por LÚCIA SENNA, escritora e cantora
escrito para o blogue Mundo Botafogo
“Olha a pamooooonha! Tem pamonha quentinha, tem curau de milho verde, tem
mugunzá, canjica e cuscuz... Tem pamonha grande, pamonha pequena, pamonhão, muuuuuita
pamonha... o puro gosto da fazenda”.
E lá vinha o Carro, surgindo na
nossa rua de terra batida, com o autofalante alguns decibéis acima do
recomendado, trazendo para o portão Dona Maria que não resistia a uma pamonha
fresquinha e caseira, tampouco a um curau de milho verde e seus derivados. Com a boca cheia d’água e os olhos de criança
comilona, sentava-se na rede da varanda e agora, sim, fartava-se com as
delícias que o milho lhe proporcionava. Dava gosto ver! Depois desse banquete,
o corpo pesado pedia mais que uma rede, uma cama pra se espreguiçar e quem sabe
sonhar com os seus tempos de menina, tempos difíceis, bicudos, de pouco vintém,
porém de muito lirismo e liberdade no sítio da vó Maria.
Além de uma pamonha fresquinha e
caseira, Dona Maria não resistia a muitas outras coisas.
Sentar na rede sem embalar, nem
pensar! Não assistir ao dia se pôr? Ah! Por favor! Passar um dia sequer sem
cantar? Definitivamente, não dá! Também não resistia de jeito algum a um bom
papo, a reuniões familiares (suas preferidas) e a uma boa piada
apimentada, pois as de salão, pra falar
a verdade, não era com ela, não. Gostava não só de ouvir como de contar, mas
havia um porém: ria tanto que ninguém entendia nada, mas a risada era tão
contagiante que todos acabavam chorando de rir e o final da piada jamais era
contada.
Pois é, Dona Maria não resistia a
muitas coisas... Chocolate era uma delas. Poder não podia não, chocolate tem
gordura; faz mal ao coração. “Bolas, que diacho!” Dizia a reclamona. O meu pai,
continuava, morreu com mais de noventa anos comendo ovo frito toda noite. E eu, que ainda estou na casa dos oitenta,
não posso comer uma inocente barrinha de chocolate? Eu hein! Me deixem, me
deixem... Já abrindo outro bombom com ar
desafiador.
Na realidade, Dona Maria era ‘boa
de boca’. Na hora do almoço, família reunida à mesa, era ela a primeira a se
sentar e a última a sair. Feijão preto era um prato especialíssimo, desde que
fosse ‘solteiro’. Você ficou sem
entender o que vem a ser um ‘feijão solteiro’? Eu explico: ‘feijão solteiro’
nada mais é do que um feijão, digamos, puro, ou seja, sem linguiça, paio, carne
seca, sem nada, além do próprio feijão. Um feijão desacompanhado, um feijão
solitário, tímido, cabreiro, solteiro.
Vegetariana por natureza, era
dureza até mesmo sentir o cheiro de qualquer espécie de carne, abrindo exceção
para os peixes e, ainda assim, só os de ‘cara miúda’, pois os de ‘cara grande’,
há muito deixara de comer. E se lhe perguntavam a razão, a resposta vinha
pronta: “Sinto que eles têm sentimentos e, portanto, sinto muito, mas não como,
não”. Adorava linguado até o dia em que tomou conhecimento, por um pescador de
Rio das Ostras, que o tal peixe só tinha um olho. Nunca soube se a informação
procedia, mas categórica decidiu: “Se só tem um olho não pode ser boa coisa;
deve ser mau caráter. Não como mais”.
Dona Maria talvez não soubesse, mas era poeta. Ou melhor, tinha olhos de poeta. Via beleza
em tudo. Nada escapava ao seu olhar colorido. As árvores desgalhadas do outono,
o tapete de folhas caídas, amarelo/avermelhadas, que se formava em baixo das amendoeiras e dos
flamboyans, o nascer do dia
homenageado pelo canto dos mais variados pássaros, o entardecer com o sol se
pondo no horizonte, a lua (Ah!, a lua…), as estrelas piscando confidentes, a
estrela cadente, as Três Marias, o Cruzeiro do Sul, alguns planetas vistos e
admirados através de luneta, a chuva, o
sol, o vento, o mar, as ondas, as conchas, as cores, as flores e... o Carro da
Pamonha!
Dona Maria, já disse, não
resistia a muitas coisas... Dona Maria, ela sim, era um
ser humano irresistível ! Amava a vida e por ela era amada.
Mulher à frente do seu tempo. Mulher
guerreira, valente, sangue quente, jamais se deixou abater pelas tempestades
que um dia, lá na sua juventude, teve que enfrentar. Vítima de uma sociedade
preconceituosa, livrou-se deles e viveu sem amarras, sem medo, sem
ressentimentos, sem culpas nem desculpas, arcou com o ônus, usufruiu o bônus, lidou com o certo, com o
errado e, como toda mulher, soube o valor de um talvez, aboliu certezas, jamais
foi dona da verdade, nunca negou idade e nem estado civil. Soube viver com
total dignidade tudo o que lhe coube viver.
“Olha a pamooooonha, tem pamonha quentinha, tem curau de milho verde,
tem mugunzá...”
E tem muita, muita saudade de
Dona Maria, que sabia, sim, dar valor a uma deliciosa pamonha fresquinha e
caseira, mas que soube, como poucos, saborear a vida em todas as suas nuances e
matizes.
33 comentários:
Mãe!
Você me deixou muito emocionado.
Vi a minha avó em cada palavra,em cada linha e foi uma viagem longa e bonita. Você foi brilhante.
Que saudade das nossas férias em Rio das Ostras, das cantorias de vocês duas nas redes, da alegria que ela tinha de viver e de tantas e tantas marcas positivas que ela deixou em cada um de nós.
Hoje é um dia de aperto no coração.
A homenagem está linda. E o carro de pamonhá, perfeito.
Te amo muito.
Beijos.
Mãe,
Teu texto é o retrato da nosua avó
Conseguiste descrevê -lá com perfeição. O parágrafo final é de arrepiar. Es demais!
Recordar é viver,dizem.
Eu revivi através da tua crônica toda a nossa infância, adolescência
Ela sempre presente e nos fazendo rir com o seu jeito engraçado de ser. SAUDADES,MUITAS SAUDADES.
OBRIGADO POR NOS TRAZER DE VOLTA TANTAS E TÃO BOAS RECORDAÇÕES.
TE ADORO!!!!
MARCOS
Belo texto, capturaste a essência da tia Mariinha, que via beleza em coisas do cotidiano, as quais não damos valor e que são tão belas como um simples pôr-do-sol. Você bem falou da pamonha, já a lembrança tão presente na minha mente, como se fosse há poucos instantes, era subir no abieiro, e colher alguns abius para sua mãe, e ela de forma engraçada dizia para mim: “Rodrigo, ainda está mais gostoso porque é do quintal do vizinho”. Rsrs.
É, querida Lúcia, como diz Mário Quintana, uma das frases que sempre tenho em mente: " O tempo não pára. Só a saudade é que faz as coisas pararem no tempo".
Beijos,
Rodrigo
Lucia,
Me arrepiei !Me deu vontade chorar.Sempre tive uma enorme admiração pela Mariinha. Não sabia das estórias com a pamonha, contudo, a descrição dela está perfeita. A síntese também: uma guerreira. Dona do próprio nariz enfrentou vicissitudes e percalços sem perder o humor. Senti muita saudade dela.
beijos,
Ney
Lucia,
Muito linda a crônica! Vi a tia Mariinha em todas as frases, parabéns!
Bjs,
Luciana
Ai, essa Dª Mariinha era uma delícia de pessoa mesmo e seu senso de humor, imbatível! Quantas gargalhadas demos, amiga querida, com aquele jeito natural que ela tinha de dizer coisas inusitadas. Era uma companhia assídua a nos acompanhar nas tardes dançantes da nossa pré-adolescência. Nós duas sempre ríamos com algum comentário que fazia sobre nossos possíveis pares, formados por rapazes ainda imberbes e tímidos. Essa saudade, amiga querida, não é só sua. É partilhada por todos aqueles que, como eu, tiveram o privilégio de conhecê-la. Beijo grande. Maria Inês
Mariinha - a origem provável da soberba 'inteligência emocional' da escritora Lúcia Senna.
Lacaio de ti, rainha, as palavras procuro,
Um certo temor de não as encontrar assome,
Consigo escandir, de certa maneira inseguro,
Indeciso, um salto mortal perigoso, apuro
Apenas um ponto forte / fraco entre teu nome:
Mãe e amiga, excelente parceira, mulher
Atenta ao correr do rio bravio da vida,
Retendo-o pra explicar aos outros, se quisesse
Insinuar qualquer coisa, meter a colher
Assim, suave e sábia, pelo humor, tão querida!
Saudade ao anoitecer, quando em vez, te entristece
E balanças a rede balançando as lembranças,
Nelas embebida, todas, por demais, presentes,
Nelas, recordadas, através dos sóis poentes,
A crônica desvenda e o confessional alcanças...
Sérgio Sampaio
www.umpoetinha.com.br
Lindo texto,cheio de pequenos detalhes que só mesmo muito amor para perceber. Maria, carregava consigo um amor infinito por todos que estavam a sua volta.Com seu jeito alegre,amável e gentil,conquistava a amizade e o carinho de todos.Saudades!!carmem cardoso
Lúcia, estou encantada com sua crônica por ter retratado fielmente com jeitos e trejeitos essa criatura maravilhosa que foi D. Mariinha, que viverá eternamente em minhas lembranças também! Parabéns!!!!!!
Graça
Lúcia
Estive viajando e por isso estava sumido.Mas não me esqueci de ti e dos teus belos textos.Chego e mais uma vez me surpreendo com uma crônica belíssima sobre tua querida mãe. Es muito versátil, Lúcia.
Já li alguns escritos teus muito engraçados, outros mais sérios, mas este é absolutamente poetico.
Vais da comédia à poesia com a mesma sabedoria encantadora e que nos deixa fascinado por tua marcante personalidade.
Sem te conhecer,conheço -te,pois quem escreve como tu escreves deixas
a tua alma à mostra.
Teu grande admirador,
MÁRIO
Rui
Quando mencionei "caminho das pedras" pulei uma palavra: caminho das pedras preciosas.
Está corrigido o absurdo erro.
Acabei de ler essa crônica em homenagem à mãe e é espetacular.
Tão real que parece até que a conheci . Surpreendente!
Lúcia
Só uma palavra : Meus parabéns!
Maurício
Assim entendi, Maurício. (rs) Estou de acordo, Maurício. As crônicas da Lúcia são fantásticas, mas esta... esta da 'sua' Mariinha, é absolutamente soberba de alma! É Lúcia no seu esplendor de profundas emoções!
Abraços Gloriosos, companheiro.
Lembro-me de D. Mariinha, super mãe, mas o que me chamava a atenção era sua paixão pela filha. Quando as amigas saíam juntas com a Lucia, ela não parava de ligar, querendo saber de tudo e era muito divertida quando ia com as amigas. A verdade é que ela era apaixonada pelos netos, amigos, por todos. Era muito lindo. Deixou muitas saudades. Sonia Costa.
Tivemos momentos inesquecíveis e isso , agora, é o que nos vale. Ensinou-me a viver e acho que fui uma boa aluna. (kkk) Deixou marcas profundas em cada um de nós.
Jamais será esquecida e a maior prova está aqui - nessa grande quantidade de comentários postados.
Também te amo.
Beijos, querido
Recordações e nada mais! Assim é a vida. Cunpriu sua missão lindamente. Esteve presente em todos os momentos que foi possível estar, envolvendo-nos com seu jeito especialíssimo de ser. Foi uma mulher e tanto! Sorte nossa de ter tido uma mãe/avó tão iluminada.
Também te amo.
Beijos.
Oi, Rodrigo
Que surpresa bacana!!! Sei o quanto vocês se gostavam. Ela tinha uma admiração enorme por você. Era surpreendente a intensa correspondência que vocês trocavam. Afinal a diferença de idade era absurda. No entanto, isso parecia não fazer nenhuma diferença.
Guardo todas as cartas com o maior carinho. Só não tenho coragem de ler. Tenho medo das minhas emoções, covarde que sou (kkk).
Obrigada, Guigo.
Um grande abraço.
Oi, Rodrigo
Que surpresa bacana!!! Sei o quanto vocês se gostavam. Ela tinha uma admiração enorme por você. Era surpreendente a intensa correspondência que vocês trocavam. Afinal a diferença de idade era absurda. No entanto, isso parecia não fazer nenhuma diferença.
Guardo todas as cartas com o maior carinho. Só não tenho coragem de ler. Tenho medo das minhas emoções, covarde que sou (kkk).
Obrigada, Guigo.
Um grande abraço.
Oi, Lulu
Obrigada , querida, pelo carinho.
Bjs.
Amiga, querida
Deixaste-me com vários nós na garganta. As lembranças vieram aos borbotões. Ri muito, chorei, fiquei emocionada e... pensativa. Comprei uma adesivo e colei na geladeira: " A VIDA É MUITO CURTA PARA SER PEQUENA". Acho que a Mariinha sabia disso. Essa citação é a carinha dela.
Teu comentário está lindo. Valeu, minha amiga!
Bjs,
Maurício,
Só quatro palavrinhas: Obrigada por tanto carinho!
Ruy,
Difícil encontrar palavras que expressem a enorme admiração que tenho por ti.
Todas ficam muito aquém do meu sentimento. Inútil insistir.
Obrigada, querido amigo
Beijos gloriosos
Graça,
Concordo contigo, amiga. Consegui retratá-la bem direitinho. Bons tempos passados em Rio das Ostras, onde ficávamos nas redes da varanda a ouvir teu estoque interminável de piadas e a Mariinha se acabando de tanto rir.
É disso que gosto de me lembrar!
Obrigada, Gracinha.
Beijos
Carmita, querida
" Maria carregava consigo um amor infinito por todos que estavam a sua volta"
Resumiste , com perfeição, o jeito de ser da Mariinha. Soube ser feliz!
E eu, continuo sendo sua aprendiz!
Obrigada, amiga.
Beijos
Oi, Mário
Obrigada pelo bonito comentário. Minha mãe e eu tínhamos uma ligação incomum. Devo ao Ruy, meu editor e querido amigo, essa bela homenagem, pois foi ele que me incentivou a publicar o texto no blogue. Estou muito feliz e agradecida. O retorno foi absolutamente extraordinário!
Aproveito para te desejar felicidades em 2017.
Abraços,
Oi, Ruy
É preciso muita habilidade, muito talento para perceber , avaliar e administrar nossas próprias emoções e também as emoções do outro e de maneira positiva.
Gostaria imensamente de ter essa " soberba inteligência emocional" que me atribuis.
Mais uma vez tua generosidade fala mais alto e acabas por me conferir qualidades
que, sinceramente, não sei se tenho.
Beijos,
Pois sinceramente penso que terás que dedicar algum tempo a ti mesma para perceberes que a minha 'generosidade' é o reconhecimento de uma realidade. Pudera eu ter essa 'inteligência emocional'...
Beijos Gloriosos.
Ah!, Sônia... Era mesmo assim como dizes (kkk ).Vocês ficavam admiradas com as ligações que recebia e sempre me perguntavam se eu não ficava aborrecida com o que vcs. consideravam " controle". E eu sempre respondia que triste ficaria quando isso não mais acontecesse. Hoje em dia ninguém mais me pergunta pra onde vou, se vou demorar ou não, com quem vou ou que horas vou voltar. Será que isso é tão bom assim? Será?
Bem...mas a vida é do jeito que é e ponto. Como diz o Lulu Santos " Nada do que foi será,
do mesmo jeito que já foi um dia, tudo passa, tudo sempre passará... A vida vem em ondas como o mar...".
Obrigada , querida
Beijos
Oi, meu primo querido
Também acho que GUERREIRA é a palavra exata para definí-la. Admiro-a demais. Enfrentou barras pesadíssimas ( nós sabemos) e conseguiu manter a alegria de viver. Isso, pra mim, é LINDO!!!!
Tomara que continue espalhando amor e simpatia em algum lugar desse Universo. TOMARA!!!!! (kkk)
Beijos,
Sérgio,
Já não concordo com o teu " poetinha". És um POETA de primeira grandeza.
Obrigada por tão lindos versos.
Beijos,
Lúcia,
Já li todas as suas crônicas, seguindo a orientação do Rui.
Aliás o blog é muito organizado.
Tenho tido momentos de grande prazer.
A pergunta que não quer calar é a seguinte : Quais são os dias qu as crônicas são publicadas. Qual é a periodicidade?
Quem pode me responder: o Rui ( editor) ou a Lúcia ?
Desculpe-Me Lúcia, mas acho que deve ser o seu editor.
Só mais uma coisa: Você
é excelente cronista!
Maurício .
Maurício, independentemente da resposta da Lúcia posso adiantar que as crônicas não têm um tempo definido de publicação. Já foram publicadas crônicas com 7 dias de diferença e outras com 17 dias.
Mas se aceder diariamente ao blogue encontrará a Lúcia Senna por aí... (rs)
Abraços Gloriosos.
ahhhhhhhhh Dona Maria, que saudade!!!!
Que vontade de abrir uma janelinha no tempo e ir lhe dar um beijo, um abraco, o simplesmente ve-la com seu sorriso calmo de quem sabe que está tudo bem. Nos conhecimos tao pouco e tanto ao mesmo tempo. Com a dona Maria aprendí a ter alegria em um abacaxi de sobremesa, uma saída pro almoço no Ekkos ou uma ligação desde uma viagem dizendo que estávamos bem. Que saudade dela! Do sorriso, da alegia, de um abraço.
Obrigada por nos fazer lembrar, mas na verdade nós a temos todos os dias como um anjo que cuida nossos passos.
Te amamos Brux, saudades Dona Maria, a amamos tb.
Oi, Maurício
Acertaste, meu amigo. O Ruy é que decide o melhor momento de publicar os textos.
Ele, Maurício, sabe tudo de tudo. É um craque! Deves ter lido sobre o incrível sucesso do blogue que chegou a atingir em um só dia o recorde de 22.222 acessos.
É isso mesmo, Maurício : 22.222 acessos em um só dia ( 09/01).
Não há necessidade de dizer mais nada. Os números alcançados pelo MB falam por si mesmos. Portanto, acato e apoio toda e qualquer decisão do Ruy sobre a periodicidade das crônicas.
Sei que estou em excelentes mãos.
Obrigada pelo carinho de sempre.
Abraços,
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