quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

ANCESTRALIDADE

por SOL DE ANLAREC | Colunista do Mundo Botafogo

Há um ano atrás, num raro encontro com primos d’além-mar, um deles me repassou documentos que obtivera após pesquisa sobre nossos antepassados. Soube, então, quais eram os nomes de meus bisavós e trisavós paternos!

Chegando em casa, montei um quadro, e, partindo do meu nome, fiz toda a cadeia retroativa até chegar aos meus oito trisavós. Os ponteiros do relógio do tempo retrocederam aproximadamente 200 anos na minha cabeça. Que bizarro!! Aqueles desconhecidos tinham gerado meus dois avós; e estes, meu pai!

Cara, que fantástico!! Impossível não desenvolver uma certa ansiedade sobre essas pessoas. Se fôssemos todos da nobreza, não haveria qualquer dificuldade para conhecer seus rostos e saber de suas vidas.

Mas, como não é esse o caso, acabei engrenando uma verdadeira viagem na maionese, fantasiando sobre suas aparências e seus cotidianos. Só consegui imaginar o quanto a vida lhes deve ter sido dura! Pensem numa isolada aldeia portuguesa aos pés da Serra da Estrela, em pleno século 19!

Sacaram? Nada de luz elétrica! Nada de água encanada! Nada de supermercados! Nada de loja de departamentos! E, para piorar: nada de Internet!

Retornando os ponteiros para a época atual, tomei ciência de que nunca tinha desenvolvido qualquer laço afetivo com meus avós. Isso se explica: fui uma garota criada muito longe deles. Só vim a conhecer os rostos de minhas avós por meio de fotos antigas. Quem conhece sabe: aquelas com tamanhinho reduzido e péssima qualidade de imagem.

Ou seja, antes de receber aquela informação, meus avós me eram quase como seres alienígenas: distantes, ausentes e sem qualquer familiaridade. Não havia ainda me interessado pela história deles, quanto mais a dos que os precederam!

Foi uma sensação estranha...

Despertada a curiosidade e favorecida pela tecnologia, que atualmente nos disponibiliza as mais variadas informações (e desinformações também...), passei a acessar canais do Youtube que tratam sobre povos antigos.

Houve uma reformulação em meu pensamento, substituindo o raciocínio estreito, cristalizado desde a escola, acerca das grandes civilizações da Antiguidade, no qual parecia que só elas existiam num momento histórico, enquanto o resto do mundo era um completo vazio.

Mas não era assim... Além das civilizações “famosas”, apresentadas nos livros e museus, muitos outros povos se espalhavam por extensões de terras que hoje conhecemos pelos nomes de África, Europa, Ásia e Américas.

Voltei minha atenção para a Península Ibérica, afinal, 50% de meu DNA veio de lá. Dei de cara com histórias surpreendentes.

Se, antes, na minha santa ignorância, o que eu cogitava ser o mais antigo para a região remontava aos romanos, descobri estar completamente errada!

Quando ainda nem se sonhava ver as legiões chegando no pedaço com seus temidos estandartes SPQR, a península já fervilhava com grupos étnicos dos mais variados nomes, surgidos, sabe-se Deus de onde, quiçá atrás de: alimento, abrigo, riquezas, aventura, garotas bonitas...

Essa galera ocupava as terras trazendo suas línguas e costumes...

... e também seus DNA.

Senti um frisson ao considerar que os traços desses povos poderiam estar contidos nos genes que atravessaram séculos até chegarem a meu pai, concebido numa aldeiazinha, onde jazem esquecidos – entre as matas da Serra da Estrela – túmulos de visigodos, um dos povos germânicos, chamados de bárbaros, que ocupou aquela região.

Minha imaginação foi longe ao pensar que posso ser a ponta do encadeamento de uma sucessão de genes provenientes de lugares os mais remotos, a qual excede o tamanho de muitas galáxias e orbita indefinidamente dentro das hélices de meu DNA.

As sensações mal compreendidas em relação aos antepassados ficaram adormecidas em mim, até que, tempos depois, outra serra surgiu no meu caminho.

Viajei para um local fascinante: O Parque Nacional Serra da Capivara, no sudeste do Piauí. Há milhões de anos ali existia um imenso mar, que foi sendo expulso em direção ao que é hoje a costa cearense, à medida que o balé das placas tectônicas fazia evoluções sobre a crosta e porções de terra colidiam umas com as outras.

A Natureza esculpiu pacientemente durante milênios – cavernas, cânions e platôs – os quais podemos apreciar hoje. Além deste acervo natural, há outro – as pinturas rupestres feitas pelos humanos da Idade do Bronze.

Poder observar – a poucos centímetros do rosto – desenhos que ainda guardam traços da cor original, foi impactante. São verdadeiros retratos do cotidiano e me fizeram reviver a sensação estranha sobre quem teriam sido aqueles desenhistas perdidos no escuro do tempo.

O que queriam expressar: Arte? Comunicação? Estética?

Só Deus sabe...

Os pré-históricos também deixaram os contornos de suas pequenas mãos espalmados nas paredes dos rochedos. Era como se gritassem: “Olá!”; “Olhem para mim!”; “Sou eu aqui!”.

Este comportamento me trouxe mais emoção, pois sabemos que ele persiste até os dias de hoje: crianças pequenas, frequentemente, o repetem quando começam a brincar com tintas.

Creio que esse ato simbolize o eterno desejo do homem de deixar uma marca e afirmar sua individualidade.

Voltei do Piauí com essas impressões girando em minha cabeça. Dias depois, resolvi fazer um teste de Ancestralidade, assunto que já circulava em meus pensamentos.

De cara, fui avisada de que só teria acesso à linha materna, afinal, não tenho o cromossomo Y. Imaginei, então, que predominariam em mim traços indígenas. Nada disso! Da região Amazônica só herdei 6% dos genes!

Do total geral, 65% é oriundo do povo Ibérico (que, por si só, já é sinônimo de muita mistura!) somado ao material de povos do norte da Itália. Acrescente-se 8% de povos germânicos, incorpore 6% da turma do Magreb e finalize com uma pitada de 5% dos esquentados Bascos!

Céus!! Sou um insólito coquetel mitocondrial!

Creio que não só eu, como também meus neurônios, ficamos surpresos com essas informações. Embriagados com o tal coquetel, eles se puseram a combinar meu teste de Ancestralidade com as impressões advindas da visita à Serra da Capivara, gerando sinapses e mais sinapses. O resultado disso? Uma ressaca existencial das boas!

Cheguei à conclusão de que não mais me importa como eram os rostos dos meus bisavós e trisavós, assim como os dos que vieram antes deles.

O que importa é a emoção que sinto agora, ao pensar que atrás de mim existiram muitas e muitas pessoas, sendo que, de apenas duas, pude conhecer os rostos e conviver durante um tempo.

Os demais estão perdidos na história. Eu os honro como ancestrais. Cada um me deu um pedacinho de si. Eles fazem parte do que se denomina humanidade.

É um raciocínio muito estreito, portanto, quem se julga um povo puro! Somos diferentes por fora, mas bem semelhantes dentro de nossos embaralhados códigos genéticos, que nos acompanham desde quando os humanos deixaram pegadas na África, fizeram pinturas em cavernas da Europa, sentiram frio nos gelados mares do Norte, cavalgaram pelas estepes, e caçaram animais extintos nos arredores da Serra da Capivara.

Todos eles desapareceram, mas os códigos que portavam continuam por aí. Quem sabe, neste século, não estejam integrando este exemplar de Homo sapiens sapiens, que, confortavelmente instalada diante do computador, escreve uma crônica para o blog Mundo Botafogo!

9 comentários:

Sergio disse...

Belíssimo texto. Parabéns por escrever algo de forma tão brilhante e sensível. Só mesmo no Mundo Botafogo temos acesso a textos tão interessantes. Abs e SB!

Anónimo disse...

Muito grata por seu gentil comentário, Sergio! Grande abraço!

Sol de Anlarec

Lúcia Costa disse...

Oi, minha amiga!
Sim, muito além da importância de saber como eram os rostos de teus antepassados, a emoção que foi tomando conta de ti durante todo esse fascinante processo, é o que verdadeiramente importa.
Afinal são elas - as emoções- que fazem com que a gente se sinta viva!
Parabéns pelo tocante texto!

Anónimo disse...

Vc sempre sábia, Lucia querida! Vivamos as boas emoções!!
Sol

Dinafogo disse...

Parabéns! Um texto muito interessante e legal de se ler. Tenho vontade também de procurar minha ancestralidade.

Ruy Moura disse...

É um texto soberbo, Dinafogo. É o que designo por um texto TOTAL!
Abraços LIBERTADORES!

Anónimo disse...

Muito grata à Dinafogo e ao Ruy pela generosidade dos comentários. Foram meu presente de Natal! Mais uma vez agradeço a vc, Ruy, e tb à madrinha Lucia, a oportunidade de poder partilhar minhas ideias nesse espaço GLORIOSO!
BOAS FESTAS a todos dessa comunidade!!

Ruy Moura disse...

Sol, Feliz Quadra Festiva com muita saúde e alegria para lhe inspirar 2025!
Abraço!

Anónimo disse...

😍🥰🎄

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