domingo, 18 de agosto de 2019

Botafogo, um paradoxo do futebol

Desde os seus primeiros dias, até hoje, o futebol, a organização de um time, passou a ser coisa complexa, em que entram em jogo uma série de fatores, quase sempre com íntima ligação com o sucesso de uma equipe no campeonato. São as concentrações, os departamentos médicos, os técnicos, com a necessária autoridade sobre os jogadores, como complemento indispensável de seus conhecimentos técnicos. Isso tudo afora outros pequenos detalhes correlatos, tudo, enfim, de transcendental importância quando se fala no futebol dos nossos dias. Pois bem, e apesar de todos os clubes seguirem esse "standard" de organização, apesar do reconhecimento tácito de que tudo isso é necessário para colher-se vitórias em campo, há um clube carioca que parecerá um completo paradoxo. Falamos do Botafogo e o leitor poderá ficar espantado disso, depois de ler acima esses detalhes todos. E concluirá que o Botafogo tem tudo isso, não havendo, pois, lógica em chamá-lo de paradoxo do futebol carioca. E para melhor conclusão ainda pode-se argumentar que o Botafogo tem mostrado capacidade técnica suficiente para ganhar partidas importantes, chegando inclusive bem colocado em todas as temporadas. É, mas nada disso impede que o Botafogo tenha que ser considerado um paradoxo, e tudo por uma série de fatos que são do conhecimento de muita gente, passam-se todos os dias, e no entanto não impedem que o Botafogo seja um grande quadro em campo.

CONCENTRAÇÕES PARA INGLÊS VER

De fato o grêmio alvi-negro segue, aparentemente à risca, todas as formas de organização das equipes modernas. Não se esquece, por exemplo, em General Severiano, das concentrações, e vários têm sido os locais em que os jogadores alvi-negros têm sido reunidos para o repouso necessário ao bom desempenho nos jogos do campeonato. Todos os clubes fazem o mesmo e o grêmio da estrela solitária estaria apenas no caminho certo. Mas acontece que, ao menos quando Carlito Rocha era o presidente, os técnicos tinham ordem de dar alguma liberdade aos craques. Zezé Moreira, por exemplo, nunca se conformou com isso, e esse terá sido um dos motivos de sua saída de General Severiano. E sabe-se que outro técnico, dos mais jovens, mas de renome, chegou a estar em francos entendimentos com os jogadores, mas quando Carlito falou na liberdade aos jogadores o técnico fez que tinha uma idéia diferente da preparação do quadro de futebol. É claro que Carlito nunca mais procurou esse técnico. E assim a concentração dos botafoguenses existe, mas praticamente no papel, porque os jogadores ficam concentrados, mas com liberdade de ausentarem-se do local. O Botafogo andou por Petrópolis e outros locais, mas nenhum deles satisfez, e, ainda na temporada passada, acabaram hospedados num hotel de Santa Tereza. E lembramo-nos de que, durante o dia, quando íamos à cata de reportagens, dos botafoguenses só um ou outro era encontrado. Concentração, praticamente, só mesmo para dormir.

LEVANTANDO ÀS SETE DA MANHA

Falamos em dormir, no sono dos jogadores, e, por Isso, vamos contar uma passagem interessante da vida alvi-negra, vivida numa das concentrações fora do Rio na temporada passada. À noite, à falta de outra distração, organizou-se animado jogo de cartas, no qual participava o próprio técnico da equipe. E as horas foram passando, madrugada a dentro. Já era bem tarde quando vários jogadores, entre bocejos, resolveram terminar com a distração. Acontece, entretanto, que os jogadores é que estavam ganhando, razão da terminante recusa do técnico em dar por encerrado o jogo. E assim as cartas estiveram sobre a mesa até às seis da manhã... O pior aconteceu pouco depois, pois que Carlito Rocha, de nada sabendo, chegou jovial, às dependências de seus "meninos". Ele sempre era pontual na questão do levantar, e às sete horas, sem um minuto a mais ou a menos, ia acordar todo mundo. Bateu as mãos com seu vozeirão, e não deixou nenhum na cama, olhando para os sonolentos e achando que estavam dormindo demais... Era dia de regressar ao Rio, para o jogo, e o epílogo foi que naquele dia todos vieram dormindo até ao Rio, nos bancos do ônibus...

AFINAL, TUDO ACABA DANDO CERTO

E assim, vivendo ao contrário do que mandam as modernas normas de preparação dos quadros de futebol, o Botafogo acabava atuando bem. Parecia até que era para mostrar que toda essa história de concentração não vale nada. Mas qualquer outro clube, por muito menos, acabava tendo maus resultados em campo. E o próprio Botafogo terá tido os seus prejuízos dessa fuga à trilha certa. Quem sabe se o caso do Madureira, que tanto trabalho está dando, não teve suas origens num caso esquisito desses? Bem poderá ser, mas nem por isso o Botafogo deixará de ser um paradoxo, porque um só jogo bastaria para que êle fosse até campeão de fato, enquanto que durante todo o ano o ritmo de atividades do quadro de profissionais era esse. E apesar de tudo o Botafogo vencia. Há ainda um caso especial como o de Otávio, que preferiu regalias a dinheiro. Pouco se compreende que um jogador tenha regalias, sem que isso influa nos outros jogadores, mas o fato é que Otávio não gostava de concentrações, e não ia mesmo. Mas como é um rapaz elegante, também não ficava em casa para dormir às nove da noite, e quem quisesse marcar encontro com êle, certamente, teria logo em mente uma das boîtes da cidade. Mas não tinha importância não, porque, quando chegava no dia do jogo, êle acabava marcando um gol e estava tudo muito bem. Ou se não, aparecia Ariosto com seu pouco jogo, mas sempre pronto a marcar um goal decisivo. Assim é o Botafogo, um paradoxo do futebol.

QUANDO TUDO PODE SER MILAGRE

Para o ex-presidente Carlito Rocha tudo isso pode ser verdade, mas não tem importância nenhuma, pois que ele era o primeiro a achar que o rigor com os jogadores de nada adiantava. E depois, êle tinha uma série de remédios para evitar que o time perdesse. Inventou até o Biriba, e com êle levantou o campeonato de quarenta e oito... E quando estranhavam que êle se houvesse apegado por tal forma a uma mascote, exclamava: "Eu, mas nem conhecia o Biriba…” E retratos do dirigente alvinegro com o famoso cachorrinho, há aos montes. E para ajudar a fazer valer os sortilégios de sua mascote, Carlito não deixava que seus jogadores passassem por baixo de escadas e outras coisas mais. E quando o citado treinador que esteve em suas cogitações respondeu que deixava seus jogadores perfeitamente à vontade com respeito à religião, estranhou como um time pudesse jogar sem que todos tivessem ido à missa. Talvez a todos esses fatores Carlito deva as vitórias que conquistou e a colocação que chegou no campeonato, porque do contrário não se pode entender a atuação do quadro, face a tudo que se sabe por aí. Realmente, é o Botafogo um paradoxo do futebol carioca.

Fonte: O Globo Sportivo, Ano XIV, nº 679, 16.02.1952, pp. 4-5.

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