por MÁRIO FILHO
Coluna
‘Da Primeira Fila’
O
Globo Sportivo, 06.05.1949
1
Naquele domingo Geraldo Romualdo demorou-se em General
Severiano. O Botafogo tinha vencido o América. Ora, quando o Botafogo vence e o
jogo é em General Severiano, todos os graduados do “Glorioso” vão para o bar do
clube, e lá ficam, batendo um papo, bebendo cerveja, guaraná e água mineral. De
quando em quando um jogador passa. Se é o Heleno, o Schmidt se levanta, sai
atrás dele, depois volta, com um ar de quem acaba de cumprir um dever.
“Bebiano, com o Heleno você não precisa mais falar”. “Eu já falei”. Bebiano
compreende, todos compreendem. Falar com Heleno quer dizer meter a mão no
bolso. O bate-papo demora, muitas vezes, até às tantas. Naquele domingo, quando
Geraldo Romualdo foi para casa, era tarde. Durante o caminho ele só fez abrir
bicas de sono. “Logo que eu me deitar – disse ele à Raquel – vou dormir até
amanhã de um sono só”.
2
Não foi como Geraldo Romualdo imaginou. De madrugada ele
acordou, sentou-se na cama, acendeu a luz do abat-jour. Depois é que tratou de
arrumar as ideias. Graças a Deus tinha sido um sonho. Sonho, não, pesadelo.
Geraldo Romualdo sonhara com o jogo Bonsucesso e Botafogo. Depois de um
Botafogo e América, o Botafogo tendo vencido, como vencera, Geraldo Romualdo
não podia escolher, para sonhar, um tema mais agradável do que um jogo com o
Bonsucesso. Sonhar com um Bonsucesso e Botafogo era sonhar com um cinco a zero,
no mínimo, a favor do Botafogo, é claro. Pois Geraldo Romualdo não sonhara com
cinco a zero, sonhara com um a um. Quando o Bonsucesso marcara o goal ele até
achara graça. O Botafogo, porém, não saiu do empate.
3
Bem que Geraldo Romualdo esperou. Não acordou logo. Só acordou quando Potengy
apitou, sacudindo os braços, avisando que o match acabara. Potengy não tivera
nenhuma culpa. Enquanto estava sentado na cama, procurando se lembrar do sonho,
Geraldo Romualdo não se lembrou de nenhum penalty, de nenhum goal anulado. O
Potengy, convenceu-se Geraldo Romualdo, não tivera nenhuma culpa. Às vezes
sucedia isso: a culpa não era do juiz. Tudo saía errado. Graças a Deus –
repetiu Geraldo Romualdo, desta vez alto, tão alto que Raquel se mexeu na cama
– foi um sonho. Não era um consolo. Nada justificava um sonho daqueles. O Botafogo
passeara em campo com o América, nunca Geraldo Romualdo vira o Botafogo jogar
tanto. Ora, se as emoções de um dia influem no sonho da gente, Geraldo Romualdo
tinha de sonhar um bom sonho.
4
Quando acaba tivera um pesadelo. Pior pesadelo do que aquele não podia ter,
ninguém do Botafogo podia ter. Se o Botafogo andasse jogando mal, vá lá, se o
jogo não fosse com o Bonsucesso, ainda se compreendia. E justamente porque o
sonho não tinha pé nem cabeça – avalie o Botafogo empatando com o
Bonsucesso - Geraldo Romualdo acreditou
nele. Não queria acreditar e acreditava. A primeira coisa que ele me disse, na
segunda-feira de manhã, quando veio para o trabalho, foi: “Você sabe o que
sonhei? Que o Botafogo empatava com o Bonsucesso, por um a um”. “Qual era o
juiz?” – perguntei. “O Potengy – respondeu o Geraldo. – Mas não teve culpa,
apitou até direitinho. Você compreende, há jogos em que um juiz não pode fazer
nada”.
5
Aquela hora todo o Botafogo estava avisado. Geraldo Romualdo, que não dormira
mais, pegou o Bebiano, pelo telefone, ainda em casa. O Bebiano sai para a
fábrica às seis horas da manhã. Pois às cinco e meia o Geraldo estava
telefonando para a casa do Bebiano. “Aconteceu alguma coisa, Geraldo?” “Ó
doutor Bebiano, nem queira saber. Sonhei que o Botafogo empatava com o
Bonsucesso”. “E você acredita nessas coisas, Geraldo?” “Bem que eu não queria
acreditar, doutor Bebiano. Mas o senhor veja: eu devia sonhar coisas
agradáveis. O Botafogo deu um baile no América, não vai enfrentar o Vasco nem o
Flamengo, vai pegar o Bonsucesso”. “Talvez você tenha comido alguma coisa
pesada, Geraldo”.”Eu comi o que o doutor Bebiano comeu. Bebi guaraná, provei
uns sanduíches”.
6
Ademar Bebiano agradeceu a informação de Geraldo Romualdo.”Foi bom, Geraldo,
você ter sonhado uma coisa dessas”. “Ó doutor Bebiano, acha mesmo que foi bom?
Se eu soubesse que ia sonhar uma coisa dessas não dormia, passava a noite em
claro”. Ademar Bebiano explicou porque achava bom. “O Botafogo fica prevenido,
Geraldo. Você já falou com o Bengala?” “Ainda não, doutor Bebiano”. “Pois você
deve falar com o Bengala, avisar a todo o mundo”. Sabendo que o Geraldo tinha
sonhado com um empate no jogo com o Bonsucesso, os jogadores do Botafogo entrariam
em campo de outra maneira. “E eu, doutor Bebiano, aconselharia uma
concentração”. “Claro, Geraldo, claro, o Botafogo não pode deixar de ficar
concentrado. Faz de conta que o jogo é contra o Vasco”.
7
Fazia de conta que o jogo era contra o Vasco. Não foi por
falta de aviso, de treino, de concentração, de nada. O que tem de ser tem
força. E no fim se verificou que Geraldo Romualdo não tivera um pesadelo,
sonhara. O um a um do pesadelo de Geraldo Romualdo era um sonho, um belo sonho.
O Botafogo não empatou, perdeu o jogo. De qualquer maneira, embora o sonho de
Geraldo Romualdo fosse melhor, bem melhor do que a realidade, o pessoal de
General Severiano ficou com medo que ele sonhasse outra vez. Todos os dias,
durante a semana do jogo com o Canto do Rio, o pessoal de General Severiano
queria saber se Geraldo Romualdo tinha sonhado. “Você sonhou, Geraldo?” “Não
sonhei”. Quer dizer, sonhara, mas nada que interessasse. “Ainda bem”.
8
Está claro…que ninguém do Botafogo podia pedir para Geraldo
Romualdo não dormir mais. Se fosse um dia só, talvez. Mas como é que se podia
adivinhar o dia do sonho? É hoje. Podia ser hoje, amanhã, qualquer dia, quando
menos se esperasse, como naquele domingo do jogo Botafogo e América, o menos
indicado para um pesadelo. Geraldo Romualdo, porém, começou a receber convites
para ir à Urca. Quem convidava era Carlos Machado. “Mandei reservar uma mesa
para você, Geraldo”. Se o Geraldo ia à Urca, Carlos Machado prendia-o, não o
deixava sair antes das quatro horas. Condução difícil, Geraldo Romualdo não ia
chegar a casa antes das cinco. E como tinha de entrar no trabalho às sete, não
podia dormir, mesmo se estivesse morrendo de sono.
9
A semana do jogo com o Canto do rio ainda passou. Uma coisa daquelas – o
Botafogo perdendo do Bonsucesso – só sucedia uma vez. Qualquer pessoa de bom
senso tinha de tirar da cabeça, logo e logo, a menor dúvida sobre o resultado
do match Botafogo e Canto do Rio. A partida ia ser em general Severiano, alguém
tinha de pagar aquele um azero da estrada do Norte, e esse alguém era o que
estava mais à mão: o Canto do rio. Depois o Botafogo, quando jogava mal um
match, jogava o seguinte bem, não havia castigo. Chamava-se a isso costela. O
perigo não estava em general Severiano, estava em Álvaro Chaves. E o placard de
General Severiano, seis a zero, fez com que o Botafogo, que jogava mal um match
para jogar o outro bem, temesse ainda mais a partida com o Fluminense.
10
Geraldo Romualdo foi o primeiro a mostrar-se pessimista.
“Você sonhou alguma coisa, Geraldo?” “Não sonhei, ma sustou com um pressentimento”.
“Pressentimento não adianta”. Mas se o Geraldo estava com u pressentimento – e que
pressentimento! – era um perigo que ele dormisse e sonhasse. Não podia sonhar
coisa boa. “Geraldo, a gente não pode pedir a você que passe a semana sem
dormir. Mas se você não sonhar até sexta-feira, no sábado tem de fazer um
sacrifício pelo Botafogo”. “Qual?” – Geraldo Romualdo perguntou com a voz de
quem está disposto a fazer o que se vai pedir, seja o que for. “No sábado você
não dorme. A gente arranja um belo programa para você. Você não se
arrependerá”.
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