sábado, 1 de abril de 2023

A caveira no espelho | The skull in the mirror, Mr. Textor

por NELSON RODRIGUES | Jornalista desportivo (1912-1980)

In O Globo, 28 de dezembro de 1963

Amigos, sou um admirador profundo do cinema italiano. Bem me lembro dos meus tempos de menino. Sempre que havia uma fita de Francesca Bertini, lá estava eu, com meus seis, sete anos salubérrimos. E a Bertini deslumbrava a minha infância. Santa e, como diria Augusto dos Anjos, abominabilíssima senhora! No momento mais dramático dos filmes, ela saía pelas portas, aos urros e às patadas. E se alguém a beijava, eis a vamp antediluviana querendo subir pelas paredes como uma lagartixa profissional.

Assim era no tempo da cena muda. Mas, com a passagem dos anos, o cinema foi mudando. Menos o italiano, que continuou fiel ao próprio povo. A Bertini passou. Mas outras a substituíram, e seguindo uma linha parecida. E o cinema atual da Itália está cada vez mais feroz e cada vez mais esbravejante. Pode-se dizer que ele repôs o urro no centro do drama humano. Suas atrizes, ainda as mais sóbrias, são desgrenhadas viúvas sicilianas. Francesca Bertini está mais viva, mais atual, mais obsessiva do que nunca.

Faço toda esta volta pelo cinema italiano para chegar ao Botafogo. É, com efeito, o clube mais passional, mais siciliano, mais calabrês do futebol brasileiro. Um tricolor pode torcer em surdina, pode cochichar, pode suspirar. O botafoguense, porém, é de uma extroversão ululante como nos velórios da Sicília. Lembro-me de uma vizinha que torcia pelo Botafogo. Por uma funesta coincidência, casara-se com um rubro-negro. E o casal discutia muito sobre futebol. Uma vez, houve um Flamengo x Botafogo. E não sei se ganhou o Flamengo, ou se ganhou o Botafogo.

Só sei que, na volta do jogo, os dois vinham brigando. Foi lindo quando desembarcaram do táxi. A doce vizinha berrava: — “Te bebo o sangue!”. Tiveram de chamar a radiopatrulha ou do contrário ela descascaria a carótida do marido para chupá-la como laranja. Nessa implacabilidade está o charme da torcida botafoguense. Esse tom, essa efusão, essa agressividade, essa ira, ou estertor de ópera, de filme italiano, é que dá o tom justo aos homens de General Severiano.

E, além disso, como o italiano da anedota, o alvinegro autêntico paga para sofrer. O alvinegro autêntico, repito, prefere a catástrofe. E, quando o time perde, ele se realiza. Pode clamar, espernear, arrancar os cabelos, amaldiçoar e soltar os cães de sua ira. É a vocação da calamidade que torna inconfundível o botafoguense irreversível.

Na Sicília, quando um moribundo escapa de morrer, a quase viúva cai em frustração. Ela se sente espoliada do seu defunto e respectivo velório. É a mesma tristeza do alvinegro que não tem nenhum pretexto para soluçar as suas mágoas clubísticas. Felizmente, este ano o Botafogo perdeu o tricampeonato. E seus fanáticos podem descarregar, em todas as direções, o seu potencial de ira.

Cabe então a pergunta: — e por que o Botafogo perdeu o tricampeonato? Ora, eu não sou botafoguense e posso me dar ao luxo de um mínimo de isenção e de objetividade. A meu ver, o Botafogo começou a perder o tricampeonato quando negociou Didi. Há uma verdade eterna, em futebol, que é a seguinte: — todo clube precisa ter uns tantos bens inegociáveis. E não há preço que pague um bicampeão mundial. Didi teria que envelhecer em General Severiano até se converter numa múmia gagá.

O Botafogo continuou a perder o tricampeonato quando pensou, simplesmente pensou, em vender Garrincha. Um clube que admite, mesmo como hipótese, a venda de um Mané tem mesmo a tal vocação da catástrofe. O Botafogo perdeu de vez o tricampeonato quando vendeu Amarildo. Negociando o “Possesso”, que marcou os dois gols contra a Espanha, o alvinegro estava querendo ver, no espelho, a própria caveira. Há também a ausência de Garrincha. Mas o joelho do Mané não é um problema cirúrgico, e repito: — o joelho é apenas um castigo.

Agora a conclusão: — se o Botafogo quis vender o Mané, e se negociou Amarildo, e se entregou Didi — é porque queria se dilacerar no arrependimento e na expiação.

Disponível em https://acaopopular.net/jornal/botafogo-vende-vitinho-e-nos-lembra-uma-cronica-eterna-de-nelson-rodrigues/

2 comentários:

Sergio disse...

Curiosamente no ano de 63 o Botafogo com Didi, Amarildo e Garrincha, esse mesmo não estando no seu auge depois do ápice em 62, o Botafogo não só teria mais chances de conquistar o tri carioca muito provavelmente teria.maior possibilidades na LA.
Curiosamente as 3 vezes que o Botafogo teve a chance de conquistar o tri carioca a partir de 62, foram cometidos erros crassos. Em 69 faltou comando para controlar as vaidades e o imbróglio com o Gerson, preferiram o nadador e em 91 o Emil se desfaz do Gottardo deixando ir para o rival , contrata o Renato Gaúcho e o deixa sair na véspera do jogo decisivo contra o Flamengo, além de contratar um técnico inexperiente em relação a elencos profissionais.
O Nelson Rodrigues tinha um percepção aguçada em relaxa não só ao clube BFR, mas sobretudo sobre sua torcida, e não existe nada mais atual em relação a torcida botafoguense que esse texto: quando o Botafogo atual perde os desaforos a tudo dentro do clube, e em especial ao Luís Castro. Quando ganha o inconformismo se dá porque o time não jogou bem, mesmo que tenha feito uma exibição razoável o suficiente para vencer, e naturalmente a culpa é do Castro e o time só venceu por causa dos seus jogadores, mas quando perde a culpa nunca é dos jogadores, é sempre do seu treinador, e isso é histórico. Talvez a única exceção da qual me recordo é em relação ao Cuca,neste era sempre isento, a culpa sempre era do Lúcio Flávio, chamado de Pantufa, ou do Leandro Guerreiro que virava Gayrrero, ou do Alessandro, era sempre assim, mesmo que o Cuca tenha cometido erros absurdos. Enfim, torcedor é isso mesmo, mas o botafoguense é muito passional, e nisso eu me incluo em diversas ocasiões. ABS e SB!

Ruy Moura disse...

Cuca não só cometeu erros absurdos, Sergio, dentro e fora do jogo. Cuca não é um homem de elevado caráter como se constatou em diversas ocasiões. Teve a sorte da torcida do Botafogo se deixar enganar com as juras de amor ao Glorioso, mas quando foi convidado por duas vezes para relançar o Botafogo, escusou-se. E gosto tanto, mas tanto do Cuca, que se tivesse que escolher entre ele e o Barroca, eu escolheria o Eduardo Barroca, que me parece ter muito melhor caráter. Há certa gente que pelo seu perfil eu faço questão que o Botafogo de hoje saiba manter a devida distância.

E nos casos da não concretização do tricampeonato, em minha opinião considero que as maiores responsabilidades foram dos presidentes e respectivas diretorias.

Abraços Gloriosos.

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