por ARMANDO NOGUEIRA
Amar um clube é
muito mais que amar uma mulher. Ao longo da vida, troquei de namorada, sei lá,
mil vezes. E outras mil fui trocado por elas, mas a recíproca não está em jogo,
agora. Jamais trocaria o Botafogo, nem por outro clube, nem por nada, neste
mundo.
Guardo até hoje,
integro, o sentimento do primeiro encontro. Foi no minúsculo estádio de General
Severiano, na tarde do dia 10 de setembro de 1944. Tinha eu acabado de chegar
de Xapuri, minha terra, e estava embasbacado com a beleza da cidade do Rio de
Janeiro.
O jogo era
Botafogo e Flamengo.
Meu primo Carlos
gosta de assistir em pé, bem no meio da arquibancada; e é aqui que já estamos
os dois. O primeiro degrau de cimento fica tão perto do campo que dá até pra
ouvir o respirar ofegante dos jogadores. Como eles se xingam! Nunca pensei que
fosse assim.
A partida
começa. A multidão, dividida ao meio, alterna silêncios e gritos de guerra que
me assustam um pouco. Até agora, já se foram 15 minutos de jogo e nada de gol.
Meu coração, porém, já dá os primeiros sinais de uma simpatia que não tardará
em palpitar dentro do meu peito. Sei que esse time do Flamengo está cheio de
craques. Meu primo vai me cantando, um por um: "aquele é o Zizinho - um
monstro... aquele outro é o Jaime - joga como um príncipe... esse aéi é o
Pirilo".
Do outro lado,
só há um craque de fama nacional: é Heleno de Freitas. O resto é de currículo
modesto. Mas, todos trazem no peito uma estrela de cinco pontas, radiosa como a
luz da tarde ensolarada.
Pois se bem me
lembro, foi de vê-la reluzir no peito de Heleno que se deu a revelação. Hoje,
mais de meio século depois, eu me pergunto, por mera curiosidade, por que será
que não escolhi torcer pelo Flamengo? Afinal, o Flamengo já era o time mais
querido do Rio. Dava - pra usar uma expressão mais moderna - dava ibope torcer
pelo Flamengo. Tinha acabado de sair bicampeão carioca. Era certeza de alegrias
pela frente. E, no entanto, eu preferi trocar o certo pelo duvidoso. Em nome de
que idéia? Por que o Botafogo da estrela solitária simbolizada em Heleno e não
o Flamengo de Zizinho, de Biguá, de Pirilo - uma soleníssima constelação de
craques?
Afinidades
eletivas, meus amigos. Coisas do coração. Mistérios da alma. Premonição,
talvez, pois, no final do jogo, o Botafogo daria a volta olímpica saudando a
sua torcida. Tinha goleado o Flamengo, ganhando de cinco a dois. Heleno marcar
dois belos gols, um deles de cabeça. Uma testada bíblica!
Nascia, ali, uma
simpatia de mão única, pois o Botafogo nem sabia da minha reles existência. Não
sabia, nem precisava saber. O futebol é assim: desperta na pessoa um sentimento
virtuoso que transcende a amizade, que vai além do amor e culmina no santo
desvario da paixão. Tem de tudo um pouco, porém, é mais que tudo. Torcer por
uma camisa é plena entrega. É mais que ser mãe, porque não desdobra fibra por
fibra o coração. Destroça-o de uma vez no desespero de uma derrota. Em
compensação, remoça-o no delírio de uma vitória.
O Botafogo tem
tudo a ver comigo: por fora, é claro-escuro, por dentro é resplendor; o
Botafogo é supersticioso, eu também sou. Quantas vezes, vi o roupeiro Aloísio
sair dando nós nas cortinas da sede imperial pra amarrar as pernas dos times
visitantes, em General Severiano. E eu acreditava piamento nos trunfos do
feiticeiro Aloísio. Dava-lhe força pra que os sortilégios do futebol não
traíssem o Botafogo.
Houve uma
partida em que o Botafogo perdia de um a zero. Carlito Rocha, o grande bruxo da
história do clube, me perguntou quanto tempo ainda restava de jogo. Meu relógio
estava parado. Começou a esbravejar comigo. Gritava que a desgraça do time
estava ali, no meu relógio. Relógio parado dá azar. Arrancou do meu braço a pulseira
e jogou fora, com relógio e tudo. Era um reles "patek-cebola". No dia
seguinte, Carlito me daria outro, de presente. Igualmente reles, mas, pelo
menos, funcionando.
O Botafogo é bem
mais que um clube - é uma predestinação celestial. Seu símbolo é uma entidade
divina. Feliz da criatura que tem por guia e emblema uma estrela. Por isso é
que o Botafogo está sempre no caminho certo. O caminho da luz. Feliz do clube
que tem por escudo uma invenção de Deus.
Estrela
solitária.
O Botafogo
sempre oscilou entre Heleno de Freitas e Garrincha: pássaro de fogo, pássaro de
luz; um era glória e tormento, o outro, humor e encantamento. Heleno era
impiedoso como a ironia, que fere; Garrincha era límpido e generoso, como o
riso, que conforta. Entre os dois jogadores, cujos tempos míticos se somam, e
se eternizam, nasceria também para a perpetuidade alvinegra, um craque
magistral.
Um dia,
consumido de saudades botafoguenses, escrevi um breve poema sobre Nilton
Santos. Quanta majestade no trato de uma bola! O moço jamais fez um truque com
a bola. Só fazia arte. Nilton não era um jogador de futebol, era uma
exclamação. Tu em campo parecias tantos/ E, no entanto - que encanto - eras um
só: Nilton Santos.
O torcedor do
Botafogo tem um coração repleto de memoráveis cintilações: convivem, na mesma
estrela, dribles insondáveis de Garrincha, passes impressentidos de Didi,
antevisões de Nilton Santos, cismas de Carlito Rocha e gols, muitos gols, de
Heleno de Freitas, cada um mais épico que o outro.
O Botafogo sou
eu mesmo, sim senhor!
2 comentários:
Prezado Rui Moura.
Obrigado por reproduzir este texto do Armando Nogueira.
É uma maravilha!
Não tem de quê, Humberto. A virtude maior é a existência do texto! (rsrsrs) E texto bom do Botafogo, eis-me reproduzindo!!!
Abraços Gloriosos.
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