por LÚCIO BRANCO
– “Aí,
maluco... Vou te enganar não, hein? Essa parada de ter que vencer o tempo todo
é a maior derrota”.
O aforismo
foi proferido com a autoridade de quem acabou de passar pela experiência de não
vencer e, coerentemente, não dar muita importância a ela. Tão paradoxal quanto
o seu significado é a aparência do seu emissor, um quase septuagenário de
trejeitos mais joviais que o da maioria dos seus colegas – quase todos na casa
dos 20 – do Radical Contra FC, time que o elegeu patrono e que estreava, na
ocasião. Foi em maio do ano passado, no campo do Municipal Paquetá FC.
Nei da
Conceição Moreira, o Nei Conceição, o clássico ex-volante do Botafogo de uma
era em que a posição ainda ignorava a denominação de ‘cabeça de área’, jogou
por volta de uns dez minutos. Mais para dar, simbolicamente, a saída de bola,
do que, propriamente, para enfrentar os quase noventa minutos de jogo sob o sol
que castiga a Ilha do Amor. Ele envergou a camisa 5. Nela, um escudo traz a
efígie do anarquista espanhol Buenaventura Durruti. Horas antes, um membro do
time comentou que, por conta da presença do craque nas suas fileiras, nunca um
emblema foi tão ‘emblemático’. O placar, que favoreceu uma espécie de seleção
local, não alterou em nada o humor daquele que, no seu auge técnico, era visto
como o sucessor de Danilo Alvim. Pelo próprio, diga-se. (…)
O bom
mocismo subserviente é cláusula prevista em qualquer estatuto clubista. Está lá
para decretar o enterro de tantos gênios da bola. Só não se pode dizer que Nei
fosse vítima dela porque sempre recusou esse papel. No fim, quem perdeu foi o
futebol brasileiro. Já que havia jogadores dispostos a jogar conforme as regras
da submissão mais dócil, as torcidas perderam a chance de ver o maior da
posição daquela geração atuando com mais frequência desde o apito inicial das
partidas. O que, como não é surpresa, incluiu a seleção, para a qual,
injustamente, as convocações não foram em número suficiente. Não é incomum ouvir
que ele era tecnicamente muito superior a Clodoaldo, dono absoluto da 5 à
época. (…)
Ao lado dos então novatos Jairzinho, Roberto
Miranda e Rogério, pôde aprimorar o dom assistindo diariamente às atuações de
Garrincha, Nilton Santos, Quarentinha etc. Ganhou a condição de titular
absoluto após a transferência de Gérson para o São Paulo, em 1969. Foi um
daqueles raríssimos reservas de luxo que teriam a titularidade garantida em
qualquer clube do mundo que não contasse com o Canhotinha de Ouro e/ou comissões
técnicas e dirigentes tão equivocados. (…)
O técnico
Zagallo, mesmo tendo sido testemunha diária do seu temperamento em General
Severiano, não abriu mão de tê-lo entre os primeiros convocados logo que
assumiu o grupo que viria a se sagrar, meses depois, tricampeão na Copa do
México, em 1970. Mas a aposta não foi muito longe: acabou barrando-o. O motivo
alegado? Indisciplina. (…)
“Deixem que
falem de mim o que quiserem” – é o que diz Nei Conceição sem precisar mexer a
boca. Essa mensagem, ele reserva à indiferença do olhar quase sempre distante.
Não há como ser mais eloquente. É um silêncio de quem conhece, na pele, a sanha
estigmatizante de técnicos disciplinadores, de cartolas sempre atrás de um
pretexto para explorar ainda mais o patrimônio dos clubes, e de uma imprensa
apenas preocupada em lançar factoides para alimentar uma demanda que ela mesmo
cria. Se o preço foi ter caído num relativo – e certamente perverso –
ostracismo, Nei o paga sem problemas. Ele prossegue sem culpa, arrependimento
ou nostalgia, nunca abdicando do mesmo pendor pela contestação que marcou a sua
relação com o mundo profissional do futebol. Melhor do que ninguém, o craque
sabe que, nesse mundo, esperar compreensão para com um jogador com alma de
artista é inútil. (…)
Os ponteiros
do relógio pessoal de Nei Conceição têm vida própria, funcionam conforme um
compasso fora do tempo ordinário. Internet e celular não têm funcionalidade
alguma para ele. E por que deveriam ter? Sem dilema algum, simplesmente optou
por não adotá-los. (…)
José Cosme,
o ‘Muga’, seu amigo de longa data, dá o veredicto: - “É o maior niilista que eu
já conheci”. É um juízo que tem o seu sentido. Definitivamente, Nei não se dá a
importância que lhe dão. Um traço de comportamento que lembra Nilton Santos. Só
que nele há algo de um Baal, personagem-título da primeira peça de Brecht. A
diferença para o protagonista brechtiano está no seu senso coletivo. A
liberdade de que desfruta não a deseja apenas para si. Desde cedo reparou que
há algo de muito errado na forma como as pessoas encaram as próprias vidas,
conformando-se a – e com – elas. Nei se situa além da vida, com a rara
qualidade de não caber em si mesmo, por mais clichê que seja definir assim uma
personalidade que prime pela transcendência.
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