. Dostoievski é botafogo, Tolstoi é flamengo (na literatura russa
não há fluminense); Baudelaire é fluminense, Verlaine é flamengo, Rimbaud é botafogo;
Camões não é vasco, é flamengo, Garrett é fluminense, Fernando Pessoa é
botafogo.”
Ele lá saberá, não entro
em tal discussão.
Prefiro ver Dostoievski
como Pelé. Pelé fazia o óbvio, mas o óbvio dele era impossível para os outros:
fintava cinco defesas e a gente sabia que ele fintaria os cinco defesas, depois
o guarda-redes, e o golo perfeito. Ficamos a pensar como aquilo foi feito, mas
incapazes de repeti-lo. Dostoievski era Pelé misturado com Yashin: a sua parte
negra tem um homem branco vestido de preto e a sua noite branca é um preto
vestido de branco (camisola do Santos). Garrincha, por sua vez, era o óbvio
pouco nítido. Vicente Feola, selecionador brasileiro em 1958, quis obrigá-lo a
não fintar. Pôs uma cadeira no campo e disse: quando chegares à cadeira tocas
para o companheiro do lado e vais receber a bola dele para lá da cadeira.
Garrincha encolheu os ombros, foi direito à cadeira, passou-lhe a bola pelo
meio das pernas e seguiu a sua correria.
Garrincha fintava os mesmo
cinco defesas como Pelé, guarda-redes também, mas não fazia o golo perfeito:
voltava para trás para fintar todos outra vez. Ora, isso não é Dostoievski.
Isso é Kafka descarado. Depois da finta de Garrincha, todos os adversários
ficavam como Gregor Samsa, acordando de repente transformados em enormes
escaravelhos.
Texto
original em https://ionline.sapo.pt/618645?source=social
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