sábado, 4 de junho de 2016

O craque que não estava lá

por LÚCIO BRANCO

– “Aí, maluco... Vou te enganar não, hein? Essa parada de ter que vencer o tempo todo é a maior derrota”.

O aforismo foi proferido com a autoridade de quem acabou de passar pela experiência de não vencer e, coerentemente, não dar muita importância a ela. Tão paradoxal quanto o seu significado é a aparência do seu emissor, um quase septuagenário de trejeitos mais joviais que o da maioria dos seus colegas – quase todos na casa dos 20 – do Radical Contra FC, time que o elegeu patrono e que estreava, na ocasião. Foi em maio do ano passado, no campo do Municipal Paquetá FC.

Nei da Conceição Moreira, o Nei Conceição, o clássico ex-volante do Botafogo de uma era em que a posição ainda ignorava a denominação de ‘cabeça de área’, jogou por volta de uns dez minutos. Mais para dar, simbolicamente, a saída de bola, do que, propriamente, para enfrentar os quase noventa minutos de jogo sob o sol que castiga a Ilha do Amor. Ele envergou a camisa 5. Nela, um escudo traz a efígie do anarquista espanhol Buenaventura Durruti. Horas antes, um membro do time comentou que, por conta da presença do craque nas suas fileiras, nunca um emblema foi tão ‘emblemático’. O placar, que favoreceu uma espécie de seleção local, não alterou em nada o humor daquele que, no seu auge técnico, era visto como o sucessor de Danilo Alvim. Pelo próprio, diga-se. (…)

O bom mocismo subserviente é cláusula prevista em qualquer estatuto clubista. Está lá para decretar o enterro de tantos gênios da bola. Só não se pode dizer que Nei fosse vítima dela porque sempre recusou esse papel. No fim, quem perdeu foi o futebol brasileiro. Já que havia jogadores dispostos a jogar conforme as regras da submissão mais dócil, as torcidas perderam a chance de ver o maior da posição daquela geração atuando com mais frequência desde o apito inicial das partidas. O que, como não é surpresa, incluiu a seleção, para a qual, injustamente, as convocações não foram em número suficiente. Não é incomum ouvir que ele era tecnicamente muito superior a Clodoaldo, dono absoluto da 5 à época. (…)

Ao lado dos então novatos Jairzinho, Roberto Miranda e Rogério, pôde aprimorar o dom assistindo diariamente às atuações de Garrincha, Nilton Santos, Quarentinha etc. Ganhou a condição de titular absoluto após a transferência de Gérson para o São Paulo, em 1969. Foi um daqueles raríssimos reservas de luxo que teriam a titularidade garantida em qualquer clube do mundo que não contasse com o Canhotinha de Ouro e/ou comissões técnicas e dirigentes tão equivocados. (…)

O técnico Zagallo, mesmo tendo sido testemunha diária do seu temperamento em General Severiano, não abriu mão de tê-lo entre os primeiros convocados logo que assumiu o grupo que viria a se sagrar, meses depois, tricampeão na Copa do México, em 1970. Mas a aposta não foi muito longe: acabou barrando-o. O motivo alegado? Indisciplina. (…)

“Deixem que falem de mim o que quiserem” – é o que diz Nei Conceição sem precisar mexer a boca. Essa mensagem, ele reserva à indiferença do olhar quase sempre distante. Não há como ser mais eloquente. É um silêncio de quem conhece, na pele, a sanha estigmatizante de técnicos disciplinadores, de cartolas sempre atrás de um pretexto para explorar ainda mais o patrimônio dos clubes, e de uma imprensa apenas preocupada em lançar factoides para alimentar uma demanda que ela mesmo cria. Se o preço foi ter caído num relativo – e certamente perverso – ostracismo, Nei o paga sem problemas. Ele prossegue sem culpa, arrependimento ou nostalgia, nunca abdicando do mesmo pendor pela contestação que marcou a sua relação com o mundo profissional do futebol. Melhor do que ninguém, o craque sabe que, nesse mundo, esperar compreensão para com um jogador com alma de artista é inútil. (…)

Os ponteiros do relógio pessoal de Nei Conceição têm vida própria, funcionam conforme um compasso fora do tempo ordinário. Internet e celular não têm funcionalidade alguma para ele. E por que deveriam ter? Sem dilema algum, simplesmente optou por não adotá-los. (…)

José Cosme, o ‘Muga’, seu amigo de longa data, dá o veredicto: - “É o maior niilista que eu já conheci”. É um juízo que tem o seu sentido. Definitivamente, Nei não se dá a importância que lhe dão. Um traço de comportamento que lembra Nilton Santos. Só que nele há algo de um Baal, personagem-título da primeira peça de Brecht. A diferença para o protagonista brechtiano está no seu senso coletivo. A liberdade de que desfruta não a deseja apenas para si. Desde cedo reparou que há algo de muito errado na forma como as pessoas encaram as próprias vidas, conformando-se a – e com – elas. Nei se situa além da vida, com a rara qualidade de não caber em si mesmo, por mais clichê que seja definir assim uma personalidade que prime pela transcendência.

Excertos de um artigo sensacional cujo texto completo se encontra em http://www.museudapelada.com/neiconceicao/Imagens: Marcelo Tabach.

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