por JOÃO MOREIRA SALLES | Botafoguense, Cineasta e Documentarista | Publicação
na Revista Piauí e reprodução parcial por Fogao.net
João Moreira Salles contou, entre outras, histórias impressionantes de torcedores
alvinegros que evidenciam claramente o nosso perfil e elevada estatura
desportiva.
Fê-lo na Revista Piauí, e o Portal Fogaonet reproduziu algumas dessas
histórias, tendo o Mundo Botafogo selecionado três histórias que se referem ao
que “é ser Botafogo”.
Se quiser ler mais excertos, acesse Fogao.net; se quer ler o fantástico
texto completo, leia a Revista Piauí, nº 210, de março/2024.
História 1
“Por que torcer? O que sobra de
tanto investimento emocional mal correspondido? Aí é que está: sobra a torcida.
Não qualquer uma, mas esta torcida. Sobra a sua beleza, a sua integridade.
Sobra muita coisa. 
Um amigo com quem almocei depois das derrotas
para Palmeiras e Grêmio sofria com o sofrimento do filho: “Por que eu fiz isso
com ele?”, penitenciava-se. “Por que eu passei pro meu filho essa certeza do
sofrimento?” O lamento dizia respeito apenas ao menino, nunca a ele próprio.
Não conheço nenhum botafoguense que tenha se arrependido da escolha que fez (e
fica para outra hora discutir se é mesmo uma escolha). Nenhum voltaria atrás –
e, vamos combinar, isso exige explicação.
História 2
Quando a vaca já estava com três patas no brejo, cruzei na rua com um pai
barrigudinho e sua filha pré-adolescente. Os dois vestiam a camisa do Botafogo,
alheios ao risco das gozações que àquela altura começavam a pipocar na cidade.
Fui até eles e elogiei o brio. Brio porquê? “Por causa das viradas, dos gols no
último minuto, do campeonato que estamos entregando”, respondi. “Você é
Botafogo?”, perguntou o pai. Sim. “E tá desanimado?”, prosseguiu com certa
rispidez. Olhei para a filha, que me fez um sinal aflito de
pelo-amor-de-Deus-não-envereda-por-aí-não. Ela ainda tentou contemporizar:
“Pai…” Mas o pai não queria conversa: “Você não é um botafoguense de verdade.
Nunca foi fácil. Se você já desistiu é porque não entende o que é ser
Botafogo.” “Paaaai…”, a filha implorou. Antes que eu conseguisse me defender,
ele a tomou pela mão, os dois me deram as costas e seguiram em frente. Fiquei
ali, pasmo. E certo de que sou botafoguense por causa de gente como eles.
Porque é difícil não admirar uma capacidade tão grande de amar sem exigir
recompensa.
História 3
Em 2019, passei alguns
meses no Pará para escrever a série Arrabalde, sobre a Amazônia. Num fim de
semana em Belém, visitando a feira de livros da cidade, percebi que um rapaz me
seguia pelos corredores dos estandes. Eu dobrava uma esquina, ele dobrava a
esquina. Eu parava, ele parava, sempre a cinco ou seis passos de distância. A
coisa seguiu assim por algum tempo, até que uma senhora me abordou. “Você é o
João Salles?” Assenti. “Desculpa. É que eu estou com o meu filho ali e ele é
muito tímido. Ele queria muito falar com você, mas está passado de vergonha.
Você pode dar um minuto pra ele?” Podia, claro. A mãe acenou para o rapaz, que
se aproximou sem tirar os olhos do chão. Tinha uns 16 anos e sinais de acne
adolescente no rosto. Estendi a mão. Ele tentou dizer alguma coisa, mas travou.
Quis ajudá-lo, e, como estávamos num ambiente de leitores, arrisquei: “Você
gosta de jornalismo e lê a Piauí?” Ele arregalou os olhos e se virou para a
mãe. Além de encabulado, agora estava confuso. Afoito, mudei a chave e pulei
para outra atividade minha: “Ah, você gosta de cinema e se interessa por
documentários?” Piorou: ele soltou um gemido, sofria cada vez mais e não
entendia uma palavra do que eu dizia.
Eu tinha esgotado a minha
munição. “Será que você tá falando com a pessoa certa?”, perguntei. Ele
confirmou com a cabeça. “Então como posso te ajudar?” Criando coragem, ele
murmurou: “É o Botafogo.” A situação do time claramente determinava parte não
insignificante da alegria e da tristeza do rapaz. Naqueles dias, lutávamos para
escapar do rebaixamento. Como se não bastasse, a nossa situação financeira era
crítica. Eu vinha participando de um esforço coletivo de captação de recursos
para ajudar o Botafogo a respirar um pouco, e por isso talvez o rapaz
imaginasse que eu poderia saber de alguma boa novidade sobre o nosso clube do
coração (não sabia). “Teu pai é botafoguense?”, perguntei. “Não”, ele
respondeu. “Tua mãe?” Não. “Um tio, um irmão, um padrinho, um parente?” Não.
“Um amigo de escola?” Também não. Eu estava ficando ansioso. “Então por que
você é Botafogo?”, insisti. Ele entendeu que falávamos a mesma língua e
respondeu de bate-pronto, me olhando pela primeira vez nos olhos: “Não sei, só
sei que o Botafogo é muito importante pra mim.” Quando era mais novo, tinha
visto um jogo pela televisão e “soube na hora”: “Esse era o meu time e eu não
ia conseguir torcer pra mais ninguém. Não consigo não pensar no Botafogo.”
Nunca me esquecerei desse encontro. De todas as escolhas que um adolescente
tímido e socialmente desajeitado pode fazer para se tornar mais popular, virar
botafoguense não é das mais indicadas. Que esse jovem esteja em Belém, a mais
de 3 mil km do Rio de Janeiro; que more numa cidade onde raramente acontece um
jogo do Botafogo; que ele não tenha idade para ter visto o seu clube erguer
alguma taça relevante; que tenha sofrido as tantas decepções dos muitos anos de
vigência da nossa mediocridade; que, apesar de tudo, não tenha desistido; e,
principalmente, que o seu amor seja gratuito, sem influência de parentes ou de
amigos, fruto portanto de uma eleição soberana, que esse rapaz seja o resultado
desse conjunto de circunstâncias tão raras – isso é em tudo maravilhoso. Pede
um tipo de pessoa especial, capaz de decidir por si o seu caminho, indiferente
à sedução da popularidade. É mais seguro e reconfortante fazer parte da
maioria.
O encontro também me fez compreender
algo sobre mim. Me lembro de sentir uma ponta de orgulho ao me dar conta de que
o rapaz me reconhecera por eu ser botafoguense. Para ele, era essa a minha
identidade; para mim também é. Intimamente, o que me faz Botafogo me descreve
bem mais do que o que me faz documentarista, por exemplo. Não sei explicar
porquê. O que posso dizer é que estou mais à vontade na minha pele quando penso
que sou Botafogo do que quando penso que sou alguém que faz filmes ou que
escreve para a revista. Não sei se alguém escolhe o time de futebol pelo qual
torce. Como para o menino de Belém, cujo nome infelizmente não guardei, virar
botafoguense talvez estivesse inscrito na minha sina, mais ainda do que na
minha vocação. Como se ele e eu não tivéssemos a liberdade de não ser
alvinegros. Como se fôssemos predispostos por temperamento a torcer por esse
time.
Fontes: Redação FogãoNET e Revista Piauí.

 
 
 
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8 comentários:
Ser botafoguense se trata de um estilo. Não esses do modismo. Um estilo que em você é adotado sem se dar conta. Uma grife. Meu pai era botafoguense e America de Natal. Nunca pediu para torcer. A influência foi a convivência.
Vanilson, é curioso que a maioria dos botafoguenses com quem me relaciono têm um estilo realmente próximo. Às vezes penso isto: não havia maneira de eu não ser botafoguense (rsrsrs).
Abraços Gloriosos.
Muito boas histórias, só um botafoguense consegue compreender esse amor.
Fui escolhido ser botafoguense, para mim foi natural, pois todos os meus familiares próximos eram botafoguenses e, mesmo passando por tantas decepções nas últimas décadas nunca me arrependi de ser torcedor do Botafogo, pelo contrário, sou cada vez mais convicto de ser torcedor do time que me escolheu. Quem viu os grandes times que o Botafogo teve e voltará a ter, nunca conseguirá torcer para outro time. Abs e SB!
Amigo Sergio, não sei se escolhi ou se fui escolhido, o certo mesmo é que - como respondi ao Vanilson - "não havia maneira de eu não ser botafoguense". (rsrsrs)
Abraços Gloriosos.
É verdade. Quem ainda criança viu Garrincha, Nilton Santos, Amarildo, Quarentinha, adolescente vi Gerson, Manga, Jairzinho, Roberto Miranda, PC Caju, Rildo, chega né! Não tinha como não ser botafoguense, ainda mais nascendo numa família de botafoguenses e, frequentando GS desde os 3 anos de idade. Um dia te conto da minha aventura no vestiário das jogadores de basquete do Botafogo, tinha 3 anos, meus pais é que me contaram essa história. Abs e SB!
Vi esses todos e ainda o 'Príncipe Etíope', Didi. Histórias de GS e ida a GS nesse tempo é que eu não tenho, a não ser já como adulto. A minha família era vascaína. E tinha um tio que gostava muito do América. Que inveja boa tenho de si com idas a GS em criança e adolescente! E fico ansioso para que um dia me possa contá-las.
Abraços Gloriosos.
Caro Rui, mais uma vez vou clonar seu precioso trabalho de pesquisa botafoguense... Gloriosas Saudações Alvinegras!
Pode clonar, amigo Chico, mas, neste caso, limitei-me a reproduzir Moreira Salles, atribuindo-lhe, obviamente, a autoria da publicação. Tudo bem consigo?... Mais animado para 2024 com este Botafogo difícil de altos e baixos?... (rsrsrs)
Abraços Gloriosos.
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