Crédito: Placar, 01.05.1981
por MÍLTON COSTA
CARVALHO
in Revista Placar
Eles se fingiram de
mortos por mais de uma década. Mas só fingiram: bastou o time realizar uma boa
campanha e os botafoguenses surgiram de todos os cantos. Cheios de fé, mais
apaixonados do que nunca.
Eles não aparecem na porta do vestiário para saudar os
heróis que vão entrar em campo: pode dar azar, quebrar a corrente, mexer com a
sorte do time. Mas, na arquibancada, na geral, nas cadeiras, brotam de todos os
lados. Já não são apenas 18 e nem cabem mais numa kombi, como teimam em espalhar
as torcidas inimigas. São velhos (poucos), rapazes (muitos) e garotos
(milhares) que, em três jogos do Maracanã, formaram uma multidão de mais de 300
mil pessoas.
“Uma verdadeira nação”, alardeia um torcedor. E é
verdade: em 80,contando todos os campeonatos e amistosos, o Botafogo arrecadou
pouco mais de 29 milhões. Este ano, só na Taça Ouro, já conseguiu mais de 33
milhões.
Subitamente, a estrela solitária – símbolo tão amado – voltou
a figurar na paisagem de uma cidade que, nas duas últimas semanas, adorou o
preto e o branco como suas cores oficiais. Nas lojas, não há mais estoques de
bonés, camisas e bandeiras do Botafogo. No Maracanã, em Marechal Hermes,
tremulam bandeiras velhas e encardidas que, no passado, reverenciaram os
dribles fascinantes de Mané Garrincha, as jogadas do mestre Nilton Santos, os
lançamentos precisos de Gérson, as arrancadas e os gols da dupla
Jairzinho-Roberto.
Há um toque de nostalgia neste renascimento do Botafogo,
estampado nas feições incrédulas dos torcedores mais velhos. Há também um toque
de coisa nova, de energia jovem flutuando no ar, como se, de repente, um novo
time e uma nova torcida tomassem toda a cidade. Com força de sua fé e de suas
superstições.
São seis horas da manhã e o telefone toca no apartamento
do repórter Ricardo Carpenter, o Fantasma,
do Jornal dos Sports. Meio grogue,
ele atende a chamada, ouve por alguns segundos a voz do outro lado da linha e
pergunta espantado:
– Ué, mas o treino não é às nove?
A resposta de Luís Oliveira, vice-presidente de futebol
do Botafogo, vem na hora:
– É, mas você não se lembra da antevéspera do jogo com o
Bangu? Meu despertador deu problema e eu te acordei às seis em vez das sete. E
não deu certo? Não vencemos? Você é ou não é um botafoguense? Então, vista-se,
vamos.
Ricardo Carpenter, o Fantasma
E lá vai o pobre Fantasma,
com seus 60 anos, madrugando em Copacabana e seguindo no carro do dirigente
rumo ao distante subúrbio de Marechal Hermes.
E nem se diga que essa onda de superstição atinge apenas
torcedores e cartolas. Nas últimas partidas, o craque Mendonça tem entrado em
campo com a camisa 8 e o calção 13. “Sei que não pode”, explica Mendonça. “Mas
desde que recebi o calção errado do roupeiro, o Botafogo começou a ganhar.
Então, dou um jeitinho – coloco a mão na frente escondendo o número 13para o
juiz não ver.”
Em meio à intensa atividade da semana passada, o roupeiro
Cosme conseguiu uma dispensa para ir e voltar no mesmo dia a Aparecida do
Norte. Levou consigo a camisa de Mendonça e um pacote de velas. Trouxe uma
imagem da Padroeira do Brasil, agora presente no vestiário, onde velas ardem
por todos os lados. O outro roupeiro, Jair, está ameaçando dormir com o calção
do ponta-direita Édson, como fazia nos tempos de Garrincha.
Sexta-feira, dia de treino, a arquibancada de Marechal
Hermes recebe uma rapaziada alegre – ah, como fazia tempo que a torcida não ia
ver treino em Marechal Hermes, como costumava fazer em General Severiano; ah,
como fazia tempo que um jogador do Botafogo não dava mais de três autógrafos
seguidos. Mas, de repente, o clima de festa é quebrado pela notícia que bem de
um rádio: “O presidente Charles Borer, de sua casa em Muriqui, informa que irá
assistir aos jogos finais do Botafogo”.
Pânico geral. Um torcedor exaltado pede o endereço de
Borer: “Vou lá e faço um apelo: presidente, desde que o senhor deixou o futebol
de lado, passamos a vencer. Não vá lá, por favor”. Não foi preciso: a notícia
era apenas boato.
De toda forma, a torcida continua vigilante e atenta para
qualquer detalhe que possa quebrar o encanto do Botafogo. Quando Luís Oliveira
antecipou de sábado para sexta-feira à noite o jogo contra o Santos, em São
Paulo, ela chiou porque não pôde acompanhar. Mas logo rendeu-se aos argumentos
de Oliveira: depois do empate (2 a 2) com o Mixto, gol do adversário no último minuto,
ele encomendou uma análise astrológica sobre o momento do futebol. E jamais
jogar aos sábados foi a primeira recomendação dos astros.
Mais: na vitória de 1 a 0 sobre o Bangu, primeiro jogo da
segunda fase, aconteceu um desencontro entre os membros da diretoria. Resultado:
todos tiveram de deixar seus carros no Mourisco e seguir às pressas de táxi até
o hotel Regina, onde se juntaram aos jogadores e, de ônibus, foram para
Marechal Hermes. Como o Botafogo venceu, desde então aqueles diretores,
vestindo as mesmas roupas, passaram a seguir o mesmo itinerário – e o ônibus do
clube, que antes era exclusivo dos jogadores, já está ficando pequeno para
tantos passageiros.
Aliás, o Rio de Janeiro inteiro parece pequeno para esta
legião de botafoguenses que ressurgem vindos de onde, não se sabe. Nas redações
de jornais, rádios e tevês, o Botafogo é maioria ou divide as preferências com
o Flamengo. E, ali também, não faltam os supersticiosos. Na seção desportes de O Globo, por exemplo, o radinho de pilha
está colocado na mesma posição desde que o Botafogo passou a vencer – e ninguém
pode ou ousa demovê-lo. O editor de esportes amadores, José Antônio Gerhein,
está proibido de sair de sua cadeira – assim acompanhou as duas últimas partidas.
Como é aflito e sofrido botafoguense, aceita tudo com resignação.
No jogo contra o Flamengo, seu colega de redação Luís
Roberto Porto desapareceu quando Zico foi cobrar uma falta. Não suportando a
pressão, preferiu ouvir o jogo no pátio de estacionamento – solitário, trancado
em seu carro e dando murros nos bancos a cada gol perdido. E quando estava Fla
1x1 Bota, o repórter Washington Rope resolveu deixar o Maracanã. Ao se
aproximar de seu carro, no estacionamento do estádio, lembrou-se de que estava
no mesmo local, quase na mesma posição, quando Rondinelli, aos 41 minutos, fez
o heroico gol, de cabeça contra o Vasco, na conquista do título de 78. Trêmulo,
entrou no carro, suou frio – pra sua sorte, o Mengo não fez mais gols; seu
Botafogo marcou dois.
Espontaneamente, sem qualquer premeditação, botafoguenses
do Rio inteiro, do Brasil inteiro, do mundo inteiro, parecem de mãos dadas numa
corrente de pensamento positivo. Até mesmo grupos de oposição já falam em se
unir à situação para formar um grande time e vencer o campeonato carioca – “a
nossa grande meta”, como faz questão de frisar Luís Oliveira.
É o renascimento do botafoguismo, que teve em Carlito
Rocha, sem dúvida, seu maior representante e grande guia. No jogo de
quarta-feira contra o São Paulo, por exemplo, um botafoguense passou o tempo
todo dizendo:
– Se preocupa não, Paulo Sérgio. Carlito Rocha vai
agarrar tudo.
Um botafoguismo que tem no jornalista Sandro Moreyra um
seguidor fiel e bem-humorado:
– O que é botafoguismo? Ora, é o que levou o médico de
Charles Borer a proibi-lo de vir a campo. Ele fez isso não para preservar a
saúde de seu paciente, mas para impedir que Borer secasse o time.
Na cabine da Rádio Tupi, o comentarista João Saldanha, sempre
apaixonado, fala para todo o Brasil:
– Édson e Rocha são dois jogadores de Seleção. Não vejo
por que ficaram de fora, ainda mais com o Tita na ponta.
E, virando-se para um amigo ao lado, fora do microfone,
completa:
– E não é botafoguismo, não.
É claro que é. Um botafoguismo sadio que tomou conta do
Rio. Um botafoguismo que não se via há uma década. Um botafoguismo que fez
reviver uma cena que marcou tantas infâncias e que poucos jovens de hoje já
viram: a estátua do Manequinho, no Mourisco, novamente vestida com a camisa
alvi-negra, estrela solitária no lado esquerdo peito. Como nos bons tempos de
61, 62, 67, 68. Como nos bons tempos de Garrincha, Didi, Gérson, Jairzinho,
Roberto, Paulo César…
Fonte: Revista Placar, 1 de maio de 1981.