BOTAFOGO: Campeão Carioca a 22 de
dezembro de 1957 com uma formidável goleada de 6x2 sobre o pó-de-arroz.
por Nélson Rodrigues
Manchete Esportiva, 28.12.1957
Depois da
fabulosa goleada botafoguense*, a escolha do meu personagem da semana deixa de
ser problema.
É Paulinho,
só pode ser Paulinho. E aqui eu pergunto: — quem é Paulinho? Antes do jogo era
um e agora outro. Seu nome passou a exigir uma pronúncia mais enfática. E, no
entanto, vejam vocês: — até há bem pouco tempo era um sujeito irritante.
Quantos gols perdia por jogo, quantos! Parecia, mal comparando, um Valdo talvez
piorado. Sabe-se que, nos primeiros tempos, a especialidade de Valdo era perder
gols que uma cambaxirra faria. Pois bem: — Paulinho não lhe ficava atrás.
Sempre que, por circunstâncias jornalísticas, eu vi jogos do Botafogo, Paulinho
atirava pela janela oportunidades deslumbrantes.

Debaixo dos
três paus, ele mandava por cima, pelos lados, mas para dentro, nunca. Num
espanto profundo, eu perguntava a um e outro: — “Como pode? Como pode?”. E
Paulinho não estava longe de me parecer um caso perdido. Justiça se lhe faça,
porém: — perdendo quinze gols por um que fazia, Paulinho jamais deixou de ser
um jogador raçudo. Lutava de fio a pavio, até a última gota de suor. Corria em
campo como um coelhinho de desenho animado e, além disso, nunca fugiu do pau.
Ora, o público venera os craques sem medo e
que molham, encharcam a camisa, numa honesta e máscula transpiração. E como
Paulinho suava mais que os outros, como tinha brancas hemorragias de suor, todo
mundo o respeitava, inclusive eu. Sim, Paulinho nunca brincou em serviço.
Em cada
partida, faz um honrado esforço de noventa minutos. Domingo, finalmente, chegou
o grande dia de Paulinho. Senão vejamos: — um jogador que enfia cinco gols na
última batalha, na batalha que vai decidir a guerra, esse jogador é um monstro.
Depois da peleja, vejo um alvinegro gemendo. A princípio, pareceu-me que seria
uma cólica. Engano. Não era cólica: — era espanto. E, com efeito, ele ainda
pasmava para a exorbitância numérica de tantos gols conseguidos por um único
cidadão. O botafoguense bufava: — “Cinco! Cinco!”.
Outro
alvinegro veio cochichar-me, ao ouvido: — “Viste aquele gol de letra que
Paulinho fez?”. Tomo um susto: — “De letra?”. E, de fato, na minha dolorosa e
ignara perplexidade, eu não me lembrava de nenhum gol de letra. Mas, como
Paulinho meteu tantos, comecei a admitir que tivesse enfiado um de letra
também. Só depois é que dei pelo equívoco. O chamado gol de letra fora o de
bicicleta. Conto o episódio para que vocês observem o fenômeno. Já há quem
esteja idealizando os tentos de Paulinho. Os cinco gols já nasceram históricos.
Retocados por uns e outros, eles invadem o folclore. A lenda e a anedota estão
funcionando, desde domingo. Daqui a pouco, quando se contar a história dos
cinco gols, não se saberá discernir entre a ficção e a realidade.
O meu
personagem da semana é, desde domingo, uma dessas glórias súbitas que, de vez
em quando, rompem num domingo de futebol. Antes do jogo, quem era a vedete, a
prima-dona, a estrela máxima do ataque alvinegro? Didi. Com o seu magnífico
tipo racial de príncipe etíope de rancho, ele se destacava furiosamente. Logo
depois, vinha Garrincha, que o treinador húngaro Giula Mandi considera, e eu
também, o maior ponta-direita do mundo. Paulinho valia, sobretudo, pela
desesperada abnegação do seu esforço. Estava, porém, bem abaixo de Didi e de
Garrincha. Mas, a partir do momento em que Malcher pôs um ponto final na
partida de domingo, Paulinho já não está mais abaixo de ninguém. Pode erguer a
cabeça e bater no peito: — “Eu sou eu!”.
Imagino que,
domingo, ao entrar em campo, ele não era um jogador como qualquer um, como
qualquer outro. Era alguém em estado de graça ou, ainda, em estado de anjo. Sua
tremenda euforia não foi de jogador, nem mesmo de gente. Só mesmo um anjo faria
tantos gols num jogo decisivo. Vejam bem: — minuto a minuto, foi de um fôlego
bestial. Não parava. Ele, sozinho, nas suas penetrações alucinantes, bastava
para dinamizar a peleja, para dramatizá-la. Foi com ele que começou a
desintegrar-se a defesa tricolor. Ah, o duelo de Paulinho com Pinheiro! Foi
algo de trágico. Eu vos digo: — Pinheiro, atrás de meu personagem, parecia uma
maciça, uma compacta catedral perseguindo um coelhinho. E como Paulinho cortou,
envolveu, ceifou, dizimou e devastou Pinheiro! Alguém me dizia, depois da
batalha: — “Não fosse Paulinho, teríamos empatado de 1x1 e seríamos campeões!”.
Mas houve Paulinho e, diante dos 6x2, do histerismo numérico do escore, a
vontade que dá a qualquer um é sentar no meio-fio e chorar. Não há raciocínio
possível contra a goleada cósmica. E convenhamos: — os cinco gols de meu
personagem da semana deviam estar, desde domingo, numa vitrine de museu.
* Botafogo
6x2 Fluminense, 20/12/1957, no Maracanã. A goleada deu o título carioca de 1957
ao alvinegro.
2 comentários:
Meu pai e meu irmão com 9 anos de idade estavam no Maraca nesse 22/12/1957. Infelizmente tinha apenas 2 anos. Que inveja eu tenho deles, no bom sentido é claro. Abs e SB!
Inveja absoluta tenho eu!!!
Sérgio, é o único jogo de futebol em que eu gostaria de estar e não estive e que daria sei lá o quê para ter estado. Mas não vivia no Brasil ainda nem tinha idade para desfrutar.
Fica a espinha cravada na garganta... (rs)
Abraços Gloriosos!
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